domingo, 16 de novembro de 2008

Stradivarius no sótão ( conto de Alma Welt )

Stradivarius no sótão



Sentindo o meu apartamento nos Jardins completamente saturado , entulhado de telas, materiais e livros , resolvi procurar um sobradinho na região próxima, de Pinheiros, para estabelecer um novo ateliê, “clean”, para poder manejar e pintar grandes telas. Tendo encontrado a casa que me serviria, vi-me novamente envolta por uma vida de bairro, mais comunitária, a que estava desacostumada. Não tardei a conhecer um personagem destas ruas , que me faria participar de um extravagante episódio de sua vida.
O senhor Robledo, apesar de sua discrição e aspecto apagado, seu ar digno e um pouco distraído, teve seu tempo de notoriedade, há alguns anos atrás, nestes quarteirões, nos bares ociosos das adjacências, quando cometeu a publicação de um compêndio de sua autoria. Uma brochura, impressa numa tipografia próxima, por sua conta, e titulada, para gáudio da vizinhança e dos boêmios e bebedores de cafezinhos, nada mais nada menos que : “Romantismo e Vida Fiscal.” Não é preciso dizer que os gozadores não ultrapassaram o título em seus comentários, e que poucos se deram ao trabalho de folheá-lo. Confesso também minha total ignorância quanto ao seu conteúdo, quem sabe de notáveis ponderações, visto que o seu autor parece impregnado de uma certa aura de humanismo, que envolve toda a sua pessoa , de uma maneira um tanto arcaica.
O senhor Robledo contou-me que parou diante de um sobrado, tocou a campainha e foi imediatamente recebido pelo senhor de cabelos brancos e aspecto saudável que o conduziu por dependências já completamente esvaziadas e convidou-o a sentar-se numa das duas cadeiras que se avistavam no meio da sala. Este senhor teria dito mais ou menos isto:
-“ Meu caro senhor Robledo , conforme está no contrato, entrego-lhe a casa inteiramente vazia, mas com a condição de que o senhor suporte o meu despejo no sótão da casa. É afinal, a única dependência que me reservo, pois não tenho como me ocupar dessas velharias, nem quero perder tempo em livrar-me delas. Peço-lhe muitas desculpas por alugar-lhe a casa em tais condições , mas quero aproveitar a liberdade com que a vida subitamente me presenteou, com o afastamento dos meus filhos e parentes, que seguiram seus rumos, casaram-se e mudaram-se, e visto que sou viuvo já há muitos anos...Vejo-me enfim livre para uma última viagem pelo mundo, da qual talvez nem regresse , não posso esperar da vida tantos retornos, apesar de tudo. Gozo de boa saúde, pretendo dar um bom giro pela velha Europa, e passar pela minha região de nascença, minha pequena cidade natal . Peço-lhe, entretanto , que não se preocupe, absolutamente
não se preocupe com aqueles trastes lá em cima. Deixe-os empoeirar-se, se isso não o incomodar. Na verdade não queria incomodar um inquilino como o senhor , apenas rogo-lhe que suporte esses despojos, dos quais não tenho forças para livrar-me. Não creio, por outro lado, que o sótão lhe possa fazer falta não é mesmo? O senhor sendo solteiro, e visto que o senhor assim me afiançou com tanta generosidade. Enfim, fico-lhe grato. Não, não exagero. Um inquilino como o senhor é uma preciosidade, a essa altura da vida , quando não se pode mais aborrecer-se com ninharias e tudo o que se quer é partir, partir, sabe-se lá por quê, num ultimo giro pelo mundo, antes de aportar de vez, não é mesmo?
–“Naturalmente, sem dúvida, senhor”– o senhor Robledo se aprestou em afirmar, já com um zelo de guardião prestativo e fiel a desabrochar-lhe nos olhos, em todo o seu corpo aprumado, mas que anos e anos de serviço público faziam suspeitar pequenas reverências, movimentos imperceptíveis de coluna.
Na verdade, tudo isso eu deduzi, a partir de uma convivência esporádica que estabeleci com o protagonista desta história, das observações que pude fazer da janela do meu sobradinho, e a seguir, das insólitas cenas que me foram dadas a presenciar em sua casa, e que tentarei relatar por mais dolorosas e grotescas que pareçam. Por enquanto, ainda estamos naquele prólogo narrado pelo querido senhor Robledo, numa determinada visita que lhe fiz no sanatório.
O diálogo com o proprietário prosseguiu, um pouco mais, girando sobre estes mesmos pontos e afinal despediram-se cordialmente , quase efusivamente. O senhor Robledo cheio de inexplicável entusiasmo e com a melhor das disposições retornou à sua residência, distante apenas uma quadra dali, afim de tratar da sua mudança, considerável bagagem de homem civilizado, razoavelmente livresco( uma pequena e eclética biblioteca, onde predominava a boa literatura do século XIX ).
A mudança do novo inquilino foi acompanhada por uma dezena de pares de olhos atentos, entrincheirados nas janelas da vizinhança, nas imediações do poste da esquina, e sobretudo nos bancos do boteco em frente. O sr. Robledo não era estranho a esses olhos, mas devia estar se aproximando considerável e inadvertidamente, com as entranhas de sua antiga residência à mostra , nessa
situação de terrível despudor em que uma mudança coloca as pessoas.
Dispostos o móveis em seus lugares, tarefa que tomou alguns dias ao sr. Robledo, que , por sinal, teve de despachar amavelmente alguns curiosos que sempre teimam nessas ocasiões em prestar uma mãosinha de ajuda, afim de pôr um pesinho dentro da nova moradia. Prestativos e bisbilhoteiros, olhares ávidos de tédio e curiosidade vã, vocês sabem, os bons vizinhos freqüentadores do boteco, a gorda e faladeira senhora da esquina; o inesperado anão provavelmente vendedor de bilhetes de loteria, o aposentado senhor de olhos empapuçados de alcoólatra, o moço espinhudo jogador de sinuca, talvez conhecido pelo apelido de Zé Galinha, a magérrima semi-louca da direita, em seu vestido de brim estilo sanatório, etc. Ah! Uma indefectível professora de música, outrora, segundo ela mesma, cantora lírica no Municipal. Pessoas amáveis e atenciosas, ligeiramente marginalizadas, é verdade, solitárias e solidárias a seu modo.
A porta trancada, o sr. Robledo, exausto, percorreu com o olhar cada centímetro quadrado do seu novo cenário, na verdade idêntico ao antigo, com as mesmas disposições e um restinho da velha poeira; os objetos metodicamente recolocados sobre as mesas e os consoles, e encerrou para si mesmo o assunto mudança, não sendo, afinal, um homem de demasiadas idiossincrasias, dessas que costumam assolar os solteirões.
Predispôs-se a dormir , não sem antes dar a primeira vista d’olhos no famoso sótão, objeto de sua crescente curiosidade, o que fez com ligeiro ar de displicência, de pijama, pensando sem querer num paninho de pó e na sua faxineira diarista. Não, não caberia a mais ninguém entrar naquele sótão tão íntimo, afinal, toda uma vida acumulada ali , nos seus visíveis recados, na sua linguagem cifrada de móveis, quadros e objetos, poltronas rotas e pó, provavelmente.
“É preciso ser sensível,” pensava ele, “à linguagem muda dessas coisas. Não, empregada jamais , talvez o esquecimento vigilante, isto sim, vejamos...”
Subiu o pequeno lance de escada e penetrou pela porta que ostentava
chave, e viu-se numa pequena alcova sob o telhado, entulhada de toda a sorte de móveis desmontados, comuns, bastante usados, vividos, sobre os quais pousavam quadrinhos empilhados e álbuns de fotografias de família. Com a ponta dos dedos, o sr. Robledo abriu um álbum, desinteressadamente, folheou timidamente outro mais adiante, retomou os ares de guardião zeloso e voltou-se para sair atritando os dedos empoeirados, quando seus olhos caíram sobre um instrumento pousado sobre uma cômoda bloqueada por todos os lados, displicentemente jogado, fora da caixa, sem cordas: um violino bastante belo, lhe pareceu, razoavelmente conservado, apesar de tudo. O sr, Robledo pegou-o com reverente cuidado, com as pontas dos dedos, examinou-o, com atenção e respeito. Admirou-lhe as formas barrocas que lhe pareceram perfeitas, advinhou-lhe as peças desaparecidas, que lhe completariam a harmonia: o cavalete e o suporte; intrigou-se com a queixeira negra que lhe pareceu abstrusa; percorreu com os dedos a voluta onde faltava uma chave, e em seguida espiou pelas frestas sinuosas e leu, inclinando adequadamente para a luz da pequena janela empoeirada: ANTONIUS STRADIVARIUS CREMONENSII – 1692.
Com um leve sobressalto íntimo, o sr. Robledo, pestanejando, depositou subitamente o instrumento, exatamente no espaço delineado pela sua forma na poeira da cômoda e tratou de afastar-se, num estado semi-sonhador, hipnagógico.
Trancou a porta com a chave e retirou-se, descendo até a sala, dirigiu-se até a sua estante, percorreu com os olhos as lombadas da sua Enciclopédia... “S”, retirou o volume, folheou-o, compulsou-o, até encontrar o verbete esperado: “Stradivari ( Antônio ), dito Stradivarius, de Cremona, Itália, célebre “maestro liutaio”( luterista ), discípulo de Amati, etc...”
O sr. Robledo soltou um gemido, enquanto seus pensamentos turbilhonavam sem forma, despontando aqui e ali uma censura em meio à surpresa: “Como puderam deixá-lo assim, abandonado, ali na poeira, mutilado, sem cordas, sem sua caixa, etc..? Tanto descaso... Um mistério. É preciso vigiá-lo, de algum modo...”

