sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O jardim noturno (de Alma Welt )


Retornando ao casarão, após a temporada paulistana, no trenzinho eu me comovo durante o trajeto final com a beleza do meu pampa apesar da devastação crescente, dos novos campos lavrados e mais árvores cortadas. Mesmo assim, parece que o Pampa misteriosamente resiste, e no caminho, da estaçãozinha para a estância, de charrete, vendo passar uma boiada conduzida por nossos peões à caráter, eu sinto o peito inundado de amor por minha terra. Galdério, com sua fala cantadíssima parece embalar-me com a música autêntica destas pradarias e eu começo a pensar em não mais sair daqui, e entregar o ap paulistano, trazendo o ateliê de volta para cá. A Internet por rádio me permitirá isso, eu não estarei isolada como escritora.

Ao avistar o casarão, de longe, enxergo o Rôdo na varanda, de bombachas, esperando-me com o chimarrão na mão. Que alegria! Meu irmãozinho está aqui. Não o deixarei sair mais, até Fevereiro. E quero meus sobrinhos aqui, todos. Hans, Christian, Pati e Pedrirnho. E que tragam amiguinhos, ou colegas de escola, para a temporada. Quero a casa cheia! Escreverei de noite, de dia serei toda deles. Quero inundar-me por dentro de sua pureza, de sua ingenuidade encantadora.

Rôdo me abraça, beija-me nos lábios, e eu me derreto em seus braços, em plenitude. Ele passa o braço em minha cintura e vamos juntos para dentro, ele carregando a minha mochila, para saudarmos Matilde na cozinha. Logo estou nos seus braços, beijada em lágrimas, enquanto ela exclama: — “Minha guria, minha guria! Como estás magrinha! E guapa. Sempre a nossa princesa!

Estou em casa.

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Noite, na estância. A sinfonia dos grilos e dos sapos. A festa dos pirilampos, minhas fadinhas. Eu caminho ao luar, de negligé transparente, seminua, na verdade. Quero sentir-me branca, branca, enluarada, fantasmagórica neste jardim de minha infância e adolescência. Rôdo vem encontrar-me, de calça de pijama, sem camisa, e noto mais uma vez como é belo o meu irmão. Que tórax, que rosto, que cabelos! Abraçamo-nos e ele me conduz por entre as sebes em labirinto, até o nosso caramanchão. Aqui, quantas vezes nos refugiamos para nos beijar e tocar a salvo dos olhares das minhas irmãs e... de Ana Morgado, a Açoriana, minha mãe. Nunca puderam nos conter, é verdade. Fomos sempre motivo de escândalo. Nos separaram por anos. Agora já ninguém nos reprime, os tempos são outros. Só não podemos “dar bandeira” entre os peões. Rôdo deita-me na relva e coloca-se ao meu lado, ambos olhando a lua, lado a lado. E sei que logo ele se virará, e se colocará por cima de mim... e eu não resistirei.

Então, um arrepio. Uma viragem, uma brisa forte, logo um vento. O minuano, o Velho Mino! É ele! Ele ainda nos persegue, nos censura, nos expulsa do paraíso! Não nos quer assim, irmãos-amantes. Ele traz a voz da minha mãe, a Mutti, nos assombrando, desde o seu túmulo próximo daqui.

"Sim, Mutti, sim! Não faremos mais! Não faremos mais! Eu prometo. Não, ele não me tocou, foi só um beijo, um beijinho, mamãe! Não bata nele! Bata em mim! Bata em mim!"

Olho em torno. O jardim está adormecido. O casarão dorme. Rôdo dorme em seu quarto. Estou só. Para sempre só. Meu Pampa dorme... encantado

09/08/2006

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Minha avó Frida (de Alma Welt)



Ontem subi ao sótão do nosso casarão para “fuçar” um pouco, talvez descobrir alguma curiosidade acerca da história da família, desde pelo menos meus avós. E realmente encontrei. Velhas fotos do meu avô Joachin em uniforme de soldado da primeira guerra mundial (pela data atrás, e ele viera para o Brasil antes da Segunda Grande Guerra), com fuzil na mão e tudo. Mas já tinha um olhar duro de nazista, Deus o perdoe. E... de repente, uma foto da minha avó Frida, jovem. Aliás, só a reconheci por uma certa semelhança comigo, e pelo nome atrás. Ela era linda! Jamais pensei nela assim. Eu a conheci como uma velha curvada, de aspecto plebeu, enorme nariz adunco, desdentada, queixo proeminente, grotesca, de cabelos brancos longos e soltos, como as velhas burguesas não usam, e que lhe davam ares de bruxa medieval, de gravura de Dürer ou de Hans Baldung Grien. Ela sempre me fascinara, como tal. E agora esta! Ela fora linda na juventude! Bem, ela só ficara com aspecto de bruxa, mas não era má, ou não dava essa sensação depois do primeiro contato. Ela era divertida e ria muito, aliás, gargalhava: uma casquinada muito fina, que reforçava a idéia de uma feiticeira picaresca. E ainda por cima ela contava estórias anedóticas, de estranho humor satírico. Eu adorava isso. Já recontei algumas estórias dela dentro do meu romance “O Sangue da Terra”, no capítulo chamado “O Condestável Gottfried” que coloquei no LL, há meses.

Pois bem, ao vê-la assim, jovem, esplêndida, eu procurei naqueles olhos doces da fotografia, aquela luz pícara, a malícia que ela transmitia nas suas estórias. E... encontrei! Estava lá. Bem... eu sei que tudo isso é muito subjetivo, imponderável, e... impossível de conferir. Quem poderia prever, pelos olhos, a futura bruxa de amanhã?

Olhei-me imediatamente ao espelho.
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11/09/2006


*Albrecht Dürer- Retrato da Mãe do artista- desenho de 1514

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

A Invocação Mágica de Alma Welt


Esta pintura de grandes proporções (150x150cm), a óleo sobre tela, recente (datada de 2007) foi pintada por Guilherme de Faria para ilustrar a passagem da Invocação mágica da Alma diante de sua macieira sagrada, do primeiro capítulo "A Herança em perigo", do romance em três tomos "A Herança" de Alma Welt.
Em breve colocarei debaixo desta imagem o trecho do livro que ela ilustra. (Lucia Welt)

O estupro (de Alma Welt)


O pranto de Alma Welt- óleo s/ tela de 60x80cm, de Guilherme de Faria, coleção particular, São Paulo


(Trecho do capítulo quarto de A Ara dos Pampas, romance inédito de Alma Welt)

Chegando em São Paulo, fomos direto para o nosso apartamento, meu estúdio, como prefiro designá-lo, na rua Oscar Freire, para banharmo-nos, descansarmos, fazer amor e dormirmos até o dia seguinte, antes de enfrentarmos os trabalhos de empacotamento, encaixotamento, etc, para a nossa mudança definitiva. Rescisão de contrato, pagamento de multa, entrega das chaves, etc, quantas providências! Não me deterei sobre elas, mas devo relatar aqui algo que não tive coragem de contar à própria Aline:

O estúdio já estava bastante desmontado, os caixotes empilhados no meio da grande sala do ateliê. Aline saíra para buscar mais caixas de papelão para os livros e tralhas. O interfone tocou. Era, surpreendentemente, o Pedro. Como soubera ele que estávamos de volta? Talvez tivesse telefonado para a estância...O fato é que ali estávamos, ele e eu, confrontando-nos pela segunda vez em nossas vidas. Eu estava tensa, se não amedrontada. Ele bateu os nós dos dedos na porta aberta e entrou com sua presença forte, imponente e, à primeira vista, atraente. Enquanto ele fechava a porta atrás de si, recuei um pouco, talvez tenha sido esse o meu erro. O macho farejou o medo, a fraqueza, e resolveu impor-se:

–Alma, vejo que está só. Aline não está, não é mesmo? É melhor assim, preciso falar-lhe, você me deve explicações. Quero Aline de volta, você a tomou de mim, não sei com que poderes, com que armas. Mas não posso aceitar isso, como uma derrota. Sei que Aline me ama. Você não sabe o que há entre nós, você é uma arrivista nesta história, não sabe o que já passamos juntos, tudo o que vivemos um com o outro. Não posso aceitar isso. Você a seduziu, você a enfeitiçou com a sua beleza irreal, só pode ser isso!

Ele avançou para mim, enquanto eu recuava esbarrando numa pilha de caixotes de madeira. Suas grandes mãos me agarraram pelos braços e ele prensou-me, curvando-me sobre as caixas. Senti o volume enorme do seu pênis encostar-se ao meu púbis e encaixar-se entre as minhas pernas sobre o vestido, tão fino, tão ralo, o meu vestido (tão vulneráveis que somos, as mulheres...) Sentindo as minhas formas, ele mais excitou-se e percebi seu mastro empinar-se. Eu estava em apuros! Tentei gritar, mas a sua mão enorme cobriu-me a boca, enquanto, habilmente, com a outra ele abria sua braguilha e erguia com seu próprio membro, imenso, a minha saia, e invadia a minha calcinha pela borda da virilha, encontrando a minha fenda sem que eu pudesse colocar qualquer obstáculo, já que o seu próprio corpo estava inteiro abrindo-me as pernas, já praticamente deitada à força nos caixotes. Senti o seu grande pênis adentrar-me como um ferro em brasa e gritei, gritei, chamei Aline, debati-me impotente, pois ele segurava meu pescoço com sua munheca poderosa, e eu perdia o ar, quase desfalecendo.

Ele ficou muito tempo entrando e saindo de mim, até eu nada mais sentir, de tanta dor e medo. Ele ia matar-me em seguida? Era a minha preocupação... Mas ele afastou seu peito do meu e virou-me com único golpe de mão sob minha anca, e pôs-me de bruços sobre os caixotes. Dei um imenso grito, logo abafado por sua mão, enquanto ele me invadia por trás, lubrificado apenas com o meu próprio molho, ou mesmo meu sangue. Sodomisou-me longamente, com a respiração sibilante, entrecortada, estertorante, que me horrorizava, em meio à dor. Depois... saiu inteiro, para observar-me e logo voltar a invadir-me excitado novamente com a visão que teve, que lhe pareceu mais convidativa. Eu estava perdida, pois só lhe restava matar-me, e esperei passivamente o seu golpe de misericórdia, entre lágrimas e soluços. Então... ele saiu de mim, largou-me, tremendo também, eu percebi, apesar de tudo. E afastou-se fechando a braguilha manchada, andando um pouco de fasto, até virar-se e sair, não antes de dizer, com voz emocionada e sinistra: “Adeus, Alma, agora você sabe mesmo o que é o homem, e do que Aline gosta. Agora podem se amar, porque estarei sempre no meio de vocês!”

Com imenso esforço, em meio a terríveis dores, desvirei-me, pus os pés no chão e caí de joelhos, arrastei-me gemendo e chorando, até a pequena escadinha de armar, que servia para desmontar as estantes, e derrubei-a para simular um acidente. A seguir desfaleci.

Voltei a mim com o rosto de Aline, aflito, sobre o meu, soprando-me e beijando-me, entre tapinhas nas minhas faces:

– Alma, alma, o quê houve? De onde vem esse sangue no seu vestido? Você caiu? O quê aconteceu. Você está ferida!

– Sim, sim, Aline, eu caí da escada, devo ter me arranhado, nada sério, acho que desmaiei de susto, mais do que da pancada. Vou ficar bem, não se preocupe, Aline ( dei um soluço profundo, que tentei em seguida disfarçar). Aline não estava convencida e ergueu-me subitamente a saia e soltou um grito, horrorizada. Queria examinar, correu ao banheiro para buscar uma toalha de rosto, que molhou na torneira da pia, e veio limpar-me. Ela perceberia tudo! Eu não podia deixar que isso acontecesse. Isso acabaria com a sua felicidade, isso a revoltaria de uma forma ou de outra. Eu a perderia! Eu a perderia!

Arrastei-me com dificuldade, pus-me de pé, trêmula, dizendo:

– Aline, bati meu púbis de encontro a quina de um caixote, quando a escada tombou. Estou ferida, sim, mas não fiques assim, que tu me assustas. Chama apenas um médico, o doutor Glauco, só isso. Só ajuda-me a deitar, minha linda, e a repousar. Preciso dormir.

Aline, em lágrimas, atarantada, ajudou-me a pôr-me no leito, cobriu-me e imediatamente ligou para o médico. Não ouvi mais nada.

Acordei com o doutor Glauco, tomando-me o pulso. A bondade do seu rosto de velho sábio, foi consoladora: um rosto benevolente de homem, era isso que eu precisava ver agora, para não odiar todos eles, os machos sanguinários, nossos predadores ancestrais. Não, não, Alma, não pensa assim! Tu nunca pensaste exatamente assim e, no entanto, não foi a primeira vez que foste atacada. Meus pensamentos estavam confusos, e minhas lágrimas voltaram a correr, enquanto o doutor Glauco descobria-me, erguia a minha saia, tirava a minha calcinha manchada, examinava-me, com um sibilado perplexo entre dentes. Pediu então para Aline sair do quarto e disse:

–Alma, você foi estuprada, não adianta negar. A sua amiga transmitiu-me a sua versão para esse sangue todo, e não me convenceu nenhum pouco. Queda! Pois sim! Você caiu sobre a quina de um caixote? Podia até ser! Mas esse esperma todo, de onde veio? E o seu ânus, foi também atingido pela quina do caixote? Com esse esperma, igualmente? Não, Alma, não negue. Quem foi o responsável por esse crime? Não queira defender nenhum bandido. Um homem assim merece cadeia. Alma, você tem que dar queixa. Trarei um delegado meu amigo, aqui, porque você tem de permanecer acamada. Vamos, conte-me tudo.

–Doutor, pelo amor de Deus, não contes nada à Aline. Não posso, doutor, não posso dar queixa do agressor. Acredita-me, tenho motivos muito fortes para isso. Aline perderia a sua felicidade, e eu então a perderia, a ela, Aline. Entenda-me, doutor. Já compreendeste, não é? Sempre pude confiar no senhor, nunca me faltou antes. Não posso perdê-la, doutor, eu morreria. Por misericórdia! (Caí num imenso pranto, enquanto o doutor abanava a cabeça e me ajeitava o travesseiro, cobrindo-me paternalmente. Lembrei-me do Vati, quando me punha para dormir, guria ainda, ou até mais tarde, e as lágrimas mais corriam).

Ele disse:

– Está bem, Alma, já que quer assim, mas vou lhe receitar uns anti-inflamatórios e analgésicos, e ainda um teste de HIV, que você deve fazer dentro de poucos meses, não se esqueça (ele escreveu a receita do teste num papel à parte).

Eu, na verdade não temia esse aspecto da coisa, pois Aline comentara comigo o fato de Pedro ter o seu certificado de HIV negativo, como um compromisso entre eles. No entanto, esse comentário do médico me fez explodir em mais lágrimas, talvez pela vergonha que senti da minha situação.

O bondoso médico tranqüilizou-me com um sorriso triste, pôs os dedos nos meus lábios, fazendo schhhhh... schhhh... Eu sabia que ele não diria nada. Esse homem me amava como a uma filha e saberia preservar a minha teimosa felicidade. Antes de sair, abriu novamente a sua pasta e colocou-me na mão um envelope da “pílula do dia seguinte”, apontou significativamente o envelope com um gesto enfático, e retirou-se.

Eu sabia o que deveria fazer.

01/08/2005

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

A invocação mágica de Alma Welt


Esta pintura de grandes proporções (150x150cm), a óleo sobre tela, recente (datada de 2007) foi pintada por Guilherme de Faria para ilustrar a passagem da Invocação mágica da Alma diante de sua macieira sagrada, do primeiro capítulo "A Herança em perigo", do romance em três tomos "A Herança" de Alma Welt.
Em breve colocarei debaixo desta imagem o trecho do livro que ela ilustra. (Lucia Welt)
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O sentido trágico da vida (Alma Welt)

Há um sentido trágico no simples viver. Consiste no fato de que nascemos e vamos morrer. Entre estes dois pólos fundamentais e misteriosos, tudo o mais seria fútil, se não fosse heróico: nosso esforço por nos construirmos e persistirmos diante do inevitável desenlace final. Sim, pois todos os projetos estão fadados ao fracasso uma vez que transitórios. O projeto artístico continua sendo o mais heróico de todos, mas também o mais efetivo. Ele não é pessoal: é de toda a humanidade rebelada diante do perturbador destino comum. É o mais hábil e astucioso plano do homem para ludibriar a morte, pois consiste em plasmar o espírito num objeto qualquer mais durável que a corruptível carne: a madeira , o papel, a tela, a tinta, o mármore o bronze, o ferro, a letra. Diante da arte do homem, Deus sorri, irônico e enternecido.

12/11/2006

EX LIBRIS de Alma Welt


O mote latino escolhido por Alma para seu Ex Libris significa "Chegar a resultados magníficos por vias estreitas." O que é bem o caso da literatura da nossa Musa. Além disso, curiosamente, essa frase latina permite, com certa legitimidade, a tradução ao pé da letra: "À Augusta, pela angústia" que sugere o auto-exílio da Alma em São Paulo, nos Jardins, à margem da rua Augusta (numa transversal, e bem próximo dela) pela angústia que a fez abandonar sua estância no Pampa, logo após a morte de seu pai, o "Vati".
Bibliografia- O mote "Ad augusta per angusta", é a senha dos rebelados da peça Hernani, de Victor Hugo.

A criação do Ex Libris da Alma é de autoria de Guilherme de Faria, em litografia (sobre pedra da Bavária) representando o perfil da Alma, em estilo art-nouveaux, com uma espécie de toucado mítico. (Lucia Welt)

Alma nostálgica, ou Carta da "Mentira Vital" (de Alma Welt)



(das "Cartas a Andrea", de Alma Welt)


Andrea querida

Minha morena, estás escorrendo, não é? Guarda um pouco desse caldinho para mim. Já imaginaste quantos hormônios e feromônios contém esse precioso fluido? Degustá-lo, bebê-lo deve reforçar a nossa feminilidade gloriosa. Por falar nisso, hoje não teve terapia, e passeei horas a cavalo com minha doutora Jensen, pelas pradarias. Fomos muito longe, e na nossa intimidade também. La Jensen é o máximo, que mulher incrível! Ela já esteve até na África, trabalhando, e sua experiência internacional de vida é algo que daria um filme maravilhoso.

Ela faz tudo para pôr-me para cima, o que no meu caso não é simples, pois ela sabe que não sou um caso de baixa auto-estima, mas tenho uma síndrome bem mais sutil e complicada. Ela diz que eu, como artista me auto-glorifico, chego mesmo a me auto-mitificar, e que isso é comum aos bons artistas, e que não é aí que reside portanto o meu “pathos” que ela denominou lisongeiramente de “weltiano”, universalizando o meu caso. Ela citou, enquanto cavalgamos a passo, a teoria da “Mentira Vital” de Otto Rank, segundo a qual, as crianças por volta dos quatro anos, ao tomar contato com as próprias fezes de uma maneira diferente, como algo decomposto que lhes sai de dentro, têm uma súbita consciência da própria morte, que lhes seria fatal pela angústia mortal se assomasse totalmente ao consciente. Então, segundo Rank, mecanismos naturais de defesa interpõem uma espécie de comporta entre inconsciente e consciente, estancando essa consciência fatal. Daí pra diante vivemos como se a morte não fosse nunca a nossa, e sim algo que só ocorre no outro. A isso ele chamou de “mentira vital”, que nos permite viver. Mas segundo ele, o Artista sofre de um defeito desse mecanismo de defeza, uma espécie de rachadura na comporta, por onde emanam eflúvios da consciência de morte, produzindo uma angústia criativa. Entretanto, essa rachadura tende a se alargar, como uma fenda numa comporta de represa. “Si non è vero...” Ai! Andreazinha, paga-se um alto preço por se ser artista. Eu às vezes queria ser apenas mulher, ou melhor, uma guriazinha de cabeça ôca, casadinha e com filhos, como minha mãe queria. Mas agora é tarde. Ao pôr-do-sol, no meu pampeiro, ao lado da doutora, eu soltei um gemido, e as lágrimas começaram a descer. Uma saudade, Andréa, uma nostalgia de tudo, do que vivi e do que não vivi! E queria me dissolver naquele poente como nos meus amores passados, presentes e futuros. E em ti, guria, que só conheço por dentro, e tão pouco, mas que és tão terna e compreensiva com esta doida Alma inquieta.

Então, a doutora apeou, estendeu-me os braços e disse: “Apeie, Alma, sentemos nesta relva e vamos esperar as estrelas surgirem. Elas relativizam tudo com a sua grandeza, com a sua distância e impassibilidade. Com sua eternidade, talvez. Vamos simplesmente olhá-las, como mãe e filha, abraçadas, minha querida”. Assim ficamos, eu chorando baixinho abraçada à minha doutora sábia, que chegou tarde demais para ser minha guru, e que parece querer somente consolar-me de uma dor perante a qual ela se sabe impotente. Uma mãe terna e velha, que não pode mais proteger a sua filha do mundo, da vida, da dor da vida.

Ao voltarmos para casa já anoitecida, Rodo nos esperava na varanda, sentado na cadeira de balanço, tomando um chimarrão, com música de piano, Chopin, no aparelho, o que só aumentou minha nostalgia. Fiz um esforço e pus música de fandango, e puxei meu irmãozinho para dançarmos juntos para a doutora Jensen que deu boas gargalhadas. Rimos muito, Andréa. E eu senti que por hoje me salvei. Sobrevivi. Quero minhas crianças, Andrea. Não podem me tirar minhas crianças. Também sou uma, não podem me deixar sozinha...

Tua Alma que ama e sofre

08/01/2006

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

A Herança em perigo (de Alma Welt)



A Herança em perigo
(trecho do romance inédito A Herança, de Alma Welt)

(Epígrafe):

"Espremo os tubos sobre a paleta
lanço estes versos no papel
e as tintas e as palavras me remetem
à nossa estância
que ainda está ali
como um fantasma
navegando
na amplidão do Pampa.

Como uma nave
o casarão batido pelo minuano
recusa-se a afundar!"

(Versos finais do poema Pampa, de Alma Welt)


A Herança
(Começo do romance inédito de Alma Welt)

Capitulo primeiro

A Herança em perigo


Rôdo, meu irmão, quer vender a nossa estância. Não posso suportar sequer a idéia disso acontecer. Faço as malas apressadamente, sem esquecer, no entanto, de jogar por cima das roupas meus cadernos de poesia e de anotações.

Durante a viagem, de ônibus me percebi em estado de grande ansiedade e fiz, então, um esforço para sintonizar-me naquele presente, mesmo sendo ele de transição, com a paisagem correndo veloz através das janelas. Depois de um dia inteiro e de duas baldeações, chego afinal à estaçãozinha para pegar o trem antigo que corta as nossas terras, em pleno pampa. Meu amado Pampa, eterno, imutável.

Quando afinal a charrete vem me buscar na pequena estação, eu já estou retornada à minha infância e primeira juventude. Comovida e tensa, cumprimento nosso caseiro, Galdério, cujas rugas emergem agora de um imenso bigode grisalho, e cujas bombachas me remetem ao meu universo verdadeiro. Estou em casa.

No caminho, embalada pelas coxilhas, e pela fala cantadíssima do nosso caseiro, percebo-me numa espécie de sonho, em que, ao fundo escuto os ruídos e a música do fandango e a canção da Nau Catarineta, que ouvia na infância, como um anti-acalanto, se posso dizer assim, que me tirava da cama e me fazia correr para a balaustrada, para observar a festa dos adultos, acompanhar aquela estória maravilhosa da nau quase maldita, que encontra a sua redenção pela fé inabalável do seu capitão.

Agora, a nau que se encontra em perigo é o nosso próprio casarão, que parece navegar, imóvel, no plano astral do Pampa, batido pelo minuano, na estação fria.

Mas estamos em pleno verão. E os dias estariam maravilhosos se essa ameaça não pairasse por dentro, em minha alma. Nossa estância em perigo, nossa casa prestes a se perder. O que está acontecendo com Rôdo? Como pode o meu irmão trair-me assim? Não foi ele auto-designado como o fiel guardião do espólio do nosso pai? Da nossa herança sagrada, das nossas raízes mesmo?

Anseio encontrar-me imediatamente com ele, e temo chegar gritando como uma fúria, o que definitivamente não faz o meu gênero.

Ao avistar Rôdo, entretanto, na varanda, de pé, com as suas bombachas, e os cabelos pretos revoltos, majestoso em sua beleza jovem, meu coração se abranda, se aquece, e eu me distendo. Corro a abraçá-lo. Ele me aperta contra o seu coração, e eu me remeto novamente à nossa infância, quando nossos abraços eram mais freqüentes que o normal. Seu cheiro, seu perfume, a maciez dos cabelos pretos de Rôdo, meu primeiro amor, na verdade...

Mas logo me desprendo, afasto-me à distância dos braços e olho-o nos olhos, fuzilando-o.

—Rôdo, que se passa? Como podes pensar nisso? Vender a nossa estância! Prefiro a morte, fica tu sabendo. Queres matar-me? Queres matar-nos a todos?

-Alma, não exagera! Tu és sempre extremada nos teus sentimentos. Vê: não temos saída, já estamos quase hipotecados, e não temos mais recursos. Estamos falidos. Essa é que é a verdade. Não consigo tirar mais um tostão da propriedade. Os tempos mudaram. Tu és artista, não sabes nada desse universo, do mundo prático, das dívidas imensas que acumulamos desde antes mesmo da morte do Vati. Tu te iludes. Não temos mais saída.

–Mas, Rôdo!— quase gritei—Tu prometeste, tu juraste defender a nossa herança, o legado do Vati, a nossa biblioteca, o piano, o jardim, o parreiral, o pomar, nossa macieira, mas sobretudo esta casa. Ai, Rôdo, eu não posso suportar essa idéia, de perder tudo!...

Caí num imenso pranto. Sentia-me desfalecer. Rôdo amparou-me. Pegou-me então em seus braços, como fazia quando atravessávamos o brejo, e carregou-me como a uma criança, para depositar-me no sofá da sala. Abandonei-me por um momento, como se isso fosse abrandá-lo, demovê-lo do seu intento, que eu sentia poderoso, já que a idéia da venda estava instalada dentro dele, já havia muito tempo, eu percebia.

Fiquei soluçando, até adormecer, exausta, num torpor de dor e cansaço acumulados, da viagem e do medo que me acompanhava.


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Acordei com o rosto do meu irmão, muito próximo do meu, com seus olhos pousados sobre os meus lábios. Teria ele beijado a minha boca, em meu sono? Ai, Rôdo, é tarde...

Passei-lhe a mão nos belos cabelos negros, sedosos, levemente ondulados, como se o pampeiro os agitasse sempre. Meu irmão, meu irmãozinho... Preciso falar-lhe, convencê-lo. Deve haver uma saída. Não me considero uma pessoa apegada a bens materiais. Mas, a estância? É nossa herança espiritual... materializada. Não, não é possível, será minha morte, a nossa morte. Estarei condenada para sempre àqueles Jardins vazios, de São Paulo, onde posso ter somente o meu ateliê, com conforto, cercado de galerias de arte, somente para prover a minha subsistência, para continuar criando a partir do manancial interno desta herança, deste solo, onde estão fincadas minhas raízes? Não, Rôdo, eu não permitirei. Lutarei contra tudo e até mesmo contra ti, se me traíres, se nos traíres.

Levanto-me e peço a Galdério para selar uma égua. Saio galopando por esta amplidão, a campina infinita. Galopo muito tempo acompanhada ao longe pelo olhar de meu irmão, que me vigia como outrora, quando esta galopada era feliz. Ai, que posso fazer, senão galopar? Como lutar, que sei eu da vida, dos papéis, das dívidas... desse mundo sórdido e triste das realidades comezinhas do mundo prático, real? Sou uma artista, sou poeta, ai de mim! Sou então, tão vulnerável? Eu não sabia que podia ser assim atingida, no meu cerne, onde brotam as minhas forças criativas, no meu coração, na minha alma. Vão me matar! Vão me matar se isto tudo se perder, esta casa, estes livros, o Steinway do Vati, com sua música que ainda ressoa. Minhas memórias sobreviverão? Sem seu lastro ouro, não se desvalorizarão? Eu sei, esta pergunta contradiz a essência mesma da memória, sua permanência em espiritualidade, mas... a matéria, então, não é nada? Porque existe, então? E é tão bela! Tanto quanto o espírito, não menos. Essa é a verdade.
Como artista, eu amo a matéria tanto quanto a alma que nela se instala. Por isso a descrevo, a pinto, a enraízo nas telas e nos versos. Descrevo a beleza amada, de tudo, a minha própria beleza. Quero fixá-la. Quero-a eterna. Quero crer na ressurreição da carne, com Deus, ou entre os deuses do Olimpo, não sei mais! Entre os deuses do Pampa!

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Ao jantar, na grande mesa, Rôdo numa cabeceira, eu na outra, percebo que estamos nas posições de nosso pai e mãe, em suas cadeiras, com a mesma imensa distância que os separava. Matilde, nossa cozinheira manda sua sobrinha nos servir. Matilde está muito calada, depois de chorarmos muito, abraçadas. Agora parece uma sombra e não tem coragem de aproximar-se dessa mesa vazia, com seus guris ( como ela diz )sentados assim, separados pela própria mesa vazia, vazia, para sempre.

Onde estarão Lúcia e Solange, nossas irmãs, tão omissas? Já aceitaram prontamente a perda da nossa estância. Aliás, Solange e Geraldo, seu marido ansiavam por isso, cheios de rancor, e cobiçosos dos despojos do nosso patrimônio, como harpías. Logo chegarão, disse Rôdo. Logo estarão aqui, insuflando a venda, reivindicando, disputando. Ai! não vou suportar. Eu lutarei, não vou permitir que espoliem tudo. Não levarão um livro, um disco! Não ousem cobiçar o piano. Nada deve sair daqui, agora vejo. Talvez eu possa contar com a cumplicidade da minha querida Lucia, e do meu cunhado Alberto, o pobre borracho...

Sim, eu mesma jamais me imaginaria, defendendo com unhas e dentes estas coisas. Mas eu sei que o Vati me quer assim! Sei que ele era apegado aos seus livros, ao seu piano, aos seus quadros, mais que às nossas terras mesmo! São a sua herança espiritual. Os símbolos do seu amor pela cultura de todos os povos. Pela arte universal, pela música dos Mestres. Ai! Não posso deixar isso se dispersar. A essência de uma coleção é a personalidade, o espírito do colecionador, que assim se plasma. Uma coleção dispersa é a traição de uma vida, um ato de canibalismo, de mutilação, de depredação. Uma alma estraçalhada, como um corpo!

Vati, Vati, eu te defenderei! Mas como? Como? Que posso fazer?
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A ARA

Trecho do segundo capítulo de A Herança (romance inédito de Alma Welt)

Com meus pequenos sapatos de verniz, eu corria pelos campos em torno do nosso casarão, freqüentemente perdendo-o de vista. Com um aventalzinho antiquado e inútil sobre a saia muito comprida, eu mais parecia uma menina do século anterior: longos cabelos, com uma fita, às vezes tranças. Eu corria ou simplesmente passeava a esmo, colhendo flores, soprando ao vento as sementes do capim, devaneando, até ouvir o som do piano do Vati, que era a maneira de voltar à terra... para continuar a sonhar. Eu corria até a biblioteca, para pôr-me embaixo do grande Steinway ( que agora, no meu retorno, pareceu-me bem menor). Ficava ali, deitada de bruço sobre um tapetinho muito macio, que o Vati colocava para mim. Com o queixo apoiado nas mãos, eu observava seus pés nos pedais, cuja utilidade me parecia um mistério, e deixava-me embalar pelo som maravilhoso de Chopin, Shumann, Shubert, Lizst, Debussy, Scriabin, Satie e Poulenc. Eu me erguia então, para, ao lado dele, observar as suas mãos, seus dedos ágeis, habilidosos de velho cirurgião-músico. Ao terminar, eu, às vezes colhia as suas mãos pousadas, inertes sobre o teclado, e as observava cuidadosamente, examinando-lhes os mínimos detalhes, o que parecia diverti-lo. Um dia eu as beijei após o seu concerto para mim. Sim, porque eu considerava que era só para mim que ele tocava... e ele deixava que eu pensasse assim. Depois, ele me punha no colo para conversarmos sobre música, sobre os compositores. Contava-me estórias e anedotas de suas vidas, e eu me transportava para aquele mundo, onde me via companheira deles, e precocemente, suas amadas. Sim, todas elas. Eu me identificava com suas musas, que meu pai descrevia com reverência, denunciando o seu fascínio pela mulher... pela beleza da mulher-musa, que ele próprio não desfrutava, mais tarde eu percebi. Minha mãe era tudo, menos isso... Sua retidão inflexível, a gradativa amargura, sua visão prática da vida, regida por um excessivo sentimento de dever, devotada à família e ao homem que a escolhera. Sim, porque ela deixara-se escolher, passivamente, e eu nunca pude sentir nela um grande amor pelo Vati, como eu projetava, em minha imaginação incendiada pelo mundo romântico dos artistas: músicos, poetas e pintores daquele maravilhoso século XIX.

Depois, ele passava a colher nas estantes os grandes tomos, para mostrar-me as ilustrações de Gustave Doré, ou de Flaxman (no caso da Ilíada e Odisséia), e freqüentemente lia para mim alguns trechos escolhidos daquelas obras. E eu derramava lágrimas de encantamento, e mais, por aquilo estar sendo transmitido por ele, com aquela carga afetiva, com aquele sentimento de identificação e de doação que ele tinha para comigo. Eu era a sua esperança, agora eu sei, o seu repositório de sonhos, e se possível, da cultura artística que ele não tinha mais a quem legar, já que as minhas irmãs não se emocionavam com aquele universo, e viviam metidas na cozinha, ou nos trabalhos práticos em torno da Mutti. Rôdo era um caso à parte. Mas elas eram excelentes bordadeiras sem alma, e seus trabalhos não me interessavam. Eu preferia imaginar a infindável teia de Penélope, no tear, reconstruindo as aventuras do seu amado Odisseu, como ela as imaginava a partir das narrativas vagas dos soldados retornados, para segui-lo naquele seu acidentado percurso em direção à ela mesma. Eu me identificava com ela, essa rainha que eu sabia detentora da verdadeira fidelidade: a da imaginação cúmplice, e do verdadeiro devotamento, o da alma apaixonada, que eu não via em minha mãe.

Felizmente, ela, Ana Morgado, tinha o bom senso, pelo menos, de não interferir nessa relação de pai e filha, cujas afinidades eram quase absolutas, à exceção do mundo obscuro, para mim, incompreensível, da Medicina, que eu rechaçava de minha imaginação, como coisa sanguinolenta, feia e crua. Nunca pude compreender, com os meus sentidos, o fascínio que ele tinha por isso que eu considerava a desmitificação da carne, já que eu a via e queria assim: perfeito invólucro da alma, cheio de beleza e personalidade, de brilho e sensualidade.

Minha mãe temia sobretudo isso: a sensualidade precoce, que ela via em mim. E procurava reprimi-la, sem conseguir, já que exalava de mim pelos meu poros, pelos meus movimentos, pequena estudante de euritimia e de balé, duas disciplinas opostas, que o Vati experimentava conjugar em mim. Mas, mesmo sem isso, essa sensualidade, antes de tudo, era inata nos meu movimentos, e vindas da beleza que me acompanhava sempre, como todos diziam, desde o meu nascimento. Muito branca, como até hoje, com meus olhos verdes, rasgados, e o cabelo louro com reflexos arruivados, essa beleza era o que produzia uma certa complacência, até mesmo em minha mãe, que do contrário trataria de castrar-me completamente, ou de reprimir-me todos aqueles vôos, que na verdade, pelo menos ela tolerou. À exceção daquele dia aziago...

Em Rôdo eu tinha um companheiro de aventuras, e um confidente, pois para as experiências novas e os achados, havia em nós cumplicidade. E nas descobertas físicas, sim, de nossos próprios corpos, que se atraíram tão cedo.

Rôdo, naqueles dias descobrira o beijo, nos meus lábios... e isso disparara nele um desejo crescente que ressoaria no meu próprio desejo nascente pelo corpo do outro, do belo ser humano, puro, criança como eu. Seus beijos tornaram-se mais longos, até deixarem meus lábios dormentes e intumescidos. Minha mãe fixava os seus olhos nos meus lábios vermelhos, eu percebia. Ela desconfiava? Sim, pois ela nos surpreendeu afinal, sob a nossa macieira. Solange nos delatara, e sob aquela árvore, que eu considerava por instinto um símbolo da minha vida, e em cujo tronco eu gravara um coração, com as iniciais A e R , que produziam a palavra que resume a consistência e o segredo da alma: ar, atmosfera, sopro, inspiração, entusiasmo; ela nos surpreendera, nuzinhos, deitados lado a lado, com minha mão sobre o “pintinho’ de Rôdo, enquanto sua pequena mão cobria emocionadamente, minha “conchinha”, como nós dizíamos.

Surpreendidos, fomos agarrados por Ana Morgado, pelos cabelos e erguidos. Instintivamente demo-nos as mãos, que foram brutalmemte separadas, e arrastados pelos pulsos, enquanto com palavras rascantes, quase aos gritos, ela nos ordenava que cobríssemos nossas “vergonhas” com a outra mão. Conduzidos impiedosamente sob as risadas de alguns peões, no trajeto, até em casa, expulsos do nosso pomar, que nos seria proibido por muito tempo, talvez para sempre.

Em casa, presenciamos o drama e as lamentações, os protestos de vergonha e pecado, da Mutti, enquanto meu pai ria complacente, bonachão, sábio, tentando acalmá-la, apaziguá-la. Lembro-me mais de suas palavras, do que da catilinária de minha mãe:

—Ana, que exagero, não sabes que as crianças são assim? Nunca leste Freud, sua ignorante... É normal a curiosidade infantil, é normal, não sabias? Deixa-as, não as traumatize! Não as escandalizes. Fazes mal, sabias?

“Vem, minha flor”, ele me abraçou e me alçou ao colo, nuínha e em lágrimas, e passou a mão na cabeça de Rôdo. “Não os toque, eles estão nus!” minha mãe gritava. E meu pai: “Vão se vestir e voltar a brincar. Mas chega de experiências, hem? Chega, Ana pára com esse drama! Deixa as crianças em paz!

Sua imensa autoridade, pacificadora, serena, sua sabedoria, sua generosidade... me salvaram. Imagino que também a Rôdo. Meu irmão se tornaria um terrível namorador, erótico como um sátiro, e eu... não menos. Minha alma de ninfa se salvaria, eu não me tornaria uma prostituta como minha mãe, no fundo, antevia. Mas eu amaria e desejaria tudo: homens e mulheres, com igual intensidade, panteísta, pan-amorosa, eu me salvaria talvez pelo excesso, não sei. Mas, ao mesmo tempo, aquela dor me acompanharia para sempre, como uma injustiça, uma imputação de pecado original, que eu não reconheceria nunca, e contra a qual eu me rebelaria sempre, não como bravata, mas do fundo da alma indomável, com que o próprio Deus me dotara.

01/08/2005

As Origens (de Alma Welt)



As Origens
19/06/2007

(Trecho do primeiro capítulo do romance A Herança, de Alma Welt (1972-2007)

Sento-me sob a minha macieira e ponho-me a devanear. Começam a vir ao meu espírito imagens longínquas, de um outro tempo que não o meu, mas que está nas minhas raízes, talvez tão fundas quanto as desta árvore que contém meu coração, não só gravado em sua casca, mas no seu cerne.

Transportam-me imagens rurais de uma Polônia alemã, sim, dos Sudetos, bem antes da segunda Grande Guerra. Meus avós, agricultores alemães, voltando para o seu chalé, em estilo bávaro, mas humilde. Trazem enxadas nas costas, e percebo-lhes as grossas mãos calosas. O lenço cobrindo a cabeça de minha avó, de aspecto rude, a cara embolachada, donde emergem olhinhos azuis, no meio da gordura avermelhada do rosto redondo. Meu avô, altíssimo, magro, de enormes mãos ossudas, segurando um cachimbo que o acompanha até no trabalho, no campo. Seus olhos azuis esverdeados, parecem obtusos, mas ao mesmo tempo obstinados. A mesma obstinação que o arrancará dessa terra polonesa onde se sente oprimido, como todos os agricultores que queriam sentir essa terra como alemã, em pleno seio da Polônia. Essa revolta o trará, muito antes da guerra, para o sul do Brasil, terra prometida, de que ouvira falar, um tal vale do Itajaí, palavra exótica que mal sabiam pronunciar. Aquele nefasto Hitler iria se aproveitar disso, com pretexto, para invadir a Polônia e destruí-la. Sua luta, sua campanha de ascendência ao poder já insistia nesse tema duvidoso.

Meus avós, eu os acompanho em meu retrospecto sonâmbulo, ali sob aquela árvore ancestral, cujos primeiros galhos correspondem a este casal de camponeses rudes, corajosos afinal, que iriam primeiramente parar na região de Blumenau, em Santa Catarina, numa colônia alemã, não tão distante de uma outra, açoriana, onde nasceria a jovem Ana Morgado, amada ardentemente, desde a infância, pelo meu pai, o jovem Werner Friedrich, sonhador, que queria estudar, sair dessa vida agrícola, ser músico ou médico e resgatar a linda açoriana, como ele dizia, daquele universo, para ele restrito, e carregá-la consigo para o mundo, tão mais vasto. Sonhava voltar à Europa, ele que havia nascido ali, naquele vale ideal, de algum modo brasileiro, alemão, português, italiano. Namoro rural típico, não fora o espírito predestinado ao cosmopolitismo do jovem Werner, cuja rebeldia foi tolerada pelos rudes alemães, porque revelava o herdeiro de uma tradição mais ampla, que incluía a música de Bach, Mozart e Beethoven, e a sabedoria de Goethe e Nietzsche, que ele descobrira praticamente sozinho, na biblioteca do pároco, o pastor da igreja Luterana daquele vale.

Agrada-me pensar que o embrião desta Alma aqui, já estava naquele vale... e naquele sonho do jovem casal de namorados meio clandestinos. Sim, porque não foi fácil esta união, e incorreu numa fuga, pois as duas colônias não se bicavam, e as famílias, tão diferentes, à parte as raízes rurais, que isso sim, era o único ponto comum. Ana, pequena católica, igrejeira, devota da virgem, da qual carregava a imagem numa medalha ao pescoço, como pôde ela apaixonar-se pelo jovem teuto-brasileiro? Na verdade mais alemão que qualquer um, no seu universalismo cultural que prenunciava uma erudição que havia de se tornar espantosa. Como pôde ele apaixonar-se pela “portuguesinha” ingênua, mas ao mesmo tempo austera e dura, cuja religiosidade ainda continha tanto fetichismo, com tantas imagens veneradas, e tantas restrições morais, que na verdade eram o único ponto de encontro das duas culturas?

Mas meu pai, este era libertário, de larga visão... e aventureiro. Haveria de raptar a “rapariga”, filha dileta dos Açores, de pele muito branca e cabelos negros, que reapareceriam apenas no meu irmão Rudolf, o mais belo de todos, a meu ver. Mas antes de mim viriam Solange e Lúcia, nome caros aos brasileiros.

Quantas aventuras, na verdade, antecederam este estágio! O jovem Werner conseguira dos velhos, ser mandado à Alemanha para estudar. Aquela Alemanha da ascensão do futuro Führer, que, graças a Deus, produziu imediata aversão no jovem esclarecido.

Mas este jovem obstinado, concentrou-se nos estudos, apesar de tudo, da conturbação social daquela ascensão irresistível, daquele tirano, cujos berros ecoariam até aquele vale ideal, lá no Brasil, e fariam meus avós colocarem braçadeiras para desfilar em honra do fanático que prometia libertar os sudetos da Polônia e da Tchecoslováquia, tanto quanto anexar a Áustria. Meu pai não veria essa cena deprimente, do meu avô com aquela braçadeira da suástica, e o braço direito estendido, gritando “Heil!” enquanto marchavam pelas ruas de Blumenau, tolerados até com certa condescendência pelo resto da população, num momento político sob a égide de Getúlio, que até então, não disfarçava sua simpatia pelo colega do III Reich. Foi preciso a guerra terminar, e os segredos escabrosos do nazismo virem à tona, para meu avô reconsiderar suas posições e renegar aquela ideologia. Pelo menos o fez. E botou uma pedra sobre o assunto, como, ao que parece, todo o povo alemão.

Daqueles anos, eu soube muito mais tarde os passos do meu pai, pelas cartas à minha mãe, que descobri nos seus guardados. Cartas e cartões postais, apaixonados, românticos, com linguagem cada vez mais elaborada, denunciando uma cultura crescente, que sem saber o distanciaria da pobre rapariga açoriana, mais afeita a um banco de jardim de praça, singelo, diante de uma igrejinha de aldeia, como a que escolheu para se casarem, ao seu retorno.

O jovem, alto, de louros cabelos, e olhar azul brilhante, voltaria com uma bagagem insólita: uma biblioteca imensa, que ele parecia ter digerido perfeitamente, tal a extensão do seu saber e as bases de uma erudição que ele iria fazer crescer cada vez mais ao longo de sua vida. E o piano? Um Steinway negro, maravilhoso, que trouxera de navio e que ele dedilhava com técnica apurada, aprendida sabe-se lá onde e como, com que tempo? Como pôde ele acumular tanto saber, e ainda tocar daquela maneira romântica, tendo se formado em Medicina, e se tornado mesmo um cirurgião (atividade que, na verdade, ele quase não exerceu )?

O que mais me impressionaria em minha infância, seria o seu ouvido musical absoluto, e o seu conhecimento das obras do Romantismo, inclusive o mundo da ópera alemã, francesa, e italiana sobretudo. Sim, meu pai era um romântico e passaria essa tendência inata para mim, sua filha predileta. Mas antes, muita coisa aconteceria naquele seu retorno, às vésperas da conflagração que mudaria o mundo.