sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Um caso da Alma (de Alma Welt)

(dos Contos Pampianos de Alma Welt)

Quando eu tinha dezenove anos, e portanto já estava órfã há seis (orfã de mãe, quero dizer), eu praticamente não tinha freios. A censura exercida pela Mutti (que na verdade eu introjetava muito pouco), não existindo mais, foi como uma comporta aberta para os meus desejos, que se confundiam com a minha própria noção de liberdade. O Vati, como já contei, experimentara criar-me como uma pequena pagã, e fora espantosamente ousado nessa sua experiência. Leituras clássicas e muito estímulo para as artes, eram a sua fórmula para dotar a minha sensualidade de um timbre distinto, nobre, portanto nada vulgar. Quanto ao que eu fizesse do meu corpo... seria simplesmente destino, desde que eu soubesse me defender, num sentido pragmático, de prevenção de maternidade indesejada, ou de sujeição voluntária por amor a um homem de caráter mais forte que o meu. Esse perigo havia, pois o timbre doce de minha personalidade, e uma certa “candura”, me podiam deixar vulnerável. Quanta vezes na vida eu me veria submissa, com certa volúpia quase masoquista! Quantas vezes eu seria atingida pela violência de desejos alheios, incontrolados e perigosos, maldosos mesmo. Entretanto, como o Vati previa, nada disso poderia verdadeiramente me destruir. Meu pai era um filósofo, e observava-me e à minha vida com uma distância contemplativa, como uma obra que ele criara, e que era uma obra de arte, a seu ver. O incrível, no entanto, é que corroborando essa visão, tendo a ver assim também a minha vida até hoje, e estou consciente de viver numa permanente dimensão poética.
“A vida, Alma, deve ser uma obra de arte, ou nada ser, minha filha. Chega de misérias psíquicas que se externam compondo existências miseráveis, farrapos anímicos que se arrastam pela vida”, dizia Werner Friedrich Welt, meu pai. Custei a perceber a nota de arrogância germânica que existia nesse seu axioma, no entanto mais romântico do que nazista. Pois meu pai rejeitava com sincera repulsa a doutrina nazi, que outrora meu avô, o velho Joachim Welt, professara mais ou menos secretamente.
Mas, como eu dizia, aos dezenove anos, eu, estando no auge de minha beleza, era uma verdadeira tentação para os homens que nos cercavam no cotidiano, portanto peões, jovens na sua maioria, mas que não ousariam se aproximar de mim, atravessar a linha ou o abismo, melhor dizendo, intransponível, social e cultural que nos separava. Entretanto a paixão de um jovem peão por mim se fez visível e foi, talvez, a sua desgraça. Mas é preciso que eu seja sincera e revele aqui também, o fato de que houve antes disso, pelo menos dois suicídios misteriosos de jovens peões da nossa estância, cuja culpa involuntária, por assim dizer, me foi veladamente imputada. Mas voltemos ao caso que devo aqui narrar e que já foi citado, nominalmente mas en passant , numa cena do meu julgamento, no romance “A Herança”. Refiro-me o caso do jovem peão Martim, filho do velho Alípio Galdiano.
Martim Galdiano, era um belo jovem peão, muito bem dotado para a profissão, cavalgando e jogando o laço como poucos e também a boleadeira, prática em vias de extinção pelo menos na nossa estância, dedicada mais à vinha e ao mate do que à boiada ou o charque, como antigamente, antes do meu avô. Martim era também um excelente dançarino, nas festas da peonada, e se exibia no fandango, na dança da lança, na dos punhais, e na das boleadeiras, com um virtuosismo entusiasmante, com um taconeo aliciador.
Sendo um verdadeiro sucesso entre as gurias, essa flor viril da peonada causava freqüentemente ciúmes perigosos nos outros jovens, e tinha às vezes que se bater à faca ou mesmo aos murros com alguns deles, por paixão despertada nalguma chinoca. Mas a desgraça realmente começara já nos seus quinze ou dezesseis anos, quando o jovem Martim, da mesma idade que eu, me viu mais de perto numa festa de galpão, durante o São João. O jovem perdeu a sua paz. A paixão que despertei, nele, ao dançar candidamente, sorrindo muito, principalmente durante a dança dos lenços, e a do pezinho, iria condicionar a sua vida daí por diante. Quanto a mim, reprimi a consciência desse fato até muito recentemente, como se não me dissesse respeito, por ser involuntário e por eu não ter nunca dado corda ou me aproximado do guri. Eu estava demasiado centrada em mim mesma e no meu irmão Rôdo. Além disso havia em mim, confesso, uma espécie de consciência aristocrática, de minha condição de filha de estancieiro de segunda geração.
Embora eu ainda seja jovem, recentemente começou a vir do fundo da memória essas imagens produzindo um certo desconforto, uma certa dor mesmo. Serei culpada de alguma forma pelo suicídio recente de Martim há tantos anos longe de seu pai e de nós, numa outra estância longe daqui? O ódio do velho Galdiano, que no entanto permaneceu entre nós, na estância, mesmo depois de aposentado (fato até certo ponto misterioso) e que me foi revelado no seu depoimento em meu julgamento, corrobora essa hipótese que poderia ser, talvez, pretensiosa.
Estou contando tudo isso aqui, neste momento, por uma razão perturbadora: acabo de receber esta manhã, uma carta lacrada, cujo nome do remetente me fez estremecer, e que não tive coragem de abrir até agora. O medo que tenho dela é maior que minha curiosidade. Faz dois meses que Martim se enforcou com seu laço de couro. Faz vinte anos que o velho Galdiano me odeia, e apenas dois que me revelou isso. Confesso que começo a ter, finalmente, um certo medo da vida...
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29/10/2005

domingo, 23 de dezembro de 2007

Sons de cristal (de Alma Welt- republicação)

Republico aqui, por achá-la oportuna, esta crônica de Natal de minha saudosa irmã e grande poetisa. (Lucia Welt)



SONS DE CRISTAL
(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Volto a lembrar-me, com saudade, das nossas festas de Natal e fim de ano, na estância, durante a minha infância. Dias gloriosos, aqueles, em que me levantava cedo, em manhãs esplendorosas de verão, quase gritando de alegria por existir, e me sentir... tão feliz! As festas, para mim, começavam já nos preparativos, na cozinha, e na sala preparada, sobretudo com a montagem do nosso grande pinheiro de Natal. Matilde era a grande festeira, responsável pelo maravilhoso peru assado, guarnições, saladas e doces. O Vati cuidava da escolha dos vinhos, de nossa própria produção. A Mutti gerenciava tudo, a começar pela decoração da sala e a preparação condigna da grande mesa que nos congregaria a todos. Solange e Lúcia, minhas irmãs, as ajudavam, enquanto eu e Rôdo nos divertíamos em observar e bater palmas, ou simplesmente colher flores e fruir o clima adorável de preparativos natalinos.
Mas recordo particularmente o Natal dos meus treze anos, quando Rôdo, numa grande inquietação de sua libido de pré-adolescente, resolveu criar um pretexto para que eu o visitasse em seu quartinho do sótão, na ante-véspera do Natal, à meia-noite, quando todos estivessem dormindo.
Ali estava eu, como tantas vezes, naquele aconchegante ambiente de quarto de menino, que me fascinava com sua bagunça viril, onde seus gostos se mostravam todos: carrinhos, aeromodelos, miniaturas de motos e barcos, fotos e posters de montanhas e praias, algumas fotos pampianas típicas, de boiadeiros laçando ou lançando a boleadeira em pleno galope, cavalos maravilhosos, tudo o que um menino aventureiro amava, e... uma foto minha, linda, a minha melhor foto, que me enternecia por estar ali, entre as suas coisas amadas.Eu o abracei de uma maneira mais comovida, que o normal, embora sabendo que Rôdo não gostava de sentimentalismos. Mas naquela noite, em especial, por alguma razão eu queria chorar de felicidade de tê-lo como irmão, eu, que não me identificava em nada com minhas irmãs, e nem tinha certeza de amá-las. Puxei-o sobre mim, instintivamente, como uma pequena amante, mas estávamos sonolentos e adormecemos assim, vestidos e abraçados, sonhando com nós mesmos, abraçados, sonhando...
Acordamos sobressaltados pela voz aguda e agressiva de Solange. A megerinha gorda, diante de nós, de mãos na cintura, nos fuzilava com os olhos:
—Ah! Seus safados. Já agarrados de novo! Mamãe vai saber disso! Vocês vão ficar sem peru no Natal e sem sobremesa! Nem vão sentar à mesa, vocês vão ver!
Fiquei envergonhada por ela, não por mim. Pela mesquinharia de minha irmã que insistia em atormentar a minha vida, conspirando contra a minha felicidade, que, afinal, para mim, estava ali mesmo, junto de meu irmão. Retruquei, estendendo meus braços para ela:
—Solange, irmãzinha ciumenta! Queres abraçar-me também? Vem, vem Sol, que eu te farei feliz!
Solange ficou rubra de confusão e cólera, mas retirou-se correndo dali. Eu a desarmara. Olhei para Rôdo e ele rolava de rir, ofegante. Conseguiu afinal, dizer:
—Alma, tu tens cada uma! És sempre inesperada. Tu, abraçando a Sol! Não posso imaginar!
–Bem... ela não deixaria. Eu a abraçaria e até a beijaria se com isso eu a conquistasse, e ela parasse de nos perseguir. Por falar nisso, será que já estamos sem peru e sobremesa?
Rimos mais uma vez juntos, e eu estava tão feliz ali, com Rôdo, romanticamente nos braços do meu irmãozinho, que comecei a ouvir os sons da noite de Natal, o ruído dos cristais, das taças de vinho, e dos talheres de prata, das risadas felizes dos familiares que eu amava tanto, que não excluiria Solange, que via sorrindo para mim, gordinha e... até mesmo simpática. Eu não precisava nem mesmo da noite de Natal. Eu estava tão plena e feliz, que ouvia os seus sons de cristal, e não precisava mais que a véspera chegasse. Meu Natal era ali mesmo, naquele momento, presente para sempre, sentindo com meu pequeno seio nascente, as batidas do coração amado de meu irmão.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A Preceptora (de Alma Welt)

A Preceptora

(Dos Contos Secretos, de Alma Welt)


Preciso contar a vocês, meus leitores, um episódio de minha adolescência, na estância. Tenho hesitado muito em contar este episódio, por motivos que eu mesma não compreendo bem, já que venho revelando nestas narrativas “secretas”, o mais recôndito de minha vida... e de minha alma, de uma maneira, espero, sincera, e não despudorada.

Eu tinha quinze anos, e minha beleza estava no auge, a tal ponto que a mim mesma me espantava... e comovia, como artista nata, que sempre fui. Por esse motivo, eu era homenageada por todos de minha casa, a exceção de Solange, claro, minha irmã mais velha, e talvez de minha própria mãe, que via esse fato, ao que parece, com temor e desconfiança. O certo é que minha mãe, percebendo o teor particularmente sensual da minha beleza juvenil, resolveu tirar-me da escola, pois descobriu que eu corria perigo diante de mim mesma e dos alunos adolescentes, que me assediavam. Resolveu então, que eu passaria a receber aulas particulares, na grande sala da nossa estância, de uma professora que ela contratou e que chamava, de uma maneira um tanto antiga, de “preceptora”.

Essa moça, de uns trinta e poucos anos, morena, magra, de rosto triste, sério, de cabelos presos e roupa sóbria como uma freira, inspiraria confiança em minha mãe. Começaram as aulas, tudo corria normalmente, e dona Luciana era uma excelente professora de diversas matérias, como matemática, geometria, física, etc. Quanto ao português e história, parecia-me que eu já sabia mais do que ela.

O fato é que dona Luciana, cujo semblante fechado, neutro, a princípio não atraía ninguém, foi-se abrindo, ao longo das nossas aulas, e passou a sorrir e a demonstrar um tom crescente de afetividade, até atingir aquilo que chamamos carinho. Ah! Vocês já podem prever o que aconteceu? Claro, vocês já me conhecem. Sim, eu sem querer, ou querendo sem saber, seduzia gradativamente a minha preceptora.

O primeiro sintoma do meu sucesso, foi o pedido que Luciana fez à minha mãe, para transferirmos as aulas para a mansarda do casarão, onde teríamos mais silêncio e concentração para as aulas, já que o salão era constantemente invadido por empregadas, irmãos e empregados da vinha procurando por meu pai, trazendo-lhe problemas, o que dispersava a nossa atenção.

Montamos a nossa sala de aula no sótão, aposento acolhedor, intimista, e com minúscula janela. Eu já percebia o timbre sub-reptício dessas manobras, mas, como sempre, sendo da minha mais profunda natureza aliar candura à lucidez, ironia à inocência, deixava-me levar por suas iniciativas, com minha passividade de sempre. Luciana estava cada vez mais apaixonada por mim, essa era a verdade visível a olho nu, pelo menos para mim. Essa moça conseguiria disfarçar isso por muito tempo? Eu me perguntava.

Uma tarde, Luciana, enquanto eu escrevia, fingindo-me concentrada, tamborilava os dedos levemente na mesa, denunciando uma certa tensão. Seu olhar fixo sobre mim, começou a parecer com o de uma ave rapinante, e... ela levantou-se afinal, caminhando decididamente em minha direção. Ergui os olhos, assustada realmente, como se ela fosse bater-me, quando agarrou-me pelos ombros, ergueu-me da carteira, e olhando-me fixamente nos olhos, exclamou:

–Não agüento mais, Alma, eu te amo, guria! Eu te amo! Estou apaixonada por ti!

E beijou-me súbita e ardentemente os lábios. Longamente. Eu permaneci passivamente, de pé, tendo meus lábios sugados, mordidos, por essa boca que percebi bela, também, surpreendentemente doce. Ela não tardou a enfiar sua língua em minha boca, para colher minha saliva, sugar o meu hálito, com uma sede infinita, antiga, que agora finalmente saciava.

Em seguida, empurrou-me para o pequeno catre que havia ali, atrás de um biombo chinês, esdrúxulo, herança da avó Morgado. Aquilo sempre estivera ali, e eu já o conhecia... com Rôdo. Ah! Se minha mãe soubesse! Luciana praticamente jogou-me sobre o catre e começou a despir-me, murmurando:

–“Alma, Alminha, deixa-me ver-te. Deixa-me ver a tua beleza. Essa pele, branca como um lírio. Quero ver-te uma vez, e depois posso até .. morrer. Mostra-me, Alma, mostra-me teu corpo!” – ela começou, imprudentemente, a arrebentar botões, a despojar-me de maneira afoita, do meu vestido. Deixei-a fazer o que quis. Logo eu estava nua, deitada à sua frente, largada, a olhá-la com um olhar que eu mesma gostaria de ver. Mais tarde ela me diria que os meus olhos verdes pareciam os de uma gata, nada inocentes, perigosos, e que brilhavam demais na semi-penumbra daquele canto do sótão. Ela então, arrancou seu próprio vestido, expondo a sua magreza tocante, seu corpo carente, sua fome de amor e carinho visível em seus ossos, em suas costelas, seus joelhos ossudos, suas mãos magras e nervosas, que pareciam renascer para as carícias. Essa mulher desabrochava diante dos meus olhos, suas formas agudas, quebradas, se abrandavam, e eu pude imaginá-la mais roliça, mais cheia e mais feliz. Deixei a sua boca e suas mãos ávidas percorrerem-me toda. Deixei que sua saliva me banhasse, como uma vaca à sua bezerra. Ela me banharia inteira, colocando-me até de bruço, para lamber-me por trás...e atrás. Deixei-a fazer tudo o que quis, gemendo... as duas.

Eu sentia que nutria seu corpo maltratado tanto tempo por ela mesma, ou pelo mundo. Eu sentia, por instinto, que podia assim, com minha volúpia, meu prazer, minha passividade ativa, transformar essa lagarta numa borboleta deslumbrante. Eu sentia o meu poder de jovem ninfa. E jamais me esqueceria... ou me arrependeria desses momentos.
Acariciei-a, então, mais ativamente, seu rosto, seus pequenos seios tardios, virgens, que tremiam, e que eu faria desabrochar.

Ela, a minha preceptora, chorava diante mim, como uma aluna, comovida e grata... para sempre.

Alma Welt

21/05/2006

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Amigo de Modigliani (crônica-fantasia de Alma Welt)

O AMIGO DE MODIGLIANI

Dirijo-me à Galeria, nervosa, na minha primeira exposição. Para a minha agradável surpresa, encontro-a bastante concorrida, os carros sendo manobrados com dificuldade, diante da entrada, cuja vitrine ostenta uma das minhas telas. Mulheres e homens elegantes, gente bonita e os indefectíveis ratos de vernissage que vêm para beber, ou aparecer. Tudo comme il faut.
Nos últimos meses trabalhei como louca para chegar aqui. Consegui interessar à velha marchand, experiente, pelo meu próprio trabalho, acredito. Ela aposta no meu talento e se considera minha “descobridora”. Ofereceu-me esta exposição individual, assim que examinou os desenhos que lhe levei numa pasta. Fez me elogios inusuais, de saída. Levou-me à sua casa para mostrar-me a sua coleção pessoal, fantástica. Ofereceu-me jantares, adotou-me. Percebi que a uma certa altura fazia gosto em deixar-me a sós com seu filho. Mas esse era nitidamente feminino, e só ela não percebia. Não que isso fosse um impedimento, tornou-se um amigo querido.
Agora estou aqui, excitada e feliz com tanto afluxo de gente que pára diante dos meus quadros com ares entendedores e que aproxima-se para me cumprimentar.
O longo que ostento foi me dado pela marchand e sinto-me bela com ele. Não deixei que produzissem muito meu rosto, porque não gosto de parecer uma modelo, sou uma artista de cara lavada, sem pintura. Ainda bem que não destoou do vestido. Os casais que se aproximam para os cumprimentos aproveitam para elogiar-me fisicamente, alguns gaviões também, mas esses em geral me incomodam.
Gosto de falar da minha pintura como todo bom artista, e procuro não deixar-me lisonjear em falso por bajuladores bem ou mal intencionados. Prefiro conversar com outros artistas, sobretudo os mais velhos.
De repente, vejo entrar na galeria um grupo espantoso: várias senhoras e senhores, velhos, velhíssimos, mas elegantérrimos, nitidamente europeus. Elas, com grandes chapéus e vestidos de griffe, umas fumando longas piteiras, outras abanando-se com os catálogos. Os homens, velhos imponentes, com ternos impecáveis conversam com elas diante das minhas telas, com nítido conhecimento. Falam francês, alguns com sotaques estranhos. A uma das mulheres ouvi chamarem de Marússia (isto me soou como um nome russo). Mas dentre todos destacava-se um senhor alto, magro, muito ereto para a sua idade, com uma cabeça de velha águia, um nariz espantoso, aquilino, e vasta cabeleira branca de maestro ou coisa parecida. Uma mistura de Karajan com Leo Bernstein. Maravilhosa figura. Senti-me atraída por ele ia me aproximar, mas ele tomou a dianteira e puxando a tal russa pela mão abordou-me no meio da galeria.
— Oh! Aí está "la jeune fille prodige", disse ele galantemente, estendendo-me a mão. — Marussia, vê como o talento se alia à beleza. Lembra-se da nossa Marie Laurencin? Ah! Eu pensava que já não se faziam musas pintoras como antigamente. "Je suis enchanté" (e beijou-me a mão).
Apesar da galanteria bem francesa, senti uma espécie de imponência nele. Dava-me a impressão de um velho Druida, a quem faltava somente o camisolão. Percebi que homens como esse mexem sempre um caldeirão mágico invisível, aonde preparam suas poções. Por isso sempre senti que o maestro Karajan parecia lidar com esse caldeirão, com aquela economia de gestos de quem está remexendo a sopa de onde brotava sua música. Mas voltemos a Eduard, esse era o seu nome.
Marússia e Eduard, do grupo de velhos foram os mais entusiastas da minha modesta pessoa. Eduard fez comparações fascinantes da minha pintura com a de membros da École de Paris que ele parecia conhecer com notável intimidade. Marússia também parecia conhecer tudo e todos. Eu estava fascinada pelos dois, mas principalmente pelo velho águia.
Lá pelas onze horas, anunciaram sua partida, mas convidando-me com ênfase para que me juntasse ao grupo deles a partir da meia-noite para uma festa em um apartamento próximo, na mesma avenida da galeria.
— Fiquei encantada: poderia ir à pé, desde que me desvencilhasse de alguns novos admiradores que me ofereciam carona, disputando-me para o fim da festa ou começo, como pensavam, certamente.
— Pedi licença para ir ao toalete e fugi pelos fundos da galeria, por um beco que já conhecia, saindo assim à francesa, já que a noite prometia ser franca e joyeuse.
Entrei no prédio indicado, chiquíssimo, cujo porteiro uniformizado parecia já esperar-me, dizendo:
— Ah, a senhorita é a pintora. Pode subir. Estão lhe esperando.
Subi, apertei a campanhia, a porta se abriu e de repente vi-me como num sonho ou delírio, em plenos anos trinta, no entre guerras, em Paris, no meio de espectros antiquíssimos que se moviam com elegância e coqueterie. Parecia uma verdadeira alucinação. Entre pesadas cortinas e poltronas estofadas, um grande piano de cauda pilotado por uma doce abantesma que dedilhava “Les feuilles mortes”, cantando com voz aguda, acompanhada por todos os presentes. Fantasmas velhíssimos, alegres e nostálgicos ao mesmo tempo. Chapéus, boás, piteiras, taças, champagne e mots d’esprit em abundância. Eduard recebeu-me com especial gentileza, juntamente com Marússia e puseram a fazer comentários lisonjeiros sobre a minha exposição e a compará-la com outras de Paris, daqueles anos. Tinham tantas memórias maravilhosas! Meus olhos se encheram de lágrimas quando Marússia me descreveu Nijinsky jovem, que ela conheceu ao vivo dançando “Le spectre de la rose”com Karsavina, em 1911, no Opéra de Monte-Carlo. Meus olhos se arregalaram, para seu deleite, ao ouvir a descrição da trajetória ascendente de sua saída de cena pela janela azul do cenário, ao final da dança. Descreveu-me, como ele caía exausto sobre colchões na coxia, com o coração aos saltos, dores lanscinantes, segurando o peito com as duas mãos, debatendo-se em espasmos enquanto lhe jogavam água fria, fumegante ao contato de seu corpo abrasado, martirizado. Depois recompunha-se, recuperava a “leveza” e voltava para os cumprimentos ao público que o ovacionava delirante. Comovida, para disfarçar, voltei-me então para Eduard, elogiando-lhe a postura elegante, sem barriga, notável na sua idade. Sem sorrir, ele abriu a camisa em plena festa dizendo:
— "Não se iluda, menina, não se iluda!"- e mostrou-me um terrível colete ortopédico, como um espartilho de barbatanas de aço, cheios de fivelas e cadarços, belo como um instrumento de tortura. A seguir, serviu-nos o champanhe e fez um brinde dizendo com o ar enfastiado:
“— La vie est belle, les femmes sont chères et les enfants faciles a faire!...”
Deixei escapar uma gargalhada.
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Acordo meio ressacada no meu ateliê. Não me lembro bem como cheguei aqui. O telefone toca dentro da minha cabeça. Resmungando, atendo e é a voz característica de Eduard com seu sotaque francês:
— Olá, jeune fille. Comment-allez vous? Quero passar aí para levar-lhe uma coisa. Quando pode me receber? Dê-me sua direction!..
Respondo-lhe que me perdoe, que estou sem condições, mas que me dê seu telefone que ligo assim que melhorar.
Depois de horas e muito suco de laranja, quando começo a sorrir para os acontecimentos da noite em minha memória, giro pelo ateliê com os braços abertos na valsa clássica do espectro da rosa. Meu balé ainda está fresco em meu corpo, pois deixei-o há poucos anos para dedicar-me à pintura.
Saboreio agora a minha pequena glória, e quando o interfone toca, anunciando-me uma corbeille de flores. Recebo-a de peignoir, pelo porteiro que me olha indiscreto da cabeça aos pés. Retiro o cartão do envelope:
“Para a nova musa-pintora, Eduard.
"Antes que as flores percam o viço...”

Sorrio feliz... querido Eduard, meu novo amigo, um tanto amargo, mas que sensibilidade!
Preparo-me para pintar. Dizem que o pintor deve sempre pintar no dia seguinte à vernissage, para não parar nunca. Lembro-me de um outro velho sábio que me perguntou um dia:
— Alma, você pintou hoje? Pensei e disse: —Não, hoje eu não pintei. E ele: — O quadro que você não pintou hoje, você não pintará jamais. Só existe o hoje, aprenda isso.
Ao anoitecer recebo a visita anunciada de Eduard. Veio sozinho, é um velho solteirão. Marússia não é sua mulher. Nem sequer sua amante. Aliás, ele nem gosta muito dela como amiga. Eduard, ainda bem, corteja-me intelectualmente, se posso dizer assim. Esse é seu feitio. Ele só se atrai intelectualmente, e por artistas.
Põe-se a contar casos interessantes de Paris, de sua amizade com os pintores.
Conta-me para o meu espanto que foi amigo de Modigliani, que beberam juntos. Ele sobriamente, o outro... Quantas vezes ele o carregou para o ateliê e o entregou nos braços de Jeanne Hébuterne. Descrevia a beleza do rosto de Amadeo, apesar das bebedeiras. Jeanne o olhava com antipatia, como se ele, Eduard, levasse o seu marido para o mau caminho. Ele, então, a odiava.
Tudo isso me parecia insólito. Eduard era desmistificador numa medida calculada. Assim, o que sobrava sempre era um mito mais duradouro na memória. Percebi que a nossa amizade duraria se eu tivesse muita tolerância e não julgasse nunca moralmente o velho egoísta que ele era.
Ele era o anti-burguês "par excellence". E a sua escolha da minha pessoa, lisonjeava-me como artista verdadeira. Ele não me via como uma “burguesinha talentosa”, mas como alguém que dava continuidade às suas memórias da boêmia de Paris, no seu exílio provinciano. Tirava da manga (ou do caldeirão), como um mágico, casos e mais casos, sempre oportunos e engraçados, de seus amigos pintores, poetas e músicos, de sua juventude parisiense. Eu ria muito, deliciada.
Contou-me também que fora ao café onde, junto com Chain Soutine, bebia com Modigliani, numa mesinha de calçada, no dia seguinte à morte do pintor. Encontrara o toldo rasgado, um cordão de isolamento e a mesa quebrada encostada na parede. Jeanne havia se atirado, de manhã, de uns andares acima, da janela do ateliê deles, atravessando o toldo e estatelando-se sobre a mesa em que o marido costumava beber.
Nunca mais Eduard sentou-se naquele café. Eu ouvia essas histórias, creio que com um olhar sonhador, transportando-me àquele tempo, àquela cidade da minha fantasia. Eduard sabia disso. O velho mago era um sedutor de almas permanente.
Contava-me até mesmo uns casos inéditos de Picasso. Ele o conhecia com alguma cerimônia, não eram próximos. Picasso era um tremendo monstro sagrado até para os seus amigos mais íntimos. Um dia, num café, Picasso, diante de um drink que ele não tocava, e cercado de uma corte de amigos e conhecidos entre os quais Eduard, foi perguntado por uma senhora meio simplória:
— Pablo, o que você acha do impressionismo?
E Picasso respondeu:
— O impressionismo? Ah sim, é muito bom quando se precisa saber se devemos levar o guarda-chuva!
Gargalhada geral, e no dia seguinte a piada corria Paris inteira, pelo menos nos “meios”.

Eduard agora vinha quase todos os dias ao meu ateliê. Tive que pôr um freio, ou não trabalharia mais. Mas nossa amizade se consolidou, quando um dia Eduard apresentou-me sua irmã Margot. Ela era mulher do grande pintor Sanson Flexor. Sobre eles contou-me o seguinte: Margot e Sanson fugiam através da França ocupada. Tinham que atravessar uma fronteira vigiada pelos nazistas para sair do país. Tentaram atravessar à noite. Um holofote, um apito e foram pegos. Foram levados a um posto policial diante de um major alemão, que lhes disse que seriam fuzilados imediatamente. Flexor era judeu, da Bessarábia, que passara a infância em Berlim. Olhando bem o Major reconheceu um antigo colega de escola. Disse-lhe:
— Major, não está me reconhecendo? Sou eu, Sanson, seu colega de ginásio.
O Major olhou-o bem e disse: Ah! Sanson! Sim, é você, que vivia desenhando nos cadernos durante as aulas, um caso perdido, hein Sanson? O que você se tornou afinal?
— Major, eu me tornei um pintor, um artista, profissional. Eu pinto quadros, Major.
— Pintor, hein, Sanson. Muito bem. Então, vou lhe dar uma chance. Você vai desenhar o meu retrato já, aqui. Se eu gostar do retrato, se achar que está bom, que ele parece comigo, deixo-os passar, senão...
Pediu ao ordenança que lhe trouxesse um papel e um lápis e os pôs diante de Flexor, sobre a mesa. O pintor começou imediatamente a desenhar olhando intermitentemente o modelo. Logo depôs o lápis e entregou o papel ao Major. Este olhou, olhou, em silêncio, num terrível suspense. Então estalou os dedos e chamou o ordenança , passou-lhe o papel, perguntando-lhe:
—Então, cabo, o que você acha? Parece-se comigo?
—Sim, Major, parece sim, está muito bom. Tal e qual.
—Sanson, disse então o Major. Podem passar!
Anos se passaram. Presenteei quadros ao Eduard, mas defendia-me bastante de suas atitudes às vezes invasivas. Quanto à minha pintura, ele nada mais dizia, mas sempre isolava detalhes, enquadrando-os com as duas mãos sobre a tela no cavalete, em silêncio, olhando-me sugestivamente, o que, então, me irritava.
Ele começou a entrar em declínio. Suas dores físicas aumentaram, sua ironia também.
Um dia fez um comentário perspicaz, mas cruel sobre o retrato que eu pintava de uma amiga. A moça, presente, fechou-lhe a cara e encerrou-se chorando no quarto. Eduard, exasperado, implorou-me que interviesse, para que ela o desculpasse, dizendo:
—Se sua amiga não me perdoar, eu vou odiá-la.
Tinha a sinceridade de um "enfant-terrible".

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Afinal, chegou o tempo das Dores e dos Desencantos. Eu estaria ao seu lado no final, coisa que ele não pedia, mas esperava.
Ao lado de sua cama eu meditava sobre o significado de nosso encontro nesta vida. Eu, uma simples moça brasileira, pintora, jovem, e o amigo de Modigliani, que se dera ao luxo de odiar Jeanne Hébuterne, hoje uma musa histórica. Acabei encontrando estranhos signos nisso tudo. Mas prefiro calá-los em meu coração para que se transformem no "pure morceau de peinture" que o velho mago em silêncio reclamava.

Alma Welt

21/12/2001

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Nota da editora:

Esta inusitada e encantadora "crônica-fantasia", como Alma a designou, foi recém-descoberta por mim na sua arca no nosso sótão, aqui no casarão. Trata-se mesmo de uma fantasia, malgrado o seu teor realista e verossímil, pois minha irmã, que morreu com apenas 35 anos em Janeiro deste ano, não tinha idade para ter sido a amiga jovem de um contemporâneo e amigo do grande pintor Modigliani (1884-1920). (Lucia Welt)

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007



Capa do livro CONTOS DA ALMA, de Alma Welt- O desenho representa uma cena do mito de Eros e Psiqué na sua versão clássica, a do livro do escritor latino do II século, Lucius Apuleius, "Metamorfoses ou o Asno de Ouro" (Cupido e Psiqué). Note-se que, no desenho de Guilherme, a Psiqué é um retrato fiel da própria Alma Welt. O livro Contos da Alma encontra-se à venda em diversas livrarias de São Paulo, como a Livraria Cultura e Livraria da Vila, por exemplo, e o preço de capa é R$ 32,00.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Alma nostálgica, ou Carta da "Mentira Vital" (de Alma Welt)

Andrea querida
Minha morena, estás escorrendo, não é? Guarda um pouco desse caldinho para mim. Já imaginaste quantos hormônios e feromônios contém esse precioso fluido? Degustá-lo, bebê-lo deve reforçar a nossa feminilidade gloriosa. Por falar nisso, hoje não teve terapia, e passeei horas a cavalo com minha doutora Jensen, pelas pradarias. Fomos muito longe, e na nossa intimidade também. La Jensen é o máximo, que mulher incrível! Ela já esteve até na África, trabalhando, e sua experiência internacional de vida é algo que daria um filme maravilhoso.
Ela faz tudo para pôr-me para cima, o que no meu caso não é simples, pois ela sabe que não sou um caso de baixa auto-estima, mas tenho uma síndrome bem mais sutil e complicada. Ela diz que eu, como artista me auto-glorifico, chego mesmo a me auto-mitificar, e que isso é comum aos bons artistas, e que não é aí que reside portanto o meu “pathos” que ela denominou lisongeiramente de “weltiano”, universalizando o meu caso. Ela citou, enquanto cavalgamos a passo, a teoria da “Mentira Vital” de Otto Rank, segundo a qual, as crianças por volta dos quatro anos, ao tomar contato com as próprias fezes de uma maneira diferente, como algo decomposto que lhes sai de dentro, têm uma súbita consciência da própria morte, que lhes seria fatal pela angústia mortal se assomasse totalmente ao consciente. Então, segundo Rank, mecanismos naturais de defesa interpõem uma espécie de comporta entre inconsciente e consciente, estancando essa consciência fatal. Daí pra diante vivemos como se a morte não fosse nunca a nossa, e sim algo que só ocorre no outro. A isso ele chamou de “mentira vital”, que nos permite viver. Mas segundo ele, o Artista sofre de um defeito desse mecanismo de defeza, uma espécie de rachadura na comporta, por onde emanam eflúvios da consciência de morte, produzindo uma angústia criativa. Entretanto, essa rachadura tende a se alargar, como uma fenda numa comporta de represa. “Si non è vero...” Ai! Andreazinha, paga-se um alto preço por se ser artista. Eu às vezes queria ser apenas mulher, ou melhor, uma guriazinha de cabeça ôca, casadinha e com filhos, como minha mãe queria. Mas agora é tarde. Ao pôr-do-sol, no meu pampeiro, ao lado da doutora, eu soltei um gemido, e as lágrimas começaram a descer. Uma saudade, Andréa, uma nostalgia de tudo, do que vivi e do que não vivi! E queria me dissolver naquele poente como nos meus amores passados, presentes e futuros. E em ti, guria, que só conheço por dentro, e tão pouco, mas que és tão terna e compreensiva com esta doida Alma inquieta.
Então, a doutora apeou, estendeu-me os braços e disse: “Apeie, Alma, sentemos nesta relva e vamos esperar as estrelas surgirem. Elas relativizam tudo com a sua grandeza, com a sua distância e impassibilidade. Com sua eternidade, talvez. Vamos simplesmente olhá-las, como mãe e filha, abraçadas, minha querida”. Assim ficamos, eu chorando baixinho abraçada à minha doutora sábia, que chegou tarde demais para ser minha guru, e que parece querer somente consolar-me de uma dor perante a qual ela se sabe impotente. Uma mãe terna e velha, que não pode mais proteger a sua filha do mundo, da vida, da dor da vida.
Ao voltarmos para casa já anoitecida, Rodo nos esperava na varanda, sentado na cadeira de balanço, tomando um chimarrão, com música de piano, Chopin, no aparelho, o que só aumentou minha nostalgia. Fiz um esforço e pus música de fandango, e puxei meu irmãozinho para dançarmos juntos para a doutora Jensen que deu boas gargalhadas. Rimos muito, Andréa. E eu senti que por hoje me salvei. Sobrevivi. Quero minhas crianças, Andrea. Não podem me tirar minhas crianças. Também sou uma, não podem me deixar sozinha...

Tua Alma que ama e sofre
24/07/2006
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Comentários


O poeta Cláudio Bento escreveu:


"Assino embaixo, Alma Welt é tudo isto e muito mais. Ele fazia uma literatura sem precedentes na história da poesia brasileira, na história do romance brasileiro, do conto brasileiro. O Brasil precisa banhar-se na luz e nas letras desta mulher talentosa e bela."

Solange Lima escreveu:

"Eu soube que Alma escreveu a série de "Cartas à Andrea" em e.mails. As duas amantes nunca se viram, nem ouviram sequer as suas vozes: nunca se telefonaram. Trata-se de um um romance digital- erótico- platônico, típico da nossa época virtual. A diferença está em que produziu, pelo talento e ardência da poetisa Alma, um extraordinário e belíssimo romance epistolar que teminou em tragédia. Sei disso porque conheci a Andrea e tive esse volume (alentado) nas mãos. Trata-se da coisa mais comovente que li nas últimas décadas. Insisti com a Andrea para o que o puiblique. Há problemas, pois há muitos momentos demasiadamente íntimos, e de um exacerbado erotismo, nunca visto na literatura feminina. Mas a meu ver por isso mesmo seria revolucionário..."

eliana mattos escreveu:


"Eis uma carta comovedora, pungente, típica do universo riquíssimo da poetisa Alma. Ela contém mesmo o embrião de sua morte, fruto da doença que cresceria nela: sua angústia da consciência profunda da própria morte, que vitimou tantos artistas através da História. Alma nos comove com seu talento, sua beleza interior e seu drama. Ela é sem sem dúvida, a maior poetisa surgida no final do século XX em língua portuguesa."

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

As pequenas flores do riso ( de Alma Welt)

(dos Contos Secretos, de Alma Welt)



Não suporto mais. Preciso voltar ao sul. Este apartamento, que eu chamo de ateliê, dentro de um condomínio burguês, em plena Oscar Freire, no meio dessas lojas sofisticadas, tudo isso começa a me enojar. Eu sei, meu estúdio é belo, eu o fiz assim. Mas nada disso tem a ver com as minhas raízes, que estão no campo, isto é, no Pampa, no meu casarão, no meio do meu jardim, do meu pomar e do vinhedo do meu avô; que me esperam, eu sei. E sei, porque se me ausento por longo tempo noto-lhes o ar de decadência. E se ali demoro, vejo tudo reflorescer, vivificar-se. Rôdo não se importa tanto: ele não pára, suas ausências são mais prolongadas que as minhas, ele roda o mundo. Ele diz: “Alminha, por quê perdes tempo nessa cidade? Ela te engolirá! São Paulo não é uma cidade, é um vício, uma dissipação. Prefiro os meus cassinos e pousadas, interligados pelas mais belas paisagens do mundo, que percorro, com o rosto ao vento, no meu Porsche. Por quê não vens comigo? Eu te farei viver outras aventuras. Lembras-te de quando éramos crianças? Eras tão curiosa e aventureira quanto eu, e devassávamos nosso pequeno pampa, num raio de pelo menos cinco quilômetros em torno do casarão. Alma, estás te desperdiçando, o que esperas? O prêmio Nobel da Literatura Sedentária? Vamos, venha comigo!”

Eu me abracei a Rôdo, e o cobri de beijos. Mas, isso foi sempre assim! Cada vez que o meu irmãozinho me dá um conselho, ou se estende num comentário sobre mim, sobre nós, eu me enterneço e beijo-o, beijo-o, até ele se cansar e me afastar, rindo, e dizendo-me “pegajosa”. Ai! Rôdo, como alguém pode ser tão exemplarmente viril, como tu? Eu te vi puxar uma faca, uma vez, quando ameaçado por um peão que me desrespeitara, e não demonstravas medo no olhar, mas, sim, fúria. E eu, entre sincera e brincalhona, exclamei o clássico “meu herói!” e cobri-te de beijos. Naquela noite me possuístes, e eu me senti tua para sempre. Que mais posso querer? Eu sou, ou fui, a amada de meu irmão-herói, que aventura mais posso querer?

Entretanto faço as malas, mais uma vez, para retornar às fontes. Preciso daquelas águas, daquelas flores. Minhas “pequenas flores do riso”, como eu as chamo. Ali, naquele jardim plantado por minha mãe, e sua melhor herança, as crianças parecem estar no seu elemento, seu habitat. Anseio olhar mais uma vez para Patrícia, Pedrinho, Hans e Christian, meus adorados sobrinhos, por ali, correndo, colhendo flores e as desperdiçando, como animaizinhos brincalhões, como filhotes. Ali, assim, eu tenho certeza de que a vida é bela, e que meu coração sofre apenas pelo progressivo esmaecimento dessa imagem, desse manancial.. A vida é um afastamento gradativo de uma fonte inefável de beleza: a Era do Sonho de nossa infância; e dói, dói estar tão consciente dessa viagem, sem volta, a não ser no mesmo sonho, prerrogativa divina, da ternura de Deus, que ele nos legou. Ele nos deu o Sonho, não perderemos nada, no final. E regressaremos, por fim, às pequenas flores do riso.
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22/08/2005

terça-feira, 6 de novembro de 2007

O aeronauta (de Alma Welt)


O Balão de Alma Welt- litografia de Guilherme de Faria,P.A. 70x35cm, s/ papel Arches


(Dos contos Pampianos de Alma Welt)

Daqui, desta varanda sobre o pampa infinito, fico horas a observar os longes, comparando a nitidez da linha do horizonte de hoje com a de ontem, e a beleza das nuvens, do seu arranjo sábio, estético, no enquadramento da mente, daqui, deste ponto de vista privilegiado, cuja referência é aquele grande umbu ali, a meio caminho do infinito.

Talvez eu espere, também, um cavaleiro ao longe, vindo a trote, enrolado num pala, ou a galope, vindo nesta direção... do meu coração solitário e expectante

Mas eis que o cavaleiro veio do céu, não da linha do horizonte, mas de cima, de cima... numa aeronave, um balão colorido!

Veio pairando, descendo, descendo, até lançar sua âncora em pleno gramado do meu jardim. Tive somente de levantar-me da minha cadeira de balanço e caminhar dez passos até ele, para tocar a sua mão e observar os brancos dentes do seu sorriso, de perto, reparando no azul celeste de seus olhos puros, claros.

Ele se identifica, Rolando, balonista, catarinense, da ilha do Desterro, vindo, pois, de tão longe. Como pôde ele chegar aqui neste Pampa, na fronteira do país “del oriente”? Ele promete contar sua aventura, depois de saciar sua imensa fome, com o nosso charque hospitaleiro. Rôdo, meu irmão, está encantado, e vejo-lhe nos olhos a tentação de aventureiro que é, de partir com ele, esse possível companheiro de uma aventura que ele ainda não experimentou em sua vida jovem, movimentada.

Eu fico ali a observar estes dois jovens, protótipos da beleza viril, do que há de melhor nestas terras do sul, se posso dizer assim, sem incorrer em preconceitos. Ah!Eu queria nesses momentos ser assim um jovem másculo, para partir com eles, sem perigo de promiscuidade, de uma moça entre rapazes, num espaço tão exíguo, contraditório no meio daquela amplidão.

Rolando não tira os olhos de mim, que me afastei, novamente, e recoloquei-me no meu ponto preferido de observação, a minha cadeira da varanda. Percebo que ele quer desembaraçar-se da curiosidade e entusiasmo de Rôdo, e a pretexto de dividir um pouco do charque e do vinho, se aproxima de mim. Eu sorrio e aceito uma lasca e um gole, brindando a ele, o aeronauta, herói que veio do céu.
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De noite rolo na cama, o calor não me deixa dormir, ou será a minha mente, melhor, meu coração inquieto? De calcinha somente, abro a porta do meu quarto, que dá para a varanda sobre o jardim, cujas touceiras brilha, fosforescentes sob o luar. Uma leve brisa do pampa evapora o suor do meu rosto, e faz um cafuné nos meus cabelos. Exponho meus pequenos seios a essa brisa que acaricia minhas aréolas e os bicos dos meus mamilos, que se tornam tesos. E eis que acontece o previsível: Rolando está ali, de repente, com a mesma idéia de fruir a brisa noturna desta noite predestinada. Só me resta permanecer natural em minha nudez, como e uma náiade do luar, e exclamar um singelo “oi” de saudação, como se ele fosse um indiozinho da mesma tribo, infantes da mãe Natura, sob as estrelas deste pampa.

Rolando se comporta de acordo e não desvia o olhar, para não parecer constrangido, ao contrário põe-se a conversar com naturalidade, a fala mansa, pousando intermitentemente o olhar sobre os meus mamilos, arrepiados pela brisa... agora deste olhar.

Então, ele finalmente me toca os ombros com suas as mãos fortes de balonista, e puxa-me para si, para os seus beijos, ternos, sábios, mas famintos. Depois, pega-me nos braços e carrega-me para o meu leito, onde vai fazer-me voar num balão noturno, numa barquinha de suave cetim, onde eu avistarei todas as estrelas do céu, e as sombras adormecidas do meu pampa, sob o meu olhar que voa, que voa, por esta noite querida, sem fim...
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De manhã, ao despertar, já não encontro Rolando em meu leito. Ergo-me, ligeiramente ansiosa, e sem mesmo lavar o rosto corro até a varanda, como se soubesse o que veria.

Rolando está recolhendo a âncora, e faz-me somente um aceno, a mim e a Rôdo, enquanto o balão sobe e se desloca empurrado pelo pampeiro matinal. O aeronauta me deixara no porto, como tantas, marinheiro dos ares, que não me carregaria consigo, já que eu voara com ele toda uma noite, enchera-me de seu sumo concentrado, de aventureiro, e podia partir porque eu o esperaria, como todas, que ele voltasse um dia, daquela linha do horizonte, que eu avistaria, não como “ *un p´o de fummo”, mas com a tocha acesa do seu balão colorido, com a sua barquinha de vime transmutada em seda, numa noite mágica...

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Nota * : “um p´o de fummo”: alusão ao verso da famosa ária da ópera Madame Buterfly de Puccini.

sábado, 3 de novembro de 2007

O Intermediário ( de Alma Welt )

(dos “Contos Secretos”, de Alma Welt)

Andei durante uma hora, em marcha acelerada pelo meu bairro, e volto suada, ansiando por um banho e pôr-me refrescada, com roupas limpas e belas, para recomeçar a pintar. Sim, porque sou adepta, como Leonardo da Vinci, de pintar com as minhas melhores roupas, mesmo que seja para, eventualmente manchá-las, irremediavelmente.
Entro aceleradamente no ateliê, e vou direto para o chuveiro, atirando a roupa suada pelo caminho. Durante o banho demorado, delicioso, em que costumo acariciar-me voluptuosamente, sentindo imenso prazer em estar viva, em ser jovem e bela... e ainda por cima gostar tanto de mim mesma, conseqüentemente, da vida, ouço passos no ateliê e sobressalto-me. Será que na minha impaciência em banhar-me, esqueci a porta aberta, ao entrar? Fecho a torneira, ausculto um pouco, estendo a mão, pego a toalha e enrolo-me nela imediatamente. Como tudo isso é supérfluo, inútil, embora quase instintivo!
Entreabro a porta, ressabiada, e pé-ante-pé caminho para o ateliê, irracionalmente, pois em direção ao perigo que suspeito.
Então... sou subitamente agarrada.

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Na delegacia, em lágrimas, mal vestida, molhada, com marcas e sangue pelo corpo, trato de repetir para o delegado, pela quinta vez, o que aconteceu, como fui... ai! mais uma vez, estuprada. Isso está se tornando
recorrente, déja-vu, senão banalizado, em minha vida. Uma imensa vergonha me toma, logo substituída por uma revolta, que me faz agarrar subitamente as lapelas do delegado, tentando sacudir o imenso homem, gordo, que me olha consternado:
— Onde o senhor estava? O que faz para proteger mulheres como eu? O que é a polícia?— Eu gritava essas perguntas irracionais, em lágrimas, desfigurada, desesperada.— Ai! Quero morrer ou... matar! Aiiiiiii!
Ele me cobre as mãos com as suas patas gordas, mas com carinho, e as retira da sua lapela, segurando-as sempre, as recolhe ao seu peito imenso, fofo, quase... maternal. Minha cabeça então se inclina ao seu peito e afunda nele, soluçando, enquanto esse homem gordo, que deveria ser feroz, acaricia minha cabeça paternalmente, de maneira delicada, que lentamente vai-me apaziguando.
—Senhorita Alma, sossegue, vamos pegá-lo. Não será fácil, pois temos poucos dados, e nenhuma pista do agressor, mas havemos de pegá-lo, eu lhe prometo! Vamos, sossegue, assim... vou levá-la em casa, não se preocupe, a senhorita já sofreu demais. Vou manter uma certa vigilância em torno do seu prédio, a senhorita verá. Estará segura, nada mais vai ocorrer. Conte comigo. Vamos, vamos, assim...
Ergui-me e caminhei, penosamente, amparada pelo homem gordo, gentil, paternal, ao qual eu queria me agarrar, para me sentir protegida, de casa tão distante...
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Tomei as providências para me proteger. O exame de corpo de delito, humilhante... horrível (a recolha de sêmen, o exame anal, com mais recolha de sêmen, desinfecção rápida, uma injeção de antibiótico), depois a receita da pílula do dia seguinte, a recomendação de teste de Aids para daqui um mês ou dois. Eu tentava o tempo todo lembrar-me do rosto do meu agressor, mas não conseguia. Lembrava-me apenas de sua brancura, dos pelos loiros de sua mão na minha boca. Já era alguma coisa, dissera o delegado Robinson, devia ser um homem louro, um galego, como dizem, talvez de olhos azuis. Mas não me lembrava, surpreendentemente dos olhos, eu não lhe vira os olhos, mas vira a sua boca, por um segundo, de lábios grossos, mas bonita, antes dela colar-se à minha, e me invadir com sua língua ávida, em todas as direções. Aliás, essa língua devassou em seguida todos os meus orifícios. Lambeu meu corpo inteiro, com ênfase nas axilas, antes de deter-se nas minhas partes baixas, que devassou demoradamente, furiosamente, mordendo também, antes de enfiar-me os dedos, e a mão inteira. Ele queria, certamente devorar-me, sua fome de carne jovem perfumada, era um frenesi! E eu fora o seu pasto, ou melhor dizendo, o seu repasto.Nada deixara ele de fazer comigo, em todo o catálogo de fantasias bizarras... de parafilías. Essa é que era a verdade!
Agora eu teria de viver com aquilo, buscando recuperar a minha auto-estima, e se possível, a minha tendência inata à alegria, que eu temia pudesse ter morrido.

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Passou-se um mês daquele ocorrido. Eu reforçara as trancas das portas, da entrada social e da cozinha. Interroguei minha empregada longamente, mas fiquei sabendo que o seu namorado era negro, e os anteriores mulatos. Foi descartada, portanto, essa pista. O homem loiro, não cheirava sequer a suor, talvez não fosse um trabalhador, talvez fosse um morador do próprio prédio, um vizinho de algum outro andar. Sim, porquê não? Essa nova suspeita devia ser levada ao delegado Robinson, ele concentraria as pesquisas a uma área mais restrita, e talvez...eu também pudesse investigar por minha conta.
Eu estava metendo na cabeça, por alguma razão, que precisava confrontar-me novamente com aquele homem, para vingar-me, ou para me libertar dele... já que ele ocupava de maneira crescente os meus pensamentos, e a minha memória que se ampliava, perigosamente, talvez confundindo-se com a fantasia, pois eu sentia nas minhas narinas, de forma crescente o seu cheiro, másculo, que não me horrorizava, não me enojava.
Então, começaram os sonhos.
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Acordei, banhada em suor. Estava confusa, estarrecida com meu próprio sonho, eu acordara para fugir dele. Do seu desconcertante prazer. Sim, eu acordara molhada também por dentro! Coloquei dois dedos dentro da minha vagina, e os retirei encharcados e... perfumados. Lambi-os. O quê está acontecendo? Por que não lembro do objeto do desejo, neste sonho? Nem sequer do sonho que se desvaneceu rapidamente, ai! vou ficar louca. Movo-me em meio a brumas, não conheço o meu próprio universo, muito maior, mais nebuloso e obscuro do que eu pensava: meu próprio universo desconhecido... Ou será o mundo, tão vasto que nos rodeia e... permeia. Ai! nada sei. Não sabemos nada. Preciso de um pai. Vati! Como me fazes falta! Não para me ensinares mais. Nem para me esclareceres o que a mente racional não pode esclarecer, mas para me tomares no colo, a minha cabeça pousada de lado, no teu ombro, tua mão enorme sobre minhas costas tão pequenas, minha bundinha sentada no teu braço, como um bebê, sim como um bebê. E descansar, descansar, sem medo dos sonhos!

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Tento levar a minha vida normalmente, isto é, trabalhando muito. Mas isso não é mais possível, pois agora, o interfone toca todos os dias, em horas diferentes, interrompendo-me. È sempre o delegado Robinson, que vem sondar-me, a pretexto de conferir novas pistas, na sua pretensa investigação. Tornou-se um tanto untuoso e segura-me as mãos, desnecessariamente. Parece ter gostado demasiado de mim, e gostaria de ver novamente a minha cabeça encostada no seu peito gordo, do qual pude sentir as tetas, por uns momentos. Isto está se tornando absurdo. Desvencilho-me do policial carinhoso, com frieza crescente, o que parece mais espicaçá-lo, infelizmente. Quanto à minha própria investigação, não há nenhuma... a não ser dentro de mim mesma, essa é que é a verdade. Tento reconhecer o agressor dentro do meu sonho recorrente, que se torna infelizmente mais doce... e prazeroso, a cada noite. Já não reconheço o meu trauma, vejo-me desejando que os sonhos não acabem, acordo banhada em suor perfumado! Sim, e molhada, o que me faz fechar os olhos novamente para tentar continuar o sonho que se interrompe sempre no momento de... ai!, não ouso dizer, não ouso pensar o que se interrompe, pois creio que vejo os olhos do agressor, e não posso vê-los, não devo reconhecê-los. Eles o perderiam! Eles o destruiriam!
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Anseio pela hora do sono. Anseio dormir e não mais acordar, desde que num sonho sem fim, nos braços do meu agressor, que aliás não me agride mais, há muito tempo. Ele me acaricia, minha cabeça em seu ombro, seu largo peito pressionando o meu, achatando os meus pequenos seios. Quanto à sua penetração, ela faz parte inerente de mim. Ela me pertence, quero retê-lo dentro de mim, para sempre! E o acordar, sim, é que é uma punição, vejo-me sozinha, insuficiente, e estendo os braços no escuro dentro das imensas noites do meu leito vazio. Preciso de um amor, necessito o meu amor!. Não vês, ó Noite, que o meu corpo, tão belo, foi feito para o amor, para as carícias? Vê a minha pele: é pura seda. Por quê, por que? Olha a pura rosa das minhas mucosas, não mais feridas. Olha estes lábios, cheios, perfeitos, feitos para o beijo. Ai! Não me deixa sosinha, ó Noite, em meu desvario, em minha solidão de amorosa... sem amor! Precio ser possuída, desfrutada, na longa noite de loucuras. Mesmo que seja para ser machucada novamente! Toma-me tu, ó Ser da Noite, estou perfumada de mim mesma, podes cobrir-me com o teu suor de homem, mas não deixes de gemer, de gritar de prazer com a minha carne em flor, que te ofereço. Ai! Queria morrer de amor, e não tenho um amor!

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O delegado Robinson vem me visitar em horário de trabalho. Tornou-se decididamente inconveniente. Mas sirvo-lhe uma chávena de chá, que ele degusta lentamente para mais demorar-se aqui, junto a mim, eu percebo. Não traz nada de concreto e assume cada vez mais esse fato: ousou mesmo dizer que o agressor
evaporou-se, o que me pareceu uma metáfora, no mínimo provocativa. Este homem tem veleidades de psicólogo, e sugere sutilmente, que devo armar uma
armadilha para o agressor, fingindo dormir, com a porta aberta. Ele, Robinson estará por perto, atento ao meu chamado. Isso tudo é absurdo. Como pensa que vou me expor assim, aos dois, na intimidade do meu leito, com meu traje de dormir, acetinado, sobre a pele? Que querem eles? O estupro, novamente?
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É noite. Estou deitada, languidamente, com meu lindo peignoir de seda, branca, que me expõe mais do que me cobre. Deixei a porta aberta, escancarada, não a esqueci assim, e estou nua sobre o meu leito enorme de viúva, de que me lembrei que sou. Há tanto tempo! Meu marido morreu jovem, de tanto beber. Mas não sou culpada! Não sou viúva-negra, nada tenho da Aracne. Olhem, meus pelinhos: são ralos, e arruivados! Sou toda exposta, nada tenho a esconder, e não tenho veneno. Sou frágil, vulnerável, e nem sequer me protejo. Expulsei o delegado vigilante, o inconveniente e gordo intermediário. Estou só, nas noites infinitas e espero o meu amor, com sua penugem loura, seus olhinhos azuis. Vem ó príncipe noturno, não te temo mais, és solar dentro da minha grande noite, e eu te espero para que te redimas, possuindo-me com força, mas com minha anuência redentora. Podes machucar-me, mas ama-me! Ama-me! Eu te conclamo!

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02/05/2005

sábado, 27 de outubro de 2007

Fac-Símile de crônica da Alma


Nota de Editora:

Esta crônica da Alma, pungente, foi encontrada por mim, Lucia Welt, sua irmã, na arca de seus inéditos, hoje, no sótão do casarão aqui na estância, e resolvi publicá-la como documento scaneado. Basta clicar em cima para ampliar.

Entrevista com ALMA WELT

CAFÉ LITERÁRIO entrevista a poetisa e musa gaúcha

Nosso repórter, escalado para entrevistar esse novo fenômeno da nossa literatura, a contista e poeta (além de pintora), Alma Welt, gaúcha radicada em São Paulo, voltou com um ar meio siderado, quase em estado de choque, e adentrou a nossa redação com um sugestivo assobio. Contou-nos que foi difícil, a princípio, deslanchar a entrevista, pois a beleza da moça é, no mínimo, perturbadora. Descreveu-nos uma mulher de 28 anos, alta, muito branca, loura “luminosamente” natural, “rasgados” olhos verdes. A perfeição de sua pele, sem uma única mancha ou sinal, despertou no nosso pobre repórter aquela comparação em desuso: “pele de alabastro”. Além disso, a boca da moça, seus lábios cheios na medida certa (há uma medida?) eram de uma beleza “hipnótica”, como seus olhos verdes (de gata?). Tivemos que calar o entusiasmo do nosso repórter, exigindo dele, logo, a entrevista por escrito. Suspeitamos que o infeliz está irremediavelmente apaixonado. Tivemos que mandá-lo pra casa mais cedo, pra tomar um banho frio. Mas vamos ao que interessa. A entrevista:
CL: Alma, posso chamá-la assim ? É o seu verdadeiro nome, estou certo? Lendo seus livros temos a impressão de ser um pseudônimo, de tão adequado ao seu conteúdo. Welt ( mundo, em alemão) nos remete ao Anima Mundi, de Jung. O que você tem a dizer sobre isso?
ALMA: Meu pai já era um admirador de Jung, desde sua juventude, e é possível que tenha pensado nele ao batizar-me com este nome, já que o nome de família é Welt. Meu pai esperava muito de mim, não sei bem porquê, já que sou a caçula apenas das mulheres. Tenho duas irmãs mais velhas e um irmão dois anos mais moço, Rodolfo (Rodo), que é o que mais aprecio, embora seja bem diferente de mim.
CL: Percebe-se isso no seu conto “O Testamento”, aliás, belíssimo. Mas a personalidade do rapaz parece apenas esboçada nesse conto. Para dizer a verdade, uma espécie de Dimítri Karamázov, muito sintetizado. É intencional essa analogia não explícita? Pois a sua própria figura, Alma, no conto nos remete ao irmão caçula Aliocha, enquanto o seu Monsenhor Ângelo é nitidamente o stáriets Zósima. Estou certo?
ALMA: Sim, sim. É possível. Mas foi um processo inconsciente. Não pensei nisso quando escrevi o conto. Talvez as semelhanças sejam devidas à estrutura arquetípica da própria estória e dos tipos humanos que a compõe. Quando se escreve assim como eu, num fluxo espontâneo e contínuo de inspiração, ocorre que os personagens, naturalmente, ocupam posições demarcadas, como peças num tabuleiro invisível existente na vida. Daí, também associarem meus contos à psicologia junguiana, que conheço pouco.
CL: Alma, no entanto é notável, na sua maneira de escrever, a presença de uma cultura livresca, assimilada. E surpreendentemente, da natureza clássica dessa cultura. Como você a adquiriu? Você é uma grande leitora?
ALMA: Bem, eu li alguns clássicos. Não foram tantos assim, mas os li bem. Posso dizer que conheço bem a Ilíada e a Odisséia de Homero, mas por traduções, é claro, além dos líricos gregos de Safo a Píndaro. Conheço a literatura de Dostoiéwski e de Edgar Allan Poe, além de Hoffmann, meus preferidos. Mas não cabe aqui citar todos os autores que li. Meu pai era um grande leitor. Um erudito. E tinha uma grande biblioteca em nossa casa, na estância. Aliás, essa biblioteca ainda existe, como tudo o mais em nossa casa, que permanece como ele a deixou, de uma maneira um pouco mórbida, na verdade.
CL: A propósito, Alma, nota-se uma grande nostalgia da casa paterna em certos poemas seus, que me lembram o tom leopardiano do “Vaghe stelle dell’Orsa”...sul paterno giardino scintillanti”.
ALMA: Sim, sim, é bastante arguta essa tua ilação. Realmente, eu mesma pensei nisso a posteriori.
CL: Seria Leopardi, também, uma das suas influências literárias?
ALMA: É possível. Mas não estou preocupada. Sempre se sofre influências da grande arte ao nosso redor. Mas creio que o importante é o timbre e o teor da assimilação dessas influências. Eu amo a literatura, bem como a Pintura e a Música clássicas, e vivo imersa num mar de referências que me sufocaria se não estivessem naturalmente digeridas. Elas me perspassam como os raios de sol atravessam a atmosfera, agindo sobre ela e aquecendo-a. Desculpa-me a imagem um tanto pretensiosa...
CL: Não, Alma, está perfeitamente expressa. Concordo com você . Percebe-se essa assimilação perfeita de sua herança cultural. Você não parece pedante em sua literatura, mesmo quando cita autores famosos como Nietzsche, por exemplo. Aliás, percebe-se que você o leu bastante, ou gosta muito dele. É certo isso? Fale-me da “alegria mais profunda que a dor”.
ALMA: Sim, devo reconhecer que Nietzsche me impressionou muito. Já era um preferido do meu pai., talvez por sua ascendência germânica. Tu notaste a aposta que faço na profundidade da alegria, que é o aspecto mais simpático de sua doutrina. Mas nada de super-homem, nem de “vontade de potência”. Essas coisas são perigosas, embora deva reconhecer que foram distorcidas em seu propósito inicial, pelos nazistas com a colaboração da irmã dele, Elisabeth. Meu pai me falava sobre isso. Devo frisar aqui que meu pai era aristocrático mas não nazista. Aliás, ele tinha horror ao nazi-fascismo, o que já não se pode dizer de seus pais, meus avós. Mas a leitura de Dostoiévski me despertou a simpatia pelos pobres, humilhados e ofendidos, e fui procurá-los também na literatura brasileira e os encontrei em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, que li bastante. Aliás devo dizer, que também para mim, como para muita gente, o Grande Sertão: Veredas é o maior livro do mundo, junto com os Irmãos Karamásovi.
CL: É curioso, Alma, isso tudo vindo de uma escritora com apenas 28 anos. Você não é muito contemporânea, você sabia? E além disso, você acaba de dizer, em outras palavras, que conhece o povo e sua miséria através da literatura, quando basta olhar em torno, neste nosso país, para depararmos com a pobreza e seus horrores. O que você me diz disso?
ALMA: Tu não poderias esperar de mim que me metesse na periferia para conhecer o povo, mas andei na caatinga nordestina, e narrei isso num conto: “Na trilha dos menestréis”. E você deve levar em consideração a intuição do artista. Um poeta ou escritor não precisa ter estado na África para descrevê-la e contar maravilhosas aventuras passadas em seus desertos ou em suas savanas. Há grandes exemplos disso. Meu pai, quando criança, lia os contos de um escritor alemão provinciano que nunca saiu de sua aldeia na Bavária, e escrevia, antes da Segunda guerra, best-sellers populares ambientados no Far-West americano, estórias vívidas e verossímeis de índios pele-vermelhas e cowboys, que eram exportadas até para os Estados Unidos. Os americanos as adoravam. Poderia, também, citar o famoso poema de Emily Dickinson: I never saw a moor...( eu nunca vi uma charneca )... (bem posso imaginá-la).
CL: Mas, Alma, não quero que pareça uma crítica, que, afinal, não é minha função, mas você não usa o povo brasileiro, como material, ou mesmo pano de fundo, a não ser num ou dois contos seus, no “Meu pequeno vizinho”, lindo conto, e singelo, parecendo uma crônica, e no belíssimo “Na Trilha dos Menestréis” O seu Jeová, o negro do conto “A Harpia”, a meu ver a sua obra prima, é um tanto idealizado, embora se perceba que isso é intencional, dado o caráter simbólico do personagem, dentro de um conto que é, todo ele, uma magnífica alegoria. Mas, mesmo naqueles, você não focaliza propriamente a pobreza, a privação, e a injustiça da nossa monstruosa distribuição de renda.
ALMA: Realmente, CL, mas parece-me que tu estás me cobrando uma tomada de posição política, quando já fiz, há muito tempo, minha opção por uma tomada de posição filosófica. Estou interessada, sobretudo em temas psicológicos e essenciais da condição humana, como bem disse o meu prefaciador, o pintor e poeta Guilherme de Faria. Ele, nesse prefácio, enumera esses temas, segundo a sua visão bastante arguta.
CL: Mas, Alma, conte-nos, então, como você foi descoberta por um pintor famoso, que, recentemente, revelou-se poeta de cordel. Como você conheceu o Guilherme de Faria?
ALMA: Ah! Isso foi um encontro providencial, que contei no meu conto “Anagramas”. Ele é um amigo da grande gravadora Renina Katz que conheci um pouco antes e da qual fiz o primeiro anagrama.
CL: Sim, Alma, aquele espantoso anagrama em que aparece toda uma teogonia órfica. Admirável e instigante, lembro-me dele. Mas, continue.
ALMa: Pois é , Guilherme tendo tomado conhecimento através da Renina, do anagrama dela, feito por mim, e tendo tido um sonho enigmático, a princípio, procurou-me para que eu o ajudasse a desvendar esse sonho. Fiz o seu anagrama, que, afinal, foram cinco anagramas completos, que decifrados, explicaram o significado do seu sonho de maneira surpreendente até para mim. A partir disso tornamo-nos amigos.
CL: Perdoe-me a indiscrição, Alma, mas apenas amigos? O seu conto sugere muito mais, não é verdade? Não terá sido o começo de uma paixão?
ALMA: Realmente, não posso negar, mas prefiro não falar disso.
CL: Mas, Alma, eu insisto: você está apaixonada?
ALMA: Pode-se dizer que sim. Estou feliz. Ele é um homem maravilhoso, e um artista famoso, que tem apenas uma parcela de sua imensa obra conhecida do público. Além disso ele é um fantástico poeta de cordel, que escreve estórias profundas sobre o pano de fundo da caatinga nordestina, com espantosa autenticidade, visto não ser nordestino e nem sequer ter ascendentes nordestinos. Ele é paulista de 400 anos. O que mais uma vez comprova aquela tese da intuição do artista.
CL: Sim, estou disposto a concordar com você, Alma. E também a marcar uma entrevista com o Guilherme. Mas previno-a que farei perguntas indiscretas a ele, sobre você. Aceita?
ALMA ( rindo, e que bela risada ): Sim, CL, aceito. Sei que ele só dirá coisas bonitas a meu respeito.
CL: Quando você deu essa risada, agora, lembrei-me da gargalhada da Greta Garbo na Dama das Camélias, acompanhada de um glissando do piano que alguém tocava nessa cena (quando ela disse: “Pode ser o grande amor da minha vida! ) Você certamente viu esse filme...
ALMA: Sim, e lisonjeia-me a tua comparação. Nunca tinha pensado em ter qualquer semelhança com ela.
CL: Sim, Alma, há, e impressionante. Não que vocês se pareçam fisicamente. Ma, o timbre de suas feminilidades, e a presença. Bem, não quero encabulá-la.
ALMA: Obrigada, CL. Tu és gentil. Mas, longe de mim...
CL: Vamos então, mudar de assunto. Você reparou que nenhuma vez você cita a televisão ou sequer um aparelho desses nos seus contos? Não é insólita essa omissão, numa época como a nossa?
ALMA: Não, não mesmo. Como disse, estou interessada no essencial. Mas, infelizmente, não é verdade que eu não cite a televisão nenhuma vez. Citei-a, uma única vez, até agora, no conto “O Violino de Mozart” onde a personagem (eu mesma) vê o seu amado Gino numa entrevista na televisão. Mas eu poderia passar sem essa. Seria até mais interessante a omissão total desse veículo, como para tornar os meus contos mais atemporais. Além disso, a televisão já é suficientemente falada e discutida.
CL: Mas, Alma, sejamos sinceros, se a Globo, por exemplo, quisesse um texto seu para um caso especial, ou para o Brava Gente, você não aceitaria?
ALMA: Aceitaria, claro. Nenhum momento fiz qualquer crítica a essa mídia, e eu mesma já derramei muitas lágrimas com algumas novelas ou mini-séries. A sua versão do Grande Sertão: Veredas em mini-série foi admirável. Bem com O Primo Basílio e Os Maias. Gostei muito, também, das versões para a televisão das peças do grande Ariano Suassuna: O Auto da Compadecida e A Mulher Vestida de Sol. Foram primorosas e endossadas pelo próprio autor, segundo se soube.
CL: Então, Alma, mudemos mais uma vez de assunto. Já que você tem opiniões bem definidas sobre tudo, ou quase tudo. Estou enganado?
ALMA (rindo): Não estás enganado. Quando se tem uma visão do mundo, os detalhes técnicos, podem às vezes não importar. Se tu me perguntares sobre petróleo, vou logo dizendo que emporcalhou o mundo, e não adiantará tu me falares nos grandes interesses das grandes companhias e a relação desses interesses com a economia mundial. Trata-se a meu ver, de um combustível obsoleto e poluidor, que poderia há muito tempo ter sido substituído pelo hidrogênio, retirado da água do mar, fonte inesgotável, ou ainda pela energia elétrica através de baterias giroscópicas. Bastava para isso, vontade política, ou mesmo uma superação da chamada estupidez humana.
CL: Alma, você agora me surpreendeu. Então você tem opiniões técnicas e políticas, ou pelo menos ecológicas. Vejo que por aí há um veio a ser explorado.
ALMA: Não, prefiro que não, se tu não te importares. Sinto-me quase infantil quando falo dessas coisas. Sou apenas teórica e um tanto idealista nesse campo, e não gosto me sentir assim, já que não atuo de maneira prática nessa área. Sou apenas uma artista: pintora e poetisa.
CL: Sim, Alma, você é uma das últimas a aceitar esse epíteto: “poetisa”, que soa como uma coisa antiga, da época das “diseuses” e de Florbela Spanca, ou mais tardar de Cecília Meirelles, com quem, aliás, a sua poesia tem um visível parentesco. Você as aprecia?
ALMA: Sim, muito. Florbela Spanca especialmente, pela intensidade de sua paixão. Mas ela tem um tom mórbido e ressentido contra a vida, com o qual não me identifico. Ela me soa como uma mulher apaixonada e delirante, mas infeliz. Enquanto que eu sou apaixonada e feliz, apesar de algumas quedas, acidentes de percurso. Mas até hoje sempre subi, sempre saí do buraco, para alcançar novamente a alegria, sem a qual não poderia viver.
CL: Sabe, Alma, esse é o aspecto que mais me impressionou no seus contos e nos seus poemas. Essa aposta na alegria. Confesso que antes de conhecer a sua obra, eu não acreditava que a alegria desse muito assunto. Acreditava naquele axioma: “os povos felizes não têm história”. Mas você me fez ver uma certa profundidade e riqueza na alegria e na felicidade, e entender aquele verso de Nietzsche que você cita; “ a alegria é mais profunda que a dor”. Devo agradecer a você por isso. Mas ainda tenho a curiosidade de saber , como uma moça tão sensível como você, a julgar pelos seus textos, e mesmo pela sua pintura, pode ser feliz num mundo como o nosso. Percebe-se nos seus contos que você derrama lágrimas a torto e à direito, que você é muito chorona. Estou certo?
ALMA(sorrindo): Sim, é verdade. Derramo lágrimas com facilidade, mas se você reparar bem, quase sempre por comoção com a beleza, com o amor , com a arte. Lágrimas de felicidade, na maioria das vezes. Um sentimento do mundo que inclui, em mim, uma aposta na beleza e na grandeza do Homem. Não sou uma pessimista, e me comovo positivamente com o ser humano. E convivo intensamente com os deuses.
CL: Sim, Alma, é espantoso, nos seus textos como você parece conviver com eles, dentro de você, embora de maneira psicanalítica, como é possível na nossa época. Mas percebe-se que você se relaciona de maneira perturbadora, para você mesma, com suas supostas encarnações passadas, às quais você parece temer ou reagir, o que aumenta o mistério e o suspense de alguns contos como aquela maravilhosa “ Trilogia de Adèle”. Será isso uma técnica literária para fisgar o leitor? eu me pergunto.
ALMA: Se isso é uma pergunta, só posso lhe dizer, que sou absolutamente sincera, na minha arte. E sobretudo expontânea. Meu texto é fluente, nada premeditado, e penso que por isso posso incorrer freqüentemente numa certa ingenuidade. Não descarto essa possibilidade, disso que o meu prefaciador , o Guilherme chamou de “candura”. Mas, que eu saiba, ela é uma virtude, como ele muito bem colocou. Não devo me envergonhar dela, mesmo sendo uma escritora, não é mesmo?
CL: Bem, queria agora mudar o rumo da nossa conversa para abordar um aspecto que me intriga em sua literatura: o caráter sensual e mesmo erótico, freqüentemente explícito de alguns contos e poemas seus. Quero comentá-los porque eles me agradam. Vejo em você, sob este aspecto, uma alma pagã, bastante livre no domínio sexual, embora assombrada por outros espectros, como a sombra do mal, difusa, e a presença de encarnações passadas, nem sempre bem recebidas, e sim temidas.
ALMA: Surpreende-me essa tua captação tão arguta de um aspecto tão íntimo da minha natureza literária (e pessoal também, claro). E já que tu queres falar disso, posso apenas dizer que essa liberdade, mais do que assumida, é inerente à minha natureza, de maneira instintiva, desde a minha infância, para escândalo da minha mãe, que quis de todo modo reprimi-la, sem conseguir, claro. Eu falo sobre isso no meu conto “As Férias da Infância da Alma”, dos Novos Contos. Devo dizer que gosto muito do erotismo e considero que ainda não me dediquei a ele, verdadeiramente, na literatura. É possível que eu ainda escreva um livro de contos realmente erótico.
CL: Como Anaïs Nin, por exemplo? Você leu o seu “Delta de Vênus”?
ALMA: Sim, mas achei insatisfatório. O meu livro será mais explícito e escabroso, espero.
CL: Puxa, estou curioso e ansioso para lê-lo (risos). Mas diga-me, Alma, você leu o Marquês de Sade? Você o cita, num certo conto, mas de maneira sumária e genérica.
ALMA: Sim, eu li o Marquês. Mas o seu “120 Dias de Sodoma” eu joguei fora. Aquilo era sórdido demais e me chocou. Quanto aos outros livros como Justine, Filosofia da Alcova, O Marido Complacente, etc, apreciei certos aspectos. Mas realmente, não é o meu favorito. Prefiro, por exemplo Choderlos de Laclos, do “Ligações Perigosas”.
CL: E Henry Miller, você o leu?
ALMA: Sim, e gosto muito dele, mas não justamente das suas descrições eróticas que são muito grosseiras com a figura da mulher. Compreendo a revolta de June, contada por Anaïs Nin no seu maravilhoso Diário. June, aquela linda mulher queria, e merecia ser verdadeiramente tratada como musa, e Henry se recusava a isso. E ele suspeitava que ela se prostituíra para arranjar-lhe o dinheiro da viagem para a França. Ora, isso não importava, ou fazia dela, no mínimo uma espécie de “prostituta santa”, que ele não soube apreciar. Era um terrível machista, no fundo. Já Anaïs, sim, soube apreciar o mistério da beleza tão grande daquela mulher, a ponto de apaixonar-se por ela, de maneira mais profunda e sensível do que ele. Mas parece que ela acabou também rejeitada pela June, depois de um breve caso entre as duas, interrompendo uma maravilhosa cena de cama.
CL: Alma, a propósito, você escreveu um livro de poemas sáficos, como você diz, o “Narcísicas”, de surpreendente lirismo para os nossos tempos. Soa na verdade, como uma poetisa grega antiga, dos tempos da musa de Mitilene. E depois, o seu livro de Sonetos repete a descrição dessa paixão, mas de outra forma, aliás muito interessante, pela progressão da estória através da seqüência
dos sonetos. Eu pergunto: essa estória é real? Aconteceu com você? Aline existe?
ALMA: Não gostaria de falar sobre isso, mais do que já falei na própria poesia, nas Narcísicas, e nos Sonetos. Foi um caso muito doloroso, mas que eu contarei também num conto, que aliás, já estou escrevendo.
CL: Mas, Alma, seus leitores vão querer saber um pouco mais, desde já, sobre essa misteriosa Aline. Você não poderia comentar alguma coisa sobre ela?
ALMA: Já que tu insistes, direi apenas que esse caso quase me derrubou. Entreguei-me demais a esse amor, como os leitores poderão perceber nos meus poemas, e isso quase me foi fatal. Ela retirou-se, subitamente, da minha vida, o que me tirou o chão e o alento. Desci muito fundo, no inferno da alma, e tive que fazer um esforço muito grande para subir. Mas não renego nada. Saí afinal mais fortalecida , ou pelo menos calejada.
CL: Alma, essa sua experiência rendeu belíssimos versos de amor, de um lirismo incomum na poesia contemporânea, a meu ver. Confesso que disputei esta entrevista, justamente pela admiração que esses versos me causaram.
ALMA: Fico gratificada e comovida com isso. Mas se penso novamente nesse caso e nesses versos ponho-me a chorar. Vamos mudar de assunto, sim?
CL: Está bem, que pena... Eu poderia perguntar-lhe ainda tanta coisa, mas nosso espaço está chegando ao fim. Fale-me daquele insólito livro de poemas
“Amar Humores”. Como você o concebeu?
ALMA: Bem, o que tu queres realmente saber? A minha motivação? O humor misturado ao erotismo, de uma ótica feminina, claro. E satirizando, às vezes, a ótica masculina. É um alvo talvez um pouco difícil, e posso não ter conseguido. Mas é um texto espontâneo como todos os meus textos. Confio muito no que jorra da minha intuição. E aquilo sou eu, como, aliás, todos os meus poemas, contos e pinturas. Só posso falar de mim mesma, mas fazendo-o assim, de peito aberto, tenho a esperança de ser compreendida por outras mulheres e mesmo pelos homens. Só se pode ser universal, a partir da nossa aldeia, do nosso bairro, do nosso quarteirão, quer dizer, da nossa pele. Não é, mais ou menos, o que dizia Nelson Rodrigues? De qualquer maneira quero falar de mim, de minhas experiências amorosas e até mesmo eróticas, pois o ato de escrever já me basta. Eu sei que é narcisismo, e daí? Isso me dá imensa satisfação e isso por si, já me justificaria perante mim mesma. Mas, se há um editor e leitores, então, meu exibicionismo fica ainda mais legitimado, não achas?
CL: Eis aí uma declaração franca e perturbadora. Mas, na verdade, posso dizer, sem ser um crítico literário, que a qualidade dos seus textos o justificam plenamente, para além da necessidade confessional que você mesma declara haver neles. Certamente haverá muitos leitores e fãs. Eu mesmo já sou um deles. Nossa entrevista chegou ao fim. Posso dar-lhe um beijo?
ALMA: Sim, tu és doce, afinal...

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Alma e Jonas


Alma e Jonas -óleo s/ tela de 120x160cm, de Guilherme de Faria, que ilustra o conto "Meu pequeno vizinho", dos Contos da Alma, de Alma Welt. Coleção Flavio Guimarães, São Paulo

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Meu pequeno vizinho (crônica de Alma Welt)

Estou trabalhando há horas numa grande tela. Tenho a cara e as mãos sujas. Luto com as tintas, tentando domá-las, às vezes dando-lhes rédeas, deixando-as reinar em manchas quase aleatórias. Do balanço entre o casual e o deliberado, nasce uma pintura mágica, que deve parecer ter nascido sozinha, pronta, e com a sensação ilusória de facilidade quase divina. Esta é a arte que busco, quando noto uns olhos atentos ao meu lado.
Um menino pretinho, de grandes olhos, que, sem sorrir, observa-me e ao quadro. Espantei-me com a sua presença, antes de perceber que eu esquecera a porta aberta quando levara o lixo para o corredor logo de manhã cedinho.
Meu primeiro movimento foi fechar a porta; depois, agachando-me para pôr os meus olhos nos seus, disse-lhe:
-E então? Você gosta de pintura?
-Eu gosto é de limpeza...- respondeu ele, com um lento e cantado sotaque mineiro.
Caí numa gargalhada. Entendi logo que se tratava do filho da faxineira do vizinho. Desconcertada mas enternecida (talvez eu esperasse o veredicto favorável de uma criança pura e inocente para ter a certeza da aprovação divina do meu trabalho). Peguei-o pela mão e levei-o à cozinha, para preparar-lhe um café da manhã.
Daí por diante ele apareceria quase todos os dias, certamente para o café com leite e as bolachas que o deliciavam. Mas depois permanecia vendo-me pintar. Eu já não lhe perguntava o que ele achava. Pensava ser mais prudente deixá-lo manifestar-se espontaneamente. Comecei a lhe dar uma paleta com as cores que uso, para que ele pintasse uma telinha sobre a mesa. O resultado foi surpreendente. Toda criança é artista. Justamente porque transfigura a realidade em signos simplificados, emblemáticos e poéticos. Tudo se torna arquétipo na visão infantil. É na verdade uma visão sagrada, imemorial, arcaica como a humanidade.
O quadrinho de Jonas (esse era o seu nome) me encantou. Pressenti nele um futuro primitivo rural. Sua mãe vinha do campo, da lavoura, e ele herdara atavicamente essa visão de campos lavrados, bois e montanhas de Minas Gerais. Como podia ele lembrar-se do que não vira com seus próprios olhos? Ele tinha nascido aqui na cidade. E vivia suspenso em apartamentos, correndo por feios corredores de prédios, povoados somente por latas de lixo. Crianças, raramente ele as via, pois passavam às vezes direto para os elevadores, acompanhadas por seus pais. Eu, sua vizinha, solteira, parecia encantá-lo. Olhava-me muito. Creio que via a criança dentro de mim, porque eu pintava. Sim, devia ser isso! Não sou exatamente o tipo físico ou mental que chamavam em outros tempos de femme enfant, mas todo artista é uma criança e passa a vida a recuperar essa criança em sua obra. Eu, por exemplo, hei de pintar um dia como uma menina de seis anos se tudo der certo.
Lembro-me de quando levei meus desenhos e pinturas, no começo de minha carreira, para mostrar ao professor Bardi. Ele disse: “Alma, não se iluda. O maior pintor brasileiro de todos os tempos é José Antonio da Silva. Tudo o mais é pintura européia”.
Agora eu estava disposta a incentivar Jonas a ser um pintor primitivo como eu gostaria de ser, sem poder. O tempo passou, o menino pintava em meu ateliê todos os dias. Era também o meu ajudante e com o tempo ele já me faria falta. Já não podia passar sem ele. Era moldureiro, encaixotador, e até faxineiro. Pegou na vassoura com prazer depois que lhe contei uma anedota de Portinari. O pintor foi encontrado certa manhã, por um visitante, grande colecionador, com a vassoura na mão, varrendo o ateliê. O visitante, surpreso, perguntou-lhe: “Mas, mestre, o senhor, varrendo o chão? E Portinari respondeu-lhe: “Sim, meu caro, a vassoura é um grande pincel”.
Jonas adorou essa história e agora varria o ateliê todas as manhãs. Eu estava encantada. Percebi o valor das metáforas na vida de uma criança. Na vida de todos nós, na verdade.
Jonas se tornou um pintor, voou, sumiu. Partiu com sua mãe para Minas um dia. E eu, olhando algumas magníficas telas que ele me deixou, sabia que ele não mais se perderia e que voltara às montanhas que eu imaginava, para reencontrar suas raízes.
Um dia, minha vizinha, abalada, tocou a campainha para me trazer uma coisa. Sua ex-faxineira escrevera-lhe e ela me passou a carta que transcrevo aqui, corrigindo-lhe o português:

"Senhora, não lhe escrevi antes pois a vida tem sido muito difícil, desde que voltei para cá. Agora é impossível. Meu Jonas me foi levado no ventre da baleia. Dois tiros lhe tiraram a vida. O quadrinho que tinha na mão tinha um furo no meio, sobre o seu peito ensangüentado. Envio-lhe o quadro, sua última pintura, para que o entregue à pintora que foi sua mestra. Ele a amava muito, como se pode ver no quadro. Diga-lhe que sou grata como mãe, pois meu filho foi feliz enquanto viveu a sua curta vida e eu sei que ele aprendeu essa felicidade com a pintora que ele venerava. Sua religião era a arte, e ela, a sua santinha. Os quadros de meu filho ficaram conhecidos aqui na região. Estava ficando famoso, pelo menos entre nós. Mas, por algum mistério, insistia em me ajudar na limpeza todas as manhãs, manejando a vassoura com prazer, assobiando uma música estranha, mas bonita, uma tal de cantilena, de um homem que vira lobo, que a pintora lhe ensinou. Agora não posso mais. Não sei como viver sem meu Jonas, mas sinto também demais dar essa notícia a ela. Não tenho coragem. Faça isso por mim, entregue-lhe o quadrinho, que não posso mais olhar para ele com aquele furo no meio".

Agradecida,
para nunca mais,
sua, Dasdô.

Meu coração partiu-se, minhas lágrimas corriam olhando aquele quadrinho, onde se via uma moça loira com uma vassoura enorme na mão, em frente a uma tela no cavalete, entre montanhas azuis e verdes.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Alma e o quadrinho de Jonas (pintura de Guilherme de Faria)


"Alma e o quadrinho de Jonas"- óleo s/ tela de 100x100cm de Guilherme de Faria, que também ilustra o conto "Meu pequeno vizinho", dos "Contos da Alma", de Alma Welt.

sábado, 6 de outubro de 2007

Salomão ou Lear, de saias (de Alma Welt)

(dos Contos Pampianos, de Alma Welt)


Estou só, à frente desta estância, comandando o andamento da casa e da vinha. E isto me sobrecarrega, já que não quero abrir mão de minha pintura e poesia. A posição de “diretora”, ou administradora deste pequeno universo, me coloca em situações inusitadas, de um certo poder, até mesmo sobre o destino de um número de criaturas que passaram a depender de mim, como outrora, do Vati. Este “cargo” deveria caber ao Rôdo, por acordo entre nós, após a morte de nosso pai, logo estou um tanto revoltada com meu irmão, que parece fugir de suas atribuições. Preciso explicar que Rôdo está viajando, há mais tempo do que deveria, a meu ver, com seu carrinho esporte, pelo mundo, correndo, jogando...

Os peões e suas famílias parecem me ver como uma espécie de rainha. Os homens tiram o chapéu na minha presença, e as mulheres curvam ligeiramente o joelho quando vêm até mim, na varanda, diante da minha cadeira de balanço. Eu lhes ofereço o meu mais doce sorriso, mas eles parecem receber isso como a benevolência da rainha e saem cheios de gratidão, mesmo quando me mostro impotente quanto a alguns problemas seus, de ordem pessoal, somente porquê interpreto a situação para eles, com palavras simples, e que ajudando-os a enxergar mais claramente, eles a resolvem por si mesmos. Estou dando-me conta da grande responsabilidade desta posição em que o destino me colocou, e tento fazer jus a ela. A verdade, é que, às vezes, esperam de mim um poder absurdo, e isto me deixa um tanto perturbada, principalmente com a tentação, em mim, de exercê-lo mesmo, em sua totalidade, mudando destinos, fazendo escolhas por eles. Mas debato-me, interiormente, quanto a isso, e tento refrear-me. Ah! A tentação do poder! Será legítimo o poder, dado a um ser humano, por circunstância, por nascimento... será destino, o poder? Eis, a meu ver, um dos mistérios humanos.

Galdério, nosso caseiro, está à vontade, como uma espécie de primeiro ministro, intermediando ordens minhas, ou pondo-as para serem executadas, e espera de mim uma autoridade sem contestações. Parece partir do princípio de que sou realmente infalível, ou que mesmo que erre, meus juízos e decisões trazem a marca da legitimidade, de uma herança... divina. Lembrei-me recentemente, de que há poucos anos, em São Paulo, numa interessante conversa com o grande poeta urbano Roberto Piva, este contou-me o seguinte episódio, sugestivo, de sua experiência:

—Alma,-disse ele- no final dos anos cinqüenta, na casa do Vicente e da Dora Ferreira da Silva, este, de repente, perguntou-me: “Piva, você sabe por quê o comunismo não vai durar cem anos?” “Não, Vicente,” - eu respondi, surpreso- “ por quê não vai durar cem anos?” E Vicente respondeu: “Porque o comunismo não está no inconsciente coletivo.” Afinal- continuou Piva,- ele foi profético, pois a União Soviética durou apenas 75 anos. O comunismo nunca consolidou-se na mente da grande massa, pois, em termos políticos, ou melhor, de poder, o que o homem do povo tem no seu “inconsciente coletivo” é a figura do rei, da rainha, do príncipe, da princesa... e do cavaleiro andante.

Este diálogo real, contado pelo poeta paulistano, meu amigo, me fez meditar, quanto a outras decorrências do poder, por exemplo, a estória exemplar do rei Lear, da peça de Shakeaspeare, em que este monarca, já muito velho, abdica do seu poder em favor das filhas, dando ensejo imediatamente a uma “guerra civil” em seu reino, luta fratricida, entre as irmãs com seus exércitos, disputando esse poder, enquanto o velho rei decaído e louco, ia de roldão no meio do fogo cruzado, por assim dizer (acompanhado apenas do fiel mas queixoso bobo da corte, uma espécie de corifeu desta tragédia).É interessante notar que a única filha leal ao pai, e portanto ao rei, Cordélia ( o coração) representa a anima deste homem velho, que perdeu a sabedoria, pois o poder se herda, se ganha ou se perde pela força, mas ai daquele que abre a mão espontaneamente do poder, mesmo que por velhice, pois cria o caos em torno de si, já que contrariou uma lei natural do universo, por vezes perturbadora, nada racional.(Lembrei-me do título do grande filme de Kurosawa, baseado nesta tragédia, “Ran”, que em japonês, sugestivamente significa “Caos”). Isso me faz pensar também, na situação de Fidel Castro, que contestado no seu poder por grande parte do mundo, dadas as dificuldades inimagináveis da economia do seu país devido ao bloqueio, e também, claro, pela opressão a determinados setores, nem assim abre mão do seu poder, em função de uma democracia, pois deve ter lido Shakespeare e sabe, que ao fazê-lo, precipitará uma sangrenta guerra civil, que, na verdade, a meu ver, virá de todo modo com sua morte, natural ou não.

Mas estou divagando, voltemos ao meu pequeno reino.

Hoje de manhã recebi uma moça camponesa, uma das minhas colhedoras de uvas, guria encantadora em sua beleza rústica, de grandes olhos sombreados pelo chapéu e o lenço que o cobre para amarrá-lo num laço sob o queixo. Uma espécie de corpete realça-lhe os seios, e lhe empresta um ar antigo, que remete-me mais depressa à minha condição de princesa, ou de rainha mesmo. Imbuída do meu papel, ou reconciliada com ele, graças as divagações que expus acima, eu ouço a queixa da camponesa:

— Dona Alma, quero me casar com o Léo, o guri encarregado dos batoques dos barris, e meus pais me proíbem, pois seu trabalho é desprezado e sofre chacota entre os peões. Dizem que ele só sabe tapar buracos ( ela pôs a mão na boca, acompanhada por mim mas com um sorriso, nesta reação). Mas o Léo, está tão desesperado, que me propôs... ai!, não tenho coragem de dizer ( ela cobriu pudicamente as faces com as mãos).

Tive vontade de rir, e creio que soltei uma pequena gargalhada que logo controlei, instigando-a:

—Quitéria, guria, o que o Léo pode ter te proposto? Abrir um buraco, em vez de fechá-lo?(Ela corou, com a mão na boca, mas eu logo me arrependi da brincadeira, pois a situação delineava contornos mais sérios). Querida, tu deves tomar cuidado, pois quando um homem propõe isto a uma moça simples, está sempre fazendo um teste, mesmo que ainda não saiba disto.

Quitéria ficou um pouco confusa, mas creio que captou o que eu quis lhe transmitir. No código de valores dessas criaturas, que temos que levar em conta, a virgindade é coisa seríssima, e depois do leite derramado, só resta esperar a benevolência ou o bom caráter do rapaz, que se mostre disposto a reparar o erro casando, ou então sofrer castigos e freqüentemente o desprezo da própria família, coisa que virtualmente as destroem. Mais antigamente houve casos em que o próprio pai pôs a filha na zona, como castigo e repúdio perpétuo, crueldade inimaginável nos dias de hoje, mas que teoricamente não foi apagada do código internalizado de certos pais-peões, de irmãos, e até mesmo (pasmem) de certas matriarcas camponesas. Na minha infância ouvi contar, principalmente na cozinha da estância, pela boca de Matilde, tragédias como essas. Desconfio que minha babá, depois cozinheira, falava disso para me alertar, de medo que eu própria malbaratasse minha virgindade, e nunca mais pudesse casar. Pobre Matilde, se ela soubesse o que realmente penso de tudo isso... Não, ela não poderia compreender.

—Querida,-eu completei-resista, resista. E espera, que quando teus pais perceberem a força do amor de vocês, se ele existir, o casamento virá, naturalmente, por si só... (eu jamais seria capaz de seguir, eu mesma, tal conselho, pois sou impaciente e precipitaria as coisas com alguma loucura.)

—Mas dona Alma, o caso é que meu pai vai me casar dentro de uns dias com o senhor Paco, só porque ele tem um pedacinho de terra que a senhora lhe deu, e chega de lá montado num cavalo dele mesmo. Eu não quero, dona Alma, eu não amo aquele homem! Eu tenho horror daquele homem!( Ela caiu num súbito pranto).

Fiquei consternada por constatar, que até os dias de hoje ainda ocorriam entre os camponeses da nossa estância, casamentos impostos, arranjados, sem levar em conta os sentimentos das moças. O século dezenove adentrara o século vinte inteiro e chegara ao terceiro milênio. Era inacreditável! Aquela mocinha estava votada ao estupro, e nada poderia poupá-la desse destino anunciado, essa é que era a verdade! Senti um súbito aperto no peito, por empatia, por identificação anímica de mulher, e só pude chorar por ela, abraçando-a, fraternalmente. O que poderia eu dizer a ela, diante daquelas circunstâncias? Poderia eu instigá-la a fugir com o guri, o pequeno peão tão desprezado pelo seu humilde ofício? Não! Mas se eu tinha algum poder, que me delegavam, eu o usaria com alguma sabedoria, se eu invocasse a Deus esse dom.

Ao pensar assim, a solução me foi imediatamente apontada, como um juízo salomônico. Eu disse:

—Quitéria, vou tentar algo, mas tu deves guardar segredo dessa nossa conversa. Dê um jeito de avisar o Léo, para que me procure, imediatamente.

A guria, um tanto surpresa, saiu correndo, semeada de esperança, depois de beijar-me as mãos, comovedoramente. Eu meditava no que deveria dizer ao pequeno batoqueiro. Passados dez minutos chegou ele, bastante tenso e desconfiado. Saudou-me um tanto constrangido, de olhos baixos, como se esperasse ser repreendido. Eu lhe disse:

–Olá, Léo. Hoje pode ser o teu dia de sorte. Mas antes deves me responder algo com toda a sinceridade. Amas alguém, uma moça aqui da estância, sim ou não?

O jovem, nada feio, um tanto matuto, mas bem apanhado para um peão ignorante, hesitou um pouco, e respondeu:

—Sim, dona Alma, mas não sei o que... (calou-se, de olhos baixos).

—Bem Léo, é a Quitéria o teu amor? É verdade que a amas?

—Sss...sim, dona Alma, mas não atino como sabes...

—Então, Léo, prepara-te porque vais casar-te com ela, que é minha protegida. E por isso vão ganhar como presente meu, de casamento, um pedaço de terra, bem fértil, e com uma querência nele, um pampeiro, e duas vacas, umas galinhas também. É o meu presente de casamento. Vou passar a escritura em nome dos dois, desde já, confiando na realização desse casamento e de que ele será muito feliz. Mas tens que me prometer, que a tratarás como uma princesa, que é isso o que as mulheres são, sabias?

Léo ficou um instante boquiaberto, depois ajoelhou-se subitamente e agarrando-me a fimbria do vestido, sem levantá-la, curvado, beijou-a quase deitado aos meus pés. Eu tive que tocar-lhe os ombros para instá-lo a parar com aquilo. Ele estava deslumbrado, e chorava, de emoção, de gratidão, me pareceu. Diante de sua reação, fiquei convencida do acerto da minha decisão.

Dentro de um mês, na véspera do casório de Léo e Quitéria, chegou Rôdo de mais um giro pela Europa, e vendo os preparativos para a festança, com fandango e churrascada à vista, questionou-me, diante do meu empenho na organização daquele evento.

—Sou a madrinha do casal, Rôdo, pois dei um empurrãozinho para o casamento acontecer. Dei-lhes um palminho de terra e umas coisinhas mais, para o Léo, que era o escolhido de Quitéria, ficar em pé de igualdade com um rival. Como contava com o amor da moça, a balança pesou a seu favor diante dos olhos dos pais dela. Foi só isso, Rôdo, o que fiz... uma pequena ajuda ao amor.

Rôdo abanou a cabeça, e ralhou comigo, sorrindo:

—Alma , Alma, és incorrigível! Nesse passo vais dilapidar todo o nosso patrimônio, distribuir aos poucos todas as nossas terras e até a vinha. Não vês que logo todos os peões vão querer se casar, escolhendo-te para madrinha? Não conheces o povo! Além disso, quem te dá o direito de interferires no destino alheio? E se o casal for infeliz, amarrado a um pedaço de terra? Mais cedo ou mais tarde te culparão.

Fiquei por um momento confusa com as palavras de Rôdo, mas logo reafirmei minha decisão, defendendo-a:

—Rôdo, meu irmão, tuas palavras são de falsa sabedoria, pois são só razão, lhes falta coração. Deve-se confiar mais nos impulsos do coração. Tens o pessimismo de um cético, e crês pouco no ser humano. Deve ser por isso que és um jogador, um blefador. Não vês que um único ser humano salvo, ou aliviado de sua dor, justifica uma vida inteira de erros? Meu coração está pleno, julguei com sabedoria neste caso, quase como Salomão ao ameaçar repartir entre desiguais e deixar o amor fazer pender a balança na direção certa. Não como Lear, se é o que tu pensas, que abriu mão do seu poder, doando tudo de uma vez. Não, meu irmãozinho querido, não queiras me confundir. Estou feliz, como eles, e isso é suficiente prova do meu acerto.

Rôdo sorriu ternamente, afinal, e me abraçou profundamente, enquanto eu, apertada em seus braços, com a cabeça em seu ombro, pensava no quanto eu amava aquele guri, tão diferente de mim...