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Os dias se passaram e o sr. Robledo permanecia com aquele olhar sonhador, que agora lhe assentava como a definição verdadeira da sua personalidade, de modo que não foi notado conscientemente nem mesmo pela sua faxineira, embora isso o deixasse mais vulnerável às tentativas de aproximação dos vizinhos, pois já não reagia às pequenas invasões do cotidiano do bairro, na verdade por não estar atento. Tinha agora um ar mais vago, doce, os gestos mais lentos.
Um dia fez uma viagem ao interior, Taubaté, e trouxe um violino tosco, uma rabeca popular comprada na feira da cidade. Daí pra diante as rabecas se multiplicariam no seu caminho com curiosa facilidade. Violinos de feira, de bric-a-brac, de criança, quebrados, empenados, mutilados, feitos a canivete, primitivos
uns, belos, outros nem tanto, violinos de fábrica, cópias de bela aparência. Proliferavam pela casa como coelhos. O sr. Robledo os tangia, passava-lhes o arco uma vez ao chegarem, e logo os pendurava. Sim, porque, estranhamente, ele não suportava pousá-los pelos móveis, achando que a trepidação da rua, pelo movimento dos carros e caminhões, os prejudicaria de alguma forma. Pendurava-os em varais que se estendiam pelos cômodos da casa, sempre acompanhados dos seus respectivos arcos, pendentes pelas volutas, como enforcados, acima das cabeças das visitas. Sim porque, vulnerável como estava o nosso sonhador, a casa agora era constantemente invadida pelos vizinhos: o Zé Galinha, a louca da esquina, dona Magda, a cantora, o anão de terno, o poeta Aragipe, queixoso e impublicado, o aposentado alcoólatra na ativa, e outros. Até mesmo essa sua criada aqui, que ele convidou amavelmente, ao encontrar-me eventualmente na padaria do nosso quarteirão. Pude testemunhar o espantoso entra-e-sai de sua casa devassada. Entravam a qualquer hora do dia e da noite, sentavam-se à mesa com seus baralhos, em longas partidas demenciais, entremeadas de cafezinhos que movimentavam simultaneamente a cozinha, em confidencias, tagarelices, gracejos, fofocas. Sobretudo fofocas.
Um dia, em meio a essa balbúrdia, o sr. Robledo, de repente bateu palmas e pediu atenção. Tinha um comunicado a fazer. Olhamo-no em silêncio, surpresos e curiosos.
—Senhores, senhoras, meus amigos, e você, Alma , sobretudo você, minha nova querida amiga! Tenho uma revelação a fazer. Uma grande descoberta! Mas, primeiro um convite. A todos vocês. Façamos um grande almoço. Conto, para isso, com a colaboração das senhoras. Quero todos presentes. Durante esse repasto, amanhã, farei a minha revelação. Compartilharei com vocês, meus amigos, a minha grande descoberta. Fundamental, eu creio, vocês verão! Conto com vocês. Até amanhã!
Na verdade, poucos deixaram a casa, e as mulheres puseram-se logo a fazer planos para o promissor almoço. Frango assado!, decidiram.
No dia seguinte, ainda cedo , começaram os preparativos. A cozinha movimentou-se, com as incursões ao boteco da esquina para comprar os frangos. Na verdade, pré assados na máquina giratória, já prontos, faltando somente os condimentos, guarnições, etc.
Ao meio dia em ponto a mesa estava aberta, crescida e posta com a toalha de renda, os talheres e baixelas desenterrados do passado nebuloso e neutro dos baús do nosso amável anfitrião. As mulheres atarefadas, traziam os frangos fumegantes da cozinha, acompanhados aos saltos pelo anão e o Zé Galinha, que se faziam de bufões. O poeta Aragipe fazia o menestrel, tangendo como um alaúde, um dos violinos arrancado ao varal que se estendia acima da mesa, de parede a parede. O sr. Robledo estava um pouco desconcertado e incomodado com a feição de Festim que o almoço tomava, eu percebi. Mas mantinha o olhar sonhador e vago, à espera do momento de compartilhar sua Revelação.
Todos sentados à mesa, o sr. Robledo à cabeceira, os convidados buliçosos faziam pirraças, arrulhavam feito pombas, grasnavam, latiam, batiam palmas e atacavam as entradas e aperitivos, atiravam azeitonas, casquinando.
De repente, ao entrarem os frangos, em meio ao vapor e aroma que se desprendiam, o sr. Robledo pôs-se de pé, hesitante, e pediu silêncio, batendo discretamente um garfo no cristal.
–Senhores, senhoras, um momento! Eu lhes peço. Quero dizer-lhes algo... que me parece sumamente importante. Assim, obrigado. Senhores, quero fazer-lhes uma revelação... Quero compartilhar a enorme alegria da minha descoberta, com vocês, meus amigos!...( o sr. Robledo balbuciava ). O Segredo... o segredo!
Fez-se um profundo silêncio. Desconcertado, o sr, Robledo hesitou mais um pouco, todos os olhos pousados nele, mas subitamente, num gesto rápido, agarrou pelo braço e arrancou ao varal o violino mais próximo de sua cabeça e com um golpe seco, espatifou-o contra a quina da mesa.
Diante da estupefação dos presentes, abriu o tampo e com dois dedos, pinçou um pequeno pino de madeira, uma espécie de suporte ou espinho, no ventre do instrumento e mostrando-o à malta, anunciou:
— Eis o Segredo, senhores. Eu descobri! Eu descobri! O segredo do maravilhoso som do Stradivarius! Senhores, está aqui, isto se chama Alma! Compreendem? Estão vendo? Tudo está aqui! Vejam!
Nesse momento, passada a surpresa, os convidados levantaram-se e agarraram os violinos que pendiam acima de suas cabeças, o varal despencou, os instrumentos foram disputados, estraçalhados, desmembrados. O anão subiu à mesa, e munido da tesoura de destrinchar, pôs-se a abrir os tampos, metendo as pontas pelas frisas. Volutas eram arrancadas e brandidas como coxinhas, enquanto o Zé galinha arrancava cravelhas e fingia palitar os dentes com elas. Dona Magda trinava a ária Libiamo! Libiamo!, da La Traviata, enquanto o poeta Aragipe com o dedinho enroscado num pesinho de cavalete, disputava com o senhor aposentado a sorte no rompimento do ossinho. E uivos, cacarejos, gargalhadas, enquanto cordas eram tangidas como nervos retesados, tampos eram destrinchados, volutas enfiadas nos molhos e lambidas em meio a gritos de: “Está na alma! O segredo está na alma! Passe o frango! Hi, hi,hi! Quá! Quá! Quá!
O sr. Robledo, recoberto pelos pinos que lhe atiravam, coberto de molho como sangue, subitamente revira os olhos e estende a mão para mim, horrorisada que estou, e paralisada a um canto da sala. Parecendo querer agarrar-se às lágrimas que divisou nos meus olhos, subitamente tem uma apoplexia, os olhos esbugalhados, e desfalece, derrubando a cadeira para trás e rolando aos pés da mesa.
O banquete acaba aqui. Também não vi mais nada. Não tenho mais detalhes dos acontecimentos depois disso. Tudo se desvanece...

FIM


01/10/2002


Stradivarius no Sótão (de Alma Welt)

Um vizinho no bairro de Pinheiros
A quem deu a mania de comprar
Violinos e rabecas sem parar
Que lhe levavam falsos companheiros

De um carteado fútil, sem sentido,
Vilipendiado em sua inocência
Em seu lar doce lar mais que invadido,
Já estava à beira da demência...

E me convidando especialmente
Com a presença dos falsários
No meio de um jantar beneficente

Destrincharam violinos como frangos
E até o seu falso Stradivarius,
A pinçar-me-lhes a alma ao som de tangos...


Nota
Este soneto inédito que acabo de descobrir na Arca da Alma, sintetisa de maneira prodigiosa o conto inteiro entitulado Stradivarius no Sótão, dos Contos da Alma, de Alma Welt, livro publicado em 2004 (o qual ainda se encontra à venda), com contos que correspondem ao período em que Alma morou em São Paulo nos Jardins, e em Pinheiros, para onde mudou seu ateliê para uma casa, para ampliá-lo. (Lucia Welt)

domingo, 22 de junho de 2008


Alma e Aline- Esta pintura de 100x100cm, óleo s/ tela de autoria de Guilherme de Faria está exposta e à venda na Exposição temática coletiva NUS, na Jo Slaviero & Guedes Galeria, na rua Gabriel Monteiro da Silva 2074, Jd. Paulistano, SP Tel 3061 9856, até dia 28 de junho de 2008.

sábado, 17 de maio de 2008

Aline (de Alma Welt)

Do livro publicado CONTOS DA ALMA, de Alma Welt


Sinto-me solitária. Não estou agüentando, preciso fazer alguma coisa a respeito... Estou começando a parecer uma solteirona inconformada.
Tento localizar Rodo, meu irmão caçula, que amo tanto. Penso em convidá-lo a morar comigo, apesar dos problemas que isso pode me acarretar. Mas não consigo localizá-lo. Está praticamente desaparecido. Conversando com minha irmã mais velha sobre isso, nada consegui saber sobre o seu paradeiro, e só obtive um sermão chatíssimo sobre o desperdício da minha vida (do seu ponto de vista), de que deveria procurar um marido que cuidasse de mim, enquanto é tempo, enquanto ainda sou jovem e bonita, porque depois...blá, blá, blá...Etc.etc.
Bato o telefone e ponho-me praticamente a gritar. Olho-me no espelho, o rosto riscado de lágrimas, congestionado. Assim, vou me acabar.
Tomo, afinal, uma decisão. Ligo para uma agência de modelos, famosa, que encontro na lista amarela. Falo com a atendente, e apresento-me como a artista plástica Alma Welt. Ela parece saber quem sou. Digo-lhe que preciso de uma modelo de ateliê, que seja linda, nada menos que isso, e que aceite se despir como “modelo vivo”, para uma pintora famosa, que sou eu. A funcionária achou muito natural, e consultou seu cadastro de modelos. Perguntou-me se não quero um rapaz, também. Eles os têm belíssimos e com boas referências. Digo que não, que prefiro uma modelo para nu artístico feminino. Ela percorre as fichas, e parece puxar uma, pela fotografia. Diz: “Tenho uma aqui que faz esse tipo de trabalho. Chama-se Aline.” Pergunto-lhe “Ela é bela?” Ela responde: “ Muito. É morena clara, de cabelos cacheados e olhos azuis. Uma beleza, e o corpo, então, perfeito.” Digo-lhe que me mande essa modelo. Ela me pede todos os meus dados, e o número do meu cartão de crédito. Diz-me o preço da hora dessa modelo, as condições, e tudo mais. Diz-me que me mandará um contrato para eu assinar. Concordo com o preço, com tudo. Quando afinal desligo, sinto-me aliviada.
Deito-me no meu sumiê, no espaço cercado pelas minhas telas. Ajeito um grande espelho antigo, de modista, que tenho para auto-retratos. Desnudo-me, e volto a deitar-me em pose de odalisca de Ingres. Sempre fui um tanto voyeuse de mim mesma. O que me resta, afinal? Preciso apreciar a minha beleza, enquanto ela existe, já que ela é tão elogiada pelas pessoas. Isso me deixa um tanto erotizada, e começo a exibir-me em todos os ângulos, alguns até mesmo um tanto pornográficos. Mas logo me canso da brincadeira, e caio de bruços, com a cara na almofada, soluçando. Adormeço ali mesmo, nua e descoberta.

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Na manhã seguinte, perto das 10 horas, toca o telefone. É Aline, a modelo. Notei-lhe a bela voz, doce, ao mesmo tempo direta e prática. Gostei do que ouvi. Ela combina vir ao meu ateliê às três da tarde, para começar as poses. Ao desligar, ponho-me a rodopiar pelo estúdio, como uma louca, apaixonada. Eu sou assim. Já estou predisposta a amar. Não quero saber se dará certo, se serei correspondida. Isso de amar, é antes de tudo uma questão de querer, de entregar-se, de predispor-se. Ainda penso assim. Somente sei, que, depois de disparado o processo, perdemos o controle. Ah! Como eu haveria de comprovar isso!...

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Toca o interfone. O seu Ermírio anuncia Aline. Abro a porta do apartamento e deixo-a escancarada. Assim, ela sairá do elevador e eu a estarei esperando (como se estivesse de braços abertos). Aliás, os abro rapidamente, fechando-os pouco antes da porta do elevador abrir-se. A moça olha-me surpresa, enquanto abro o meu mais receptivo sorriso. Ela é bela, meu Deus! Mais do que eu imaginava.
Aline estende-me a mão, comprida, perfeita, como a minha. Eu reparo em tudo. Seguro-lhe a mão e não a solto, para conduzi-la para dentro do apartamento. Ela olha, curiosa, para mim, e logo lança os olhos ao redor. Desprende sua mão da minha e rodopia um pouco de braços abertos, com um lindo sorriso. E diz, parando e cruzando as pernas, de pé, graciosamente:
–Alma Welt, a pintora...Que lindo tudo aqui, a começar por você !
Adorei ela dizer isso, meu coração disparou mais ainda. Eu pensei:
“Ela já foi fisgada. Ou, pelo menos começou bem...”
–Obrigada, Aline, tu também és linda, e ...acho que vamos nos dar bem. Tu queres alguma coisa antes de começar-mos a trabalhar? Um café, por exemplo, ou um suco?
–Não, Alma, obrigada. Pode preparar seu material. Começamos assim que você quiser.
Coloquei uma grande tela quadrada, no cavalete. Não pintarei nenhuma “odalisca” na horizontal. Vou enquadrá-la numa composição contemporânea, que não sei ainda como será. Mas ela estará de pé, ou acocorada. Talvez no ato de despir-se.
Aline começa a tirar a roupa, muito simples: a camiseta sobre os seios que despontam, sem sutiã. Que belos! Senta-se no chão e tira o tênis, depois a calça jeans. Fica um instante de calcinha e olha em torno onde botar a roupa. Coloca-as sobre um banco, ergue os olhos, fita-me e abaixa a calcinha. Tira-a com infinita graça. Percebo que ela se esmera na graciosidade dos gestos. Isto é um bom sinal. De sua elegância natural, que eu já notara à sua entrada, ou de uma intenção inconsciente de sedução: melhor ainda...
Fica então imóvel, os braços caídos, esperando. Aproximo-me e toco seus braços. Ergo-lhe um e deixo-o em determinada posição, depois o outro. Em seguida ponho minhas mãos em seu rosto e viro-o suavemente para um lado. Noto que ela é uma profissional: tem prática. Fica imóvel, congelada, exatamente na posição em que a deixo. Afasto-me e olho-a inteira. Como é bela! Que corpo! Morena clara, formas suaves, esguias. Pernas longas e bem torneadas. Que pés! Que mãos! E o seu púbis! A maravilhosa curva suave do seu ventre encontrando um montículo de pelos que deixam descobertos a vulva perfeita, como uma concha rosada, nada para fora, como uma adolescente. Uma promessa de prazer. Sacudo a cabeça como para espantar um pensamento, e ela com o rabo dos olhos parece perceber esse meu gesto. Capto uma curva quase imperceptível nos cantos dos seus lábios. Ela está sorrindo por dentro. Safadinha! Ela sabe... ou ela quer provocar-me. Começo a manuseá-la profissionalmente, mas com muita delicadeza. Observo seus seios, seu peito que começa a ofegar. Isso ela não saberá disfarçar... Seu coração, sua respiração a trairá. Ela está excitada. Ou, de alguma forma, emocionada. Afasto-me, olho-a com atenção profissional, mas sempre com um laivo de doçura, que ela captará. Viro-me e vou procurar um CD. Fico de costas para ela por alguns segundos, escolhendo entre a pilha, e ao mesmo tempo saboreando o seu olhar pelas minhas costas, que adivinho. Que sinto, na verdade. Demoro-me quase um minuto antes de voltar-me subitamente para ela, a tempo de pegar os seus olhos voltados para mim, que então, quase assustados, se desviam! Essa garota é adorável. Fui maravilhosamente sorteada. Ela será o meu amor. Eu me prometo!

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Continuo pintando desde cedinho, todos os dias. Mas enquanto Aline não chega, percebo que o meu trabalho tem o timbre da espera. Quando ela entra, ainda pela manhã, meu dia realmente começa. A vida começa... Caí na minha própria armadilha. Passo muito tempo esperando-a. Ela chega e me ilumina. Não terei então luz própria? Suspeito que não. Essa é a qualidade do amor... iluminar-se do amado. Preciso de Aline. Necessito Aline. Meu amor. Meu amor...Como é belo o seu nome, Aline, como é perfeito o seu som. Olho seus olhos, sua testa, seu narizinho, sua boca carnuda na medida certa. Seus cachos... como é bela, meu Deus! Queria engoli-la . Queria-a dentro de mim, para sempre. Mas ela... está fora de mim. Ela é um pouco rebelde. Ela se irrita, às vezes. Ela é brusca, em certos momentos. Ela percebe que eu a desejo... que eu a quero. Vai começar a tiranizar-me. Ai, meu Deus... Vou sofrer. Ela vai fazer-me sofrer. Ela já o faz... Ela joga charme. Ela se exibe ao posar. Ela se excita ao ver como a olho, como a desejo. Em certos momentos enquanto posa, percebo um ligeiro brilho na portinha de sua vulva, que ela não pode esconder. Ela fica molhada. Ela se trai. Ah! querida, tu já estás caindo na minha teia... ou eu na tua, não sei mais.
E os seus seios, meu Deus! Apontados para a frente, perfeitos, brotam na horizontal como se estivessem na vertical, como uma menina. Ainda não sentiram o peso da gravidade. Seu corpo é uma obra de arte, como o meu também é, essa é que é a verdade. Pintá-los é tão somente registrá-los, conservá-los assim para sempre. É um dever que sinto. Não, não seja hipócrita, Alma. É teu prazer, é tua luxúria. O gozo do espelho...

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Aline dorme ao meu lado nua, neste verão escaldante. Fico horas a olhá-la, a degustar a sua imagem, com as minhas retinas de “expert”. Não! Com o meu olhar amoroso, isto sim. Quantas vezes ponho-me a beijar cada centímetro de sua pele, e também de algumas mucosas mais acessíveis. Oh! Meu Deus, meu Deus. Estou ficando louca de amor. E de paixão. Já começo a sofrer por antecipação. Sofro de tanto amá-la, de tanto desejá-la. Serei eu uma doente? Carente? Não sei mais. Nada me faltou na infância. Fui tão amada... Mas, e minha mãe? Talvez esteja aí a razão dessa minha febre amorosa. Minha mãe não me amava do jeito que eu queria, pois não aceitava plenamente meu jeito de ser. Ela não me queria artista. Isso a assustava. Ela tinha medo disso: da artista. Ela não compreendia o meu excessivo amor pela beleza. Ela não aceitava ver-me chorar pelo belo, pela poesia. E muito menos pela alegria. Para ela isso era uma espécie de aberração... Uma heresia... no seu acinzentado mundo interior, cristão, igrejeiro. Ela tinha gerado uma pequena rebelde, pagã, dionisíaca, germânica por um lado, lusa nostálgica pelo outro; ambos os lados temidos e rejeitados por ela.
Ah! Como ela quis, sutilmente ou não, reprimir-me! O que foi pior: tentar reprimir-me com sutileza. Como me magoava, às vezes! Como me decepcionava, desapontava, ou me fazia envergonhar-me após um momento de euforia...
Mas, também ela me amava...à sua maneira. Um dia abraçou-me, dizendo: “Alma, Alma, o quanto vais sofrer, minha filha. O mundo não é belo com tu pensas. Estamos no vale de lágrimas, tu pareces não saber, minha filha. Mas tu verás. Tu perceberás que viemos a este mundo para sofrer pelos nossos pecados. Alma, Alma... A vida não é prazer, a vida não é uma festa, minha filha.”
Ah! Mamãe, tu nunca pudeste me convencer disso. Não, ainda não acredito em ti. Tenho pena de ti, mamãe. Tu não soubeste viver. Não soubeste amar, rir e gozar plenamente. Tu acreditaste num velho catecismo. Os padres...eles te enganaram, ou foram teus pais, meus avós portugueses, que o fizeram. Mamãe, mamãe, eu sinto tanto por ti! Talvez fosses muito infeliz com o Vati. Eu nunca soube direito, mas, talvez, ele não fosse o teu verdadeiro amor. Isso explicaria tudo. Essa tua amargura, esse teu estoicismo espartano, essa austeridade na casa compartilhada com Dioniso, o grande bode luxurioso que era o Vati. Só isso explicaria tanta contradição...
Quanto a mim, tomei o partido da alegria vital, e do prazer, representado por meu pai. Sinto muito, Mutti, nunca estive do teu lado. Talvez devesse ter ido mais fundo, para te compreender melhor. Mas agora é tarde, não te beijei o rosto em tua agonia, e não derramei muitas lágrimas ao pé do teu caixão, como o fiz, mais tarde, diante do caixão do velho. Eu sinto muito...

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Desperto mais uma manhã ao lado de Aline. Espreguiçamo-nos como duas gatas preguiçosas, mas logo quero tocá-la, acariciá-la um pouco. Preciso certificar-me de que ela é real, e não um produto materializado da minha fantasia. Então, beijo-a e logo me levanto para preparar o café da manhã para nós. Quero sempre trazer-lhe o café na cama. Quero servi-la. Ela se admira um pouco disso, pois estava preparada para ser somente uma modelo, e portanto, de algum modo servir-me em troca de um salário, ou cachê. Mas não, ela ainda não sabe o quanto vou amá-la. O quanto, portanto já a amo. Preciso tomar cuidado para não assustá-la com a voracidade da minha paixão. Aline é ligeiramente arisca, não muito. Tive sorte. Se ela não se rebelou, e não rejeitou as minhas carícias logo de saída.... a coisa está bem encaminhada. Como é bela! E como é graciosa! Ai! meu Deus, preciso controlar-me para não desenvolver ciúmes dessa garota em relação àquele seu namorado, o tal de Pedro. Mas... precisamos traí-lo. Sim, nós mulheres temos esse direito. Não sei porquê, mas algo me diz que é o que nós mulheres deveríamos sempre fazer. Isso representaria uma certa rebelião em relação à nossa subserviência ancestral aos homens. Porquê não? Oh! meu Deus, tudo isso são justificativas. O que me impulsiona é o meu desejo. Somente isso. Sou uma faminta...
Por outro lado, meu desejo reveste-se das tintas do verdadeiro amor. Sim, eu tenho tanto amor para dar!. Preciso derramá-lo ou ele me consumirá. Esta moça, esta mulher, é como eu, mas pode ser mais que um espelho. Terei todo cuidado para diferenciá-la do meu reflexo. Ela merece toda a atenção. Ela é delicada, feminina como poucas. Por isso escolheu essa profissão. Ela sabe, adora ser olhada, devorada mesmo com os olhos. Não, isso não é apenas profissional. Tem a ver com a sua libido, sua pulsão exibicionista. Quer dizer, o seu desejo!

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Aline já está enredada na minha teia. Percebo que já a seduzi completamente. Ela revela uma disposição voluptuosa em dar-se, em ser amada, admirada, acarinhada sensualmente. Quando demoro em tocá-la ela se aproxima, como uma gata, ronronante, e toca seu rosto, começando por sua testa, em qualquer parte do meu corpo, arbitrariamente, de maneira insólita. Se estou muito ocupada, tira por exemplo a paleta das minha mão e pegando-a nas suas, passa-as no seu rosto, nos seu cabelos, com um olhar lânguido, irresistível. Então, largo os pincéis, largo tudo e a abraço, conduzindo-a numa dança exótica, meio tango, meio pas-de-deux, ao nosso leito. Fico então a beijá-la, a lambê-la dos pés à cabeça, por horas. Depois detenho-me sobre o seu púbis, ralo, cuja penugem negra, macia, tem um cheiro peculiar, um perfume adorável, e banho-a com a minha língua, demoradamente. Titilando o seu clitóris, que desponta com uma cabecinha, de um pênis minúsculo, mas túrgido em toda a sua possibilidade. Fico enternecida com esse pequeno membro que quer mostrar-se potente, pobrezinho, e medito por um segundo na sua natureza ancestral, do tempo em que éramos unos, homem e mulher. Lembro-me que sempre me espantei com os mamilos dos homens e reparava, ainda na infância, como eles se tornavam tesos, nos peões sem camisa, quando lidavam com as rêses. Eles nunca me enganaram. Quanto aos seus grandes membros, sim, eu reparava neles, bem disfarçados sob as folgadas bombachas. Bem que eles me chamavam “chinoquinha”, entre eles, eu ouvi, algumas vezes. Talvez percebessem a minha atenção, a minha sensualidade que aflorara tão cedo. Não foi à toa que ocorreu aquele incidente com meu irmãozinho Rodo. Não contarei por hora, esse segredo... da minha infância. Quero concentrar-me em Aline, minha doce Aline, que agora dança o mais belo balé do mundo em minhas mãos. Como nos amamos! Sim, porque ela me ama, eu percebo. E não mais conseguimos disfarçar em público, agarradas, abraçadas. De mãos dadas a todo minuto. Por outro lado, percebo uma certa condescendência nos estranhos, somente talvez porque somos jovens e belas. Não ousariam chamar-nos por aqueles nomes pejorativos, que não repetirei, frutos da vulgaridade das mentes banais.
Sim, o que sempre me chocou foi a vulgaridade do homem comum. Prometi a mim mesma, nunca mencioná-lo, nunca sequer descrever o homem vulgar, nos meus escritos, nos meus poemas. Ele não entra em linha de conta. É como se não existisse. A minha vingança, sutil, é omiti-lo completamente. “Você vive numa torre de marfim”... dirão alguns. Não, a vida somente é verdadeira em seus termos ideais, e o mito a perpassa cotidianamente, sem que esse homem comum sequer o perceba. Como poeta sempre vivi em sintonia com o mito, percebendo a alegoria riquíssima dos acontecimentos aparentemente simples da minha vida, nada banais, pois que na minha vida o banal não existe, já que o desvelo, ao seu sentido mais profundo, em cima mesmo do momento. Tenho pena das pessoas que não sabem ler as entrelinhas de suas vidas, o significado oculto de tudo que lhes acontece, sem perceberem que a vida é muito mais rica para todos, e o herói e a heroína estão dentro de nós, assim como todas as grandes aventuras, até mesmo as epopéias.

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Aline revelou-me hoje, que continua seu namoro com Pedro, o que não chegou a me surpreender. Eu já previa isso. Eles tem se encontrado em dias alternados entre os dela comigo. Na verdade, houve dias em que esteve com ele... e comigo em seguida. Ela confessou-me que isso a erotisa duplamente. Deixar-se manipular por mim, após ter sido possuída por Pedro, menos de uma hora antes... Bem que eu percebia o cheiro e os resquícios do macho. Mas, eu também me erotisava com isso. Agora ela se abre e conta tudo. Ela costuma descrever para ele o seu idílio comigo e nossas ardentes tardes ou noites. Ele se excita e exige dela detalhes, de preferência obcenos. Está participando à distância, de uma espécie de ménage-a-trois imaginária. Agora quer me conhecer pessoalmente, já que faço parte, sem querer, de suas fantasias. Quer que nos encontremos, os três, num barzinho, que escolheu, para conhecer-me. Garante, disse ela, que não será invasivo, e que me respeitará. Manda dizer que me admira como artista e que tem imensa curiosidade em conhecer-me, pelo que Aline tem revelado, e pela felicidade crescente dela, que não lhe passou despercebida, e sobretudo não os afastou, e sim uniu-os ainda mais. Assim, dissera ele.
Aceito, intrigada. Como será esse Pedro? Aline mal o mencionava, essa é que é a verdade. E essa discrição de sua parte, em relação a ele, faz-me supor uma enorme cumplicidade entre eles. Como não pensei nisso antes? Bem, vamos lá. Aceito o encontro, e ainda pego-me arrumando-me e enfeitando-me com esmero, para esse evento.
No dia e hora combinados, encaminho-me para o tal barzinho, e ali encontro-os já instalados numa mesa, de mãos dadas. Ruborizo imediatamente contra minha vontade, ao vê-los assim. Pedro levanta-se e puxa gentilmente a cadeira para mim. Reparo que é um belo homem de seus trinta e poucos anos, de cabelos pretos anelados e barba espessa, curta, cerrada. Um rosto, assim... de fotógrafo. Ou de voyeur ? Esse pensamento arrepiou-me. Senti-me imediatamente observada, medida, eu diria mesmo devassada pelo seu olhar observador. Ele sabia tanto de minha intimidade, pelos relatos de Aline, desde o seu primeiro dia de pose, das impressões de Aline sobre a minha pessoa, naquele primeiro encontro, do qual ela fizera para ele um relato completo que o intrigara, que isso me deixava agora, ali, terrivelmente exposta. Sua imaginação já percorrera o meu corpo todo, e agora, ele ali, naquela mesa conferia-me sob as minhas roupas, eu percebia. Sentia-me nua, e instintivamente apertava meus braços contra os meus seios, os cotovelos sobre a mesa e as mãos tocando o meu longo pescoço. Que bobagem! Sou uma adulta, preciso me lembrar disso, e não um adolescente. Ele, o macho, não me intimidará. Eu sei como eles são, os homens... Ah! Aline, porque você fez isso com a gente? Porque aceitei, também, esse encontro, que me coloca numa situação tão vulnerável? Esse rapaz já conhece tanto sobre mim, e eu quase nada sobre ele. Que sei eu do seu caráter? É verdade que seu aspecto não me desagradou, muito menos o seu olhar, em que vislumbrei uma certa doçura, e muita inteligência. Mas...o que quererá ele?
Após a apresentação e as primeiras palavras de conversação gratuita, canhestra a princípio, Pedro começou logo o seu jogo. Um jogo de provocações, na verdade. Perguntou-me pelo meu namorado, ou marido, e ouviu a revelação da minha viuvez precoce. “Ah!” exclamou ele. “E depois?’- “Depois o quê?” repliquei eu. “Não houve outros homens?” “Ah! sim, houve, alguns”, eu respondi com um ar casual.
Pedro pediu bebidas. Parecia acreditar que o álcool o ajudaria a arrancar-me a verdade que procura Mas, o que procura? Ele é esperto. Faz pausas desinteressadas para disfarçar o caráter de interrogatório que essa conversa pode tomar. Logo mudou o jogo, e começou a exercitar o seu charme, tornando-se galante comigo, ao mesmo tempo que intensificava as carícias em Aline. Percebo o seu jogo. Ele quer excitar-me, ou provocar o meu ciúme. Sim, ele tem a fantasia tão comum nos homens, da ménage-a-trois, e já percebo o seu desejo sobre mim. Ele me achou bonita, claro, e gostaria de ver-me na sua cama, juntamente com Aline. Nós mulheres somos alimento, somos iguarias para o homem. Essa é que é a verdade. Como disse André Breton: “A mulher é o alimento corporal mais elevado”. Sim, é preciso aceitar isso, até mesmo com orgulho. E com volúpia. Aquela situação começava real mente a instigar-me. E eu não rejeitaria a idéia dessa relação a três, se de repente, Pedro não começasse a revelar o seu machismo, e a afirmar sua posse sobre Aline. Começou a agir assim, logo que percebeu que eu era uma mulher inteligente, talvez mais inteligente que ele. Ah! Isso ele não podia suportar...
Estabeleceu-se afinal uma situação de antagonismo. Pedro, percebendo que eu não seria manipulável, uma mulher-objeto, e que meu amor por Aline tinha ultrapassado o ponto aceitável (para ele), isto é, era perigoso por ser muito mais que simples desejo, passei a ser uma espécie de ameaça realmente, a rival que ele, no início, não temera. A guerra estava declarada.
Levantei-me na primeira oportunidade, antes que começassem as hostilidades. Suas últimas palavras, contudo, ressoariam mais tarde, dolorosamente, em meu espírito: “ Alma, você precisa de um homem que a dome, ou você perderá logo logo a sua beleza.”

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Aline encontra-me no ateliê, algumas horas depois. Está estranha, olha-me meio de esguelha. Quer saber se estou magoada, se Pedro machucou-me muito com suas agressões veladas. Está em cima do muro. Não quer perder-me, nem a ele também. Agarro-a subitamente e prenso-a contra a parede, num gesto decidido, mas nem por isso viril. Beijo-a ardentemente, e agarro-lhe os seios com força. Ela geme, assustada. Eu grito-lhe:
-“Tu também pensas, Aline, que eu sou menos mulher porque te desejo? Não vês que eu te desejo assim, porque te amo? Quem é aquele homem, para me julgar? Que sabe ele do meu amor, do nosso amor? Ai! Aline, eu sofro. Eu sofro de te amar tanto assim...e nada poder. Não poder ser completa para ti. De ter que dividir-te com aquele idiota. Ah! Quase fiz o seu jogo!... e pensar que acreditei, por momentos, que poderia dividir-te com ele... na mesma cama!. Não, não é possível. Quero-te inteira, Aline, e ouso pedir-te agora que o deixe. Venha, venha, Aline, vamos para o nosso leito. Eu te possuirei, de algum modo! Eu te possuirei!

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Ai, Rodo, como me lembro de ti. Nestes dias de depressão, transporto-me em espírito para a nossa estância, para o nosso pomar. Ali, sob aquela macieira onde fomos flagrados, nuzinhos, tão crianças. Eu tinha a mão sobre o teu pequeno membro... teu pintinho, como dizíamos. E a tua mão sobre a minha conchinha, eu a sinto ainda hoje. Se tivéssemos tido tempo, consumaríamos o nosso maravilhoso pequeno incesto. Teria sido uma solução? Às vezes penso que sim. Eu não me sentiria para sempre assim carente, incompleta. Eu não amaria assim mulheres, tanto quanto a homens, e minha vida seria, talvez, mais fácil. A minha vida amorosa, pelo menos.
Bem, não posso me queixar. O Vati defendeu-nos, filosoficamente, e com o seu maravilhoso senso de humor minimizou os danos. Neutralizou o drama que a Mutti fez do caso, depois de traumatizar-nos tanto com aquele flagrante humilhante. Nunca esquecerei que fomos arrastados pela mão, os dois, peladinhos e chorando, obrigados a cobrirmo-nos com a outra mão, pequenos Adão e Eva, expulsos do paraíso, afastados da nossa macieira querida, que ostentava o nosso coração e iniciais ingenuamente gravados.

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Aline está dividida. Perdeu sua espontaneidade comigo. Parece sentir-se culpada agora, na nossa relação. O Pedro conseguiu envenenar o seu espírito. È o seu recurso, sua arma desleal, para arrastá-la para si. Eu sei: “no amor e na guerra, vale tudo”, diziam os antigos. Mas, ai, não posso lutar com armas assim. Vou perder-te, Aline. Estou te vendo escorrer entre os meus dedos, e sinto o vazio instalar-se no meu peito.
E o meu amor? Ele não deveria bastar-me? Ah! Não, isso não existe. É ideal demais. Quero-te inteira, Aline, quero teu corpo, tua beleza, tuas carícias. Teu cheiro Aline, teu perfume! Vou morrer à mingua, meu corpo sofre, como a minha alma!

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Enfeito o ateliê com flores. Aline vem encontrar-me. Sei que vai despedir-se. Ela chorou muito ao telefone. Diz que precisa ver-me uma vez mais. Eu sei que me ama, e a espero com as flores que o meu amor merece.
Ao tocar a sineta, abro imediatamente a porta e ela cai-me nos braços, aos prantos. Agarramo-nos desesperadamente, como se mãos invisíveis tentassem nos separar. Nossos beijos são ávidos, nossas línguas se enroscam, nossas lágrimas se misturam. Jogamo-nos no chão, arrancando nossas roupas, no centro do ateliê, em meio às telas, num ardoroso sessenta e nove. Queremos entrar uma dentro da outra. Ah! Porquê querem nos separar?
Não deixaremos. Não deixaremos! Entraremos uma na outra. Seremos uma só! Ai!

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Estou no fundo, em meio às trevas. Meu corpo está pesado como meu espírito. Movo-me lentamente nas sombras, no subterrâneo da alma.
Volto à estância, em pleno inverno dentro de mim. Aqui sopra o minuano frio que corre no Pampa, com a minha chegada. Sinto que trago o pampeiro comigo. Ele me segue. Arrasto-me em meio às brumas, entre as árvores do meu pomar. Procuro a minha macieira. Preciso chorar, meu rosto colado ao seu tronco, sentindo com meus dedos a cicatriz do coração com os as nossas iniciais gravadas. Rodo e Alma.
Nosso casarão está deserto, a sala vazia, o piano mudo. Perambulo à noite pela nossa biblioteca, olhando as lombadas das obras outrora tão queridas. Um instinto me faz erguer a mão em direção a um grande tomo, e puxá-lo, pesadíssimo: “AS AVENTURAS DO BARÃO DE MÜNCHAUSEN”, ilustrado por Doré, e abri-lo a esmo, justamente numa página ilustrada: o barão, alçado no ar, de um poço de areia movediça, com seu cavalo abarcado pelas suas pernas, pela força do seu braço que o puxa pelo rabicho de sua nuca. Ó visão inspiradora! Ó emulação salvadora! Sinto que vou puxar-me igualmente pelo cabelos, também para cima, para cima!

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Volto a São Paulo, ao meu ateliê nos Jardins, ainda muito lenta, como em começo de convalescença. Ao entrar, a visão dos meus quadros, das muitas telas, prontas ou inacabadas, me consola. Como amo este ateliê! Este pequeno universo que construí sozinha (se é que isso é possível). Na verdade, ele é fruto da minha bagagem de infância, de sonhos, e de meu ideal de arte e beleza, herdados do Vati, sonhador como eu, mas que tinha, talvez, os pés mais firmes no chão da nossa estância. Ah! Vati, tu voavas era na música, ao teu piano que dedilhavas tão bem! Ainda ouço as sonatas, Vati, e os prelúdios, mas não mais as sinfonias cuja marcialidade agora me repugnam....
Torno a colocar os meus CDs preferidos no aparelho, escolhendo primeiramente o Trio em mi bemol maior, Opus 100, de Schubert. Ouvindo novamente essa obra-prima, começo a compreender algo inexprimível dentro de mim mesma, algo que atribui sentido à minha paixão perdida, e me reconcilia comigo mesma, nesta espécie de fracasso que senti em minha vida, com essa experiência à primeira vista desastrosa. Sei que vou desfiar em seguida uma série de obras musicais queridas, chegando afinal àquela “Ária da Campainha”, da Lakmé de Léo Delibes, que produz em mim uma estranha identificação com a estória da pequena jovem pária da Índia, que atravessa a floresta fazendo soar o seu sininho. Esta ária cantada pela personagem Lakmé, na interpretação superlativa da soprano chinesa Ondine Diu Ber, me deixa como que purificada, limpa espiritualmente, talvez pela pura ação da beleza, em meu espírito. Somente a grande música é capaz de agir assim, despojando-nos de nossas paixões talvez supérfluas, pela ação catártica daquelas já sublimadas pela Arte. Para finalizar coloco no aparelho uma versão para piano e grande orquestra sinfônica, do Feitiço da Vila, de Noel Rosa. Isso acaba de me fazer querer viver novamente, sorrir, desabrochar... Pressinto que, em menos de um mês, na certa, voltarei a amar .

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Lanço um quadro novo, uma imensa tela cuja superfície imaculadamente branca me sugeriu uma espécie de virgindade selvagem, se posso assim dizer. Estou novamente lançada à uma aventura que nunca me decepcionou. Tudo é possível no espaço ideal de uma tela, onde o espírito se funde com o acaso para permitir todos os vôos. Neste estado de exaltação, altamente prazerosa, passo a achar tudo o mais, fútil, menor, mesmo as minhas mais dolorosas e recentes paixões. Mas... não renego nada. Posso amar Aline agora já sem dor. Posso amar tudo e todos, bastando que me mantenha fiel à minha arte, nunca a renegue ou me afaste perigosamente dela, ou de mim mesma como o fiz. Reconcilio-me com o imenso privilégio de ser artista, esse ser caro aos deuses, a ponto deles, amiúde o atormentarem, para testarem seu amor... e sua coragem. Sim, coragem é a suprema virtude exigida do artista, para criar e para viver, eu sei. E ai daqueles que cospem e blasfemam sobre o dom supremo de criar, espelho da divindade. Esses sim, não escapam ao seu próprio Hades interior. Esse é o segredo da vida, e da Alegria, nessa nossa passagem... Mas, chega de filosofar. Quero viver, viver, amar e gozar novamente, usufruindo os dons com que fui cumulada .Ah! alegria criadora, volto para ti!
Após algumas bravas pinceladas, sou obrigada a interromper o trabalho: o interfone toca insistentemente.


FIM


04/06/2004

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Memória de meu pai morto


Crepúsculo- óleo s/ tela de 30x40cm, de Guilherme de Faria, paradeiro desconhecido.


02/09/2006

Trecho do romance "O sangue da terra", de Alma Welt

Quando há cinco anos atrás iniciou-se a doença de meu pai eu senti que estes céus que nos cobriam escureceram-se, perderam o brilho. Recolhido ao seu leito, com as janelas sempre cerradas pelas cortinas numa semi penumbra, a tristeza que o devorava parecia vir de fora para dentro e por sua própria vontade. Ele deixara de querer viver. O que o corroía? Tenho uma vaga suspeita. Um amor que ele não realizara, e que não era o de minha mãe. Meu pai, herdeiro do romantismo alemão, tardio embora, acabara sendo vítima de um amor perdido, irrealizável? Eu me pergunto ainda hoje. Quem tocava como ele Chopin e Schumann, com tal delicadeza...e tristeza, deveria certamente saber do que estava tocando. Eu sempre suspeitara disso em minha infância, e minha ternura por ele fazia-me, às vezes imaginar-me como uma amante, adulta, acariciando-o apaixonadamente, beijando seus lábios. Hoje sei que esse devaneio é comum nas meninas, embora profundamente recalcado. Não era à toa que minha mãe irritava-se quando me via sentada em seu colo. Ela temia, ela suspeitava da natureza profunda, carnal e anímica da nossa relação. E no entanto essa mulher não conseguia ser para ele a ninfa, a musa, a deusa, que ele merecia, sendo somente a mãe de sus filhos. Um caso, afinal, comum. Mas ele não. Ele não era comum. Seus dotes eram excepcionais, e um homem assim merecia a numinosa figura de mulher que nunca pudemos descobrir, e que habitou os seus sonhos até o fim. Ainda hoje imagino que a descubro, encontro o seu paradeiro e peregrino até ela, linda mulher madura, que me recebe quase maternalmente. Sim, maternalmente, me abraçando e dizendo: “-Alma, leva o meu abraço ao Werner, que se lembrará dele. Leva o meu beijo em teus lábios, e pousa-o sobre os dele. Eu ficarei afinal com ele, através de ti.” Ai! Quero morrer quando lembro disso, tenho até vergonha, eu que não tenho mais vergonha de nada. Tenho pudor de tanto amor que nutri pelo Vati sem nada poder, sem nada saber, tudo imaginando, tudo projetando... e absorvendo o seu maravilhoso mundo mental e anímico. Sou sua herdeira, incuravelmente romântica, e me orgulho disso. Mas as feridas abertas por tanto amor, na finíssima pele da alma, que esbarram nas arestas do cotidiano, não se fecham, não cicatrizam mais... e eu sangro. Eu sangro. Vati, eu fugi daqui, desta estância, do nosso salão com teu caixão entre quatro tocheiros, como de um cavaleiro morto, como um grão-mestre de uma ordem teutônica, cuja solenidade na morte me acachapou. Senti, então, que não podia arcar com o peso da tua herança, e fugi daqui, correndo, a esmo, e fui parar naqueles Jardins anódinos para mim, daquela cidade imensa de São Paulo, a “Paulicéia desvairada”, que pouco ou nada tem a haver comigo. Mas ali, afinal, encontrei o meu amor, atraí-o para o belo ateliê que montei, apesar de tudo, de toda a dor. Ali, Aline veio ao meu encontro, e hoje eu a trago para ti, para apresentá-la a ti, que a desfrutarás através do meu amor. Ela não pode saber disso. Ou já sabe? Ela não se ofenderia... Ela sabe que cultuo os meus deuses, e que és o maior deles, logo abaixo de Deus. Ela é dócil nas minhas mãos, e eu mais a amo por isso, adorável pequena ninfa, que sabe, apesar de tudo, da pureza do meu coração. Nada disso faz de mim uma manipuladora. Tenho direito aos meus amores, e os junto a todos em minha alma: Rôdo e Aline, e a ti, Vati. Acrescentarei Patrícia, minha criança sublime. E até mesmo Vânia, que me amou tanto, quase virilmente. Mas também os gêmeos Hans e Christian, e Pedrinho, meus sobrinhos. Matilde e Gaudério, todos os que me amam ou amaram, são dignos de mim. Alex e Irma, o Duo trágico. Josué, no sertão, levando-me para encontrar o Pavão Misterioso; Jean Baptiste em Paris e Corinne, que me exorcisaram Adèle D’Affry, a Pítia em mim. Todavia quando penso nesta última, vejo que a pitonisa ainda está dentro de mim, e é ela, talvez, que me faz acender piras diante da minha ara. Vati, deposito Aline aos teus pés. Abençoa-a, Vati, de onde estiveres. Quero ser feliz, como talvez não foste nunca. Serei feliz por ti, com o meu amor. Por nós, por nós!

02/09/2006

sábado, 12 de abril de 2008

Nossa verdadeira vida

(das Crônicas da Alma, de Alma Welt)

Acaba de ocorrer-me que a nossa vida compõe-se de extratos superpostos, com maior ou menor representatividade, sendo que o plano sexual, representa a parcela mais sugestiva, o extrato superior, o mais significativo de nossa existência. Bem, nós sabemos que Freud já dizia isso com outras palavras. Mas parece que essa evidência continua a ser negada ou abafada até hoje, nesse começo de milênio, como se a sexualidade fosse uma potencialidade menor, ou obscura, que deve permanecer escondida, marginalizada em nossa vida. E nisso consiste a maior hipocrisia do ser humano.
O poderoso instinto de procriar se manifesta acompanhado da pulsão do prazer, um profundo prazer, cuja permanente lembrança se sobrepõe a tudo, por isso há quem tenha o sexo como uma idéia fixa, subjacente a tudo, durante todos os dias de sua vida. Isso, na maioria das pessoas, a julgar pelos estudos modernos sobre a sexualidade. No entanto, há quem negue essa verdadeira hegemonia do sexo, em nossas vidas, em nome de uma suposta “espiritualidade”.
Vocês, meus queridos leitores, já notaram a importância que atribuo ao sexo, como ponto de partida de todas as minhas experiências relevantes. O desejo. Motivação e porto de chegada de tudo, e tema básico ou residual de todas as minhas narrativas e poemas. Não preciso, evidentemente, justificar-me, a essa altura da minha obra, tão natural e espontânea em mim. Entretanto, acabo de ouvir algo desagradável, da parte de uma senhora de idade, bastante culta, que, não por acaso, e surpreendentemente, leu alguns dos meus contos. Ela disse: “A Alma tem, o que, no meu tempo, chamávamos de “furor uterino”. Trata-se de uma ninfomaníaca”. Fiquei, a princípio, chocada com essa observação, sentindo-me, no mínimo injustiçada ou incompreendida. Mas, a seguir, olhando bem nos olhos da tal senhora, não vi maldade nela, ou censura. Mas, sim, um risinho maroto. Percebi, então, que o meu texto levanta, talvez, nas mulheres principalmente, sentimentos ambíguos, contraditórios, despertando-as para a sua própria sexualidade, para os seus próprios “segredos”, tão recalcados. .
Aqui, no meu ateliê paulistano, que nos últimos anos eu sinto como uma base, de onde a minha imaginação parte, na poesia, no conto e... nas minhas memórias amorosas, muito pouco do que narro vem da pura imaginação. Por incrível que pareça, sou uma cronista de mim mesma, do meu próprio cotidiano. Se a tônica dos meus textos é a narrativa amorosa e... erótica, é porque esse é o verdadeiro território da minha alma: a procura incessante do amor, e do prazer. Dito isso, passo a narrar a minha última aventura.
Espero a visita de uma senhora, que telefonou marcando hora para hoje, a partir das três. Ela se diz uma grande admiradora de meus poemas, e quer conhecer-me. É um fato inusitado, raro mesmo. Em geral sou procurada em meu ateliê por conta de minhas pinturas. Todavia, lembro-me agora do desastrado encontro do poeta Umberto, sonetista daquela malfadada “Confraria dos Poetas do Soneto Triste”, da qual contei a patética estória no conto homônimo, dos meus “Contos da Alma”, já publicado em livro.
A doutora Lídia foi tão simpática e reverente ao telefone, que aceitei recebê-la, embora um tanto receosa de me aborrecer, por conta de mal-entendidos. Será que essa senhora leu realmente a minha obra poética, tão confessional que me faz evitar palestras e reuniões sociais, onde posso ser confrontada pelos leitores com perguntas indiscretas no plano pessoal, quando feitas diretamente, pessoalmente? Sempre me refiro aos meus “fiéis leitores sem rosto”, que quero manter assim, anódinos, como sombras servidoras do meu ego, um tanto narcisista, reconheço. Essa maneira de me colocar, sem peias, de maneira total e desabrida, no papel, funciona como uma análise permanente, senão uma terapia. Repasso os meus amores, e meus prazeres, minhas delícias mesmo, que incluem detalhes escabrosos para alguns moralistas. Ali, confesso até mesmo a nota de masoquismo de minha personalidade sexual, que assim assumo e administro, para que não me tome completamente e... me destrua, como ocorreu, por exemplo com aquelas personagens do magnífico filme japonês “ O Império dos Sentidos”.
O interfone soou, Lídia afinal chegou, subiu, tocou a campainha, abri, e me encantou. Deixei de lado imediatamente o “doutora”, como vocês perceberam, diante da encantadora figura à minha porta. Uma moça madura, de quarenta e poucos anos, de rosto interessantíssimo, talvez não bonita, mas atraente e com expressão muito inteligente. Abriu os braços, emocionada, e me abraçou, como se fôssemos velhas amigas, que há muito não nos víssemos. Segurou-me muito tempo, apertada a si, a ponto de eu estranhar, ainda ali na soleira, sob a porta. Então peguei-a pela mão e introduzi-a na grande sala-ateliê enquanto reparava no seu olhar deslumbrado, brilhante de emoção. Seu seio arfava, comovida e grata por estar ali, e de ter-me abraçado, de estar com sua mão na minha. Por minha vez, comovi-me também e abracei-a mais uma vez. Depois fi-la sentar-se, e olhos nos olhos, ela me contou sua estória:
“Alma, você não imagina o que foi a descoberta de sua obra poética, em minha vida. Sou professora de literatura e vivi sempre para os estudos, cultuando os autores clássicos e dedicada à orientação do gosto dos meus alunos na Faculdade de Letras, da USP. Mas ao descobrir na Livraria da Vila, o seu Kit de poemas, aquela graciosa caixinha recheada de maravilhas, com aqueles desenhos lindos do Guilherme de Faria, do qual, por sinal, eu tenho em minha parede, há muitos anos, uma litografia, eu comecei a folhear ali mesmo os livrinhos, e percebi estar diante de uma poetisa lírica de grande estro, e que evita metáforas e imagens artificiais, usando uma linguagem quase coloquial, embora culta, que me encantou. Lembrei-me do estilo de Withman, embora o seu universo seja diferente do dele. Você é talvez mais romântica, e ao mesmo tempo, erótica, o que me parece uma conjunção rara. Mas o timbre de sua expressão poética bateu-me na alma, como se fosse eu mesma, que dissesse aquelas coisas. Decidi imediatamente, ali mesmo, que devia conhecê-la, e me tornar sua amiga e divulgadora, já que você está sendo publicada de uma forma artesanal, encantadora, mas muito rarefeita em termos de público, me parece.”
Ela falou tudo isso muito depressa, devido à sua excitação, segurando a minha mão nas suas e devorando-me com seus grandes olhos cor de mel. Percebi que seu olhar ia dos meus olhos... para os meus lábios. De repente ela parou, arfando, e disse:
—Ah! meu Deus! Ainda por cima, você uma mulher linda! Eu não esperava isso, confesso. Pensava em você de uma maneira, digamos, mais abstrata. Como a poetisa maior, que eu descobrira, por acaso. Coisa raríssima, pois não entendo por quê não saiu ainda nenhum artigo sobre a sua literatura. Mas chega de falar disso, não é? É você que eu preciso ouvir, você, mulher linda e que tem tanto a dizer! Perdoe-me, estou impressionada, não consigo parar de olhá-la. Você...é um bálsamo para os olhos! ( ela não se conteve e tocou a palma de sua mão no meu rosto, num carinho que me surpreendeu).
Eu estava comovida, e lisonjeada. Jamais recebera elogios que fundiam ao mesmo tempo minha figura e minha poesia, e com essa autoridade, de uma professora da USP. Eu estava tão encantada quanto ela. De repente senti o perigo... em mim mesma! Devia eu aproveitar-me, acabar de seduzi-la, fisicamente? Mas o “fisicamente” não é sempre uma extensão do espírito, e por isso uma decorrência natural do processo de sedução mútua, que é o que sempre acontece no encontro amoroso? Vejam, meus leitores, eu já estava pensando em termos dessa palavra! Sou realmente incorrigível! Mas como não pensar nisso, se um encontro assim tão raro, de almas, impõem-se, e estende-se naturalmente aos corpos? Tudo o mais: reservas, prudência, soavam falsos, a partir do seu toque em meu rosto e de suas palavras.
Então aproximei meus lábios, lentamente, dos seus, e beijei-os profundamente. Dei-me conta, ao mesmo tempo, no meio de nossa profunda comoção, que eu não abrira a boca, desde a sua chegada. Eu não dissera uma palavra sequer. Tudo já tinha sido dito antes, nos meus poemas, e ela percebera.

Ela fora seduzida, e eu... consagrada como poeta!


15/06/2006

Tudo o que faremos quando tu voltares

(dos Contos Pampianos de Alma Welt)


Estás a caminho, Aline, eu já te vejo voltando. Recebeste minha carta, e respondeste com um lacônico bilhete, mas tão sugestivo, que foi o suficiente: meu coração se iluminou. Estarei sonhando? Interpretei tuas poucas palavras pela ótica da minha apaixonada esperança? Não creio. Eu sinto teus passos na estrada, na longa estrada que nos separou. E meu coração segue o compasso dessa tua caminhada em direção aos meus braços, à minha alegria recuperada.
Lembra, Aline, nossas noites infinitas, quando derramávamos lágrimas de embevecimento, e da pura alegria do nosso encontro nesta vida? Como apertávamo-nos em nossos braços esmagando nossos seios, aréola contra aréola. Como nossos púbis se colavam, nossos ventres, nossos lábios? Como trocávamos nossos fluidos, como irmãs-amantes? Como definir senão assim, nossa intensa simbiose, nossa paixão indescritível? E, no entanto, partiste... quase me matando, pelo tanto que eu me confundira, me perdera ou... me ganhara em ti. O êxtase, Aline, o êxtase, nos o conhecemos nesta vida. E isso é santidade, Aline, a verdadeira santidade! Nada faltou no nosso amor carnal: lançamos mão de tudo, sem reservas, e nos possuímos como mulher a mulher, homem a homem, homem à mulher e andrógino a andrógino, com ajuda de artefatos, imaginação e ardor, Aline. Paixão anímica e carnal!
Vem Aline, estou de braços abertos e assim ficarei como uma crucificada, em espera, e esperança, na soleira de minha porta, na varanda do casarão de minha estância, até chegares, e te colocares entre meus braços, endurecidos e... adormecidos, que se dobrarão, afinal, sobre ti. Já querem me internar, Aline, mas não se atrevem. Algo em mim, no meu olhar, talvez, faz crer que tenho razão, que estás a caminho. E os outros esperam a comprovação de um milagre anunciado, como aqueles que querem ver para crer. Ó, seres de pouca fé! Então não ouvem teus passos? Pensam que estou louca...
Quando voltares, te levarei nos meu braços, para que conheças meu florido jardim, meu pomar e minha macieira gravada a canivete AR, onde acrescentarei o teu A, transformando ar, em pedra sagrada. Ara dos Pampas, será o teu capítulo. Eu te levarei comigo com a maçã afinal colhida, ao meu rio, e ao meu bosque. E montarás na garupa do meu pampeiro, numa disparada infinita, pelas coxilhas, agarrada a mim por trás, que sentirei o teu corpo para sempre, mesmo apeadas, nuas, tu colada a mim, na frente, atrás. Eu não te deixarei mais! Tu não me deixarás, porque eu te farei tão feliz que não mais te arriscarás a perder-me! Eu te possuirei e me possuirás até o sangue, até formarmos o Hermafrodita sagrado, com nossos corpos e nossa mentes incendiadas. A salamandra regerá as noites das nossas fogueiras, em plena pradaria preparando o mate que compartilharemos, o amargo, que nos saberá doce e que nos esquentará sob um pala compartilhado na noite sagrada e fria do minuano.
Não poderão mais apartar-nos; não ousarão mais, embora estarrecidos!

Ah! Tudo o que faremos, Aline, quando tu voltares!

21/04/2006

O Guerreiro

(Dos Contos Secretos de Alma Welt)

Preparo-me para pintar, ou, como costumo dizer, para atacar uma nova tela. É um momento de grande tensão, e confesso que tenho a tendência a procrastinar, fazendo “cera” por muitos minutos, antes de criar a coragem da primeira pincelada. Afinal, num impulso um tanto vertiginoso, semelhante ao apertar do gatilho numa “roleta russa” (imagino), lanço a primeira mancha, como quem corta as amarras de um navio lançado à aventura. Zarpar!
Quando me volto para a mesa, para buscar mais tinta, o telefone toca. Não sei se isso me causa alívio ou irritação: a sensação é dúbia. Atendo, deparando-me com uma voz máscula, grave, e bonita, que após apresentar-se me faz elogios, ao mesmo tempo que me pede para ser recebido num dia próximo, ou de preferência hoje mesmo, num horário de aceitação comum a ambos. Prefiro assim, não suporto expectativas prolongadas, e se tenho que receber alguém, que venha logo!
A verdade é que o tal telefonema abalou-me o dia, perturbou-me, no meu propósito de pintar. Mas, afinal, insisto, e acabo por deslanchar depois de um período penoso que me despende o resto da manhã. O quadro lançado, ao parar para observá-lo, pareceu-me ressentir-se desses sentimentos dúbios, dessa dispersão. E da insinuante expectativa com que esse desconhecido me contaminou. Medito uns minutos, sobre essa minha instabilidade, essa fragilidade do meu psiquismo. Ou será do psiquismo humano, em geral? Suspendo afinal o trabalho e vou tomar uma ducha, preparar-me para receber o estranho. Dedico-me a uma longa toillete, com especiais cuidados à minha beleza. Porque faço isso? Esse estranho, o merece? Bem, não importa, não devo pensar assim. É uma questão de princípio. Que é isso Alma, não seja hipócrita! Perscruta teu coração! És uma vaidosa, e amas a corte que te fazem, não importando muito o cortesão. Tens uma vocação de princesa, senão de rainha. Além disso, aquela linda voz máscula continua ressoando em teus ouvidos...
Afinal, estou pronta, toca o interfone, atendo. Depois a sineta oriental de minha porta, e o forasteiro, está diante de mim, maravilhoso. Sim, nada menos que isso, alto belo, maduro, e com um olhar de rapinante, logo abrandado, num esforço de doçura, se posso dizer assim. É essa a impressão que tenho, pertinente ou não. Este homem é um predador, disso estou certa, mas numa espécie de armistício com a presa potencial, a fêmea que sou, tão vulnerável... essa é que é a verdade!
Armando, esse o seu nome, se diz um admirador entusiasmado das minhas obras, que vem acompanhando nas galerias, desde a minha primeira exposição. Sentado à minha frente, com uma postura que me parece especialmente elegante, faz um discretíssimo charme de olhar. “Este homem sabe até sentar-se”, penso, sorrindo, por dentro, do meu próprio pensamento. Devo estar traindo-me pelo olhar, espelho de minha alma cândida, desejosa, inocente. Sim sou inocente, não carrego a culpa do meu enorme desejo do ser humano, da beleza, e da força graciosa! Sou mulher, com um orgulho ancestral... imemorial, tenho em mim uma rainha, sim, tenho certeza. Este homem me terá, se quiser. Notem que eu não digo “se eu quiser”...Serei resposta, não questão. Meio reino é aquele da receptividade, do aconchego, do “repouso do guerreiro”. Abro meus braços para o predador, que precisa descansar, pois não veio com o apetite da batalha, mas cansado, enternecido, lavar-se de tanto sangue, tanta guerra.

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A bela cabeça de Armando, repousa em meu seio. Sua respiração silenciosa, plácida, titila com uma leve brisa a auréola rosada que ele tanto beijou. Meus bicos, assim bafejados, continuam ligeiramente tesos, e eu me enterneço por nós, pelas nossas belezas, tão complementares. Trago em mim ainda o seu sumo, e queria guardá-lo para sempre. Este homem é agora o meu amor, e quando acordar, vou chamá-lo, com orgulho : “meu senhor”. “Dormistes bem, monseigneur?” Como o faziam as cortezãs de França ou mesmo suas rainhas. Vou entregar-me uma vez mais a ele, pois que os guerreiros acordam sempre com a lança em riste (dou uma pequena gargalhada, que procuro abafar com a mão, para não perturbar seu sono). Afinal, com o braço adormecido, preciso mudar de posição, e meu movimento, por mais cuidadoso... o acorda.
Ele abre os olhos lentamente, estranhando tudo, olhando-me como se não estivesse por um momento atinando com o lugar, a pessoa... a mulher. Um ligeiro aperto em meu coração antes dele afinal sorrir... e beijar-me. Então, olha embaixo do lençol, confere (os homens tem um secreto medo, eu sei) e tendo encontrado sua lança, tesa, fará mais uma vez uso dela, como eu previa. Ele vira-se sobre mim e me engolfa.

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O guerreiro deixou-me após o nosso banho vaporoso, que cobriu com uma suave bruma todo o meu espaço, fazendo-o partir como um cavaleiro na neblina da manhã, após beijos e mais beijos, que deixaram meus lábios dormentes de memória.
E ponho-me a girar no ateliê, a cantarolar, em minha alegria, a canção que brota do meu coração tocado pelo predador...que respeitou o ninho de seu descanso. Que ofereceu-me sua suavidade, sua força em repouso, fazendo doce a sua lança. E brando, muito mais brando, o seu olhar!

O fazendeiro

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Chegamos à fazenda quase ao anoitecer, mas pude perceber a monumentalidade e os vestígios de um apego desmesurado à tradição, já naquela entrada ladeada de grandes palmeiras. Avistei também um imenso baobá, insólito, raríssimo. Parecendo o abantesma de uma árvore exótica, africana, ali plantada no século retrasado, remeteu minha memória à única referência dela em minha infância: a do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Éxupery. No entanto o tom geral era de decadência, e eu imediatamente pensei na noite que iríamos enfrentar, com seus possíveis fantasmas, naquele casarão que se pretendia hospitaleiro.

À entrada, no alto da dupla escadaria que fazia o acesso à porta principal do solar, no centro de uma extensa varanda que o circundava, estava o nosso hospedeiro, metido em grandes botas, e um chapéu de abas largas, meio caídas, na cabeça. Entretanto, à medida que subia os degraus em sua direção, meu coração acelerou-se, discreta mas perceptivelmente. Ele estendeu-me a mão enorme, como quem oferece apoio, ao aparar uma amazona ao descer do cavalo, por exemplo, e não como alguém que atinge um patamar, como era o meu caso, ali, no alto daquela escada, em que imediatamente, sob aquele olhar viril, vislumbrei minha perdição.

Estevão, nosso anfitrião, conduziu-me pela mão, de uma maneira galante e um tanto antiquada, saudando minha amiga apenas com um rápido erguer do chapelão. Felizmente Flávia tem bom temperamento e não pareceu ofender-se, disposta que estava desde o princípio a fazer o papel de dama de companhia, já que estamos mergulhando numa atmosfera um tanto arcaica, ou no mínimo demodée.

Adentramos o casarão, que me pareceu escuro, mas ao mesmo tempo iluminado com um farol apenas pelo olhar de Estevão, que brilhava de uma maneira intensa. Eu já estava sob a influência inebriante da paixão nascente, ao por os pés ali, naquela casa maldita. A excessiva virilidade daquele homem, me dominara, paralisando a minha razão. Eu me conhecia... e previa até certo ponto o que viria. Entretanto era preciso nada precipitar, e submeter-me à ordem natural, mais lenta, dos acontecimentos.

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Como eu previra, durante a ceia um tanto silenciosa e constrangedora, fui devorada pelo olhar de Estevão, atrapalhando-me com os copos e talheres, como uma menina, a ponto de engasgar-me com um gole de água, tendo o nosso anfitrião que levantar-se e bater-me às costas. Após o oferecimento de um cafezinho, que recusamos como arremate da ceia, para não perturbar o nosso sono já suficientemente em perigo, despedimo-nos de Estevão, que beijou-me a mão à antiga, mais uma vez tocando o chapelão para Flávia, já que este voltara à sua cabeça imediatamente após a ceia. Fomos conduzidas até o nosso quarto de hóspedes, escolhido por ele, e preparado de antemão. Perguntou à Flávia, com um certo propósito, se ela preferia um quarto só para ela. Flávia, esperta, recusou, percebendo a possível armadilha que nos poria a ambas em perigo, uma vez que é tão bela e desejável quanto eu. Mas ao deitarmos, comentou esse detalhe, afirmando que sua única preocupação naquele momento fora comigo. A dedicação de Flávia sempre me comove.
Esta guria se declara disposta a seguir-me até o fim do mundo, e me lisonjeia uma servidão voluntária assim, vinda de criatura tão bela. Para ser sincera, devo dizer que percebo o timbre apaixonado, do seu amor por mim, que, no entanto nada pede, senão prazer de servir-me e estar sempre ao meu lado. Tenho de tomar cuidado para não feri-la, a este ser delicado, esta alma de elite, com que meu destino excepcional me contemplou.

Logo após nossa breve conversa, exaustas, apagamos a luz, mas minha amiga, passados cinco minutos, para mim previsíveis, pediu para passar para o meu leito, pois que tinha medo... disse, imediatamente metendo-se sob minha coberta e abraçando-me por trás como sempre faz, enquanto enterneço-me e mais a aconchego junto a mim.

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De madrugada, com a sinfonia dos galos, ainda antes do sol aparecer, acordo, e retirando com cuidado o braço de Flávia do meu ventre, levanto cuidadosamente para não acordá-la, e pé-ante-pé, dirijo-me para a porta, abro-a, ela range, e eu penetro no corredor mais escuro ainda, e percorro alguns metros tentando alcançar a cozinha. Tenho sede. Ma de repente, enxergo uma fresta iluminada sob uma porta. Vou passar por ela. Lentamente... mas de súbito ela se abre e... sou agarrada, puxada para dentro com uma grande mão abafando meu grito. Sou arrastada para a grande cama de dossel, só pude reparar nisso, e já o tenho sobre mim com todo o seu peso. Ele abre-me o peignoir com violência, e agarra-me um seio, pequenino sob sua mão, antes que possa entrar em pânico, sinto-o penetrar-me, enorme, tão dolorosamente, que me cala, como quem vai rasgar-se ao meio! Estou sendo estuprada... Eu sabia, eu sabia, desde o primeiro momento, que isto ocorreria, ainda antes de chegar aqui, nesta fazenda, desde lá em São Paulo, naquele restaurante em que ouvi o seu convite! Eu sabia, eu sabia.. só que não esperava que seria assim tão doloroso! Este homem, de cujo rosto nem assimilei os traços, somente o cheiro, os fluidos invisíveis de sua masculinidade brutal! Não sei sequer se este homem é belo, se me mereceria em outras circunstâncias. Quem é ele? Quem é? Agora é tarde: o invasor já está dentro de mim, e derrama seu sumo dentro do meu ventre em chamas. Grito, afinal, grito alto e longamente, para acordar Flávia, para acordar o mundo. E acordo.

Flávia está sobre mim, apavorada, com sua mão apertando meu púbis. Ela quer defender-me... do mundo.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O Fauno


O Fauno- Desenho de Guilherme de Faria

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Resolvi recomeçar as minhas sessões de análise. Não porque esteja propriamente sofrendo, mas por perceber que as minhas fantasias estão me levando, cada vez mais a situações insólitas, e talvez a correr riscos. A verdade é que tenho sido estuprada com uma freqüência alarmante em minha vida. Por quê digo isso? Creio sinceramente que às vezes me submeto ao desejo de homens e mulheres que não amo, que na verdade não poderia amar, mas pelo simples fato de me desejarem ardentemente, e com paixão. Par délicatesse*...
Mas, então (vocês podem insistir), por quê falo em estupro?
É porque desperto, talvez, algo nos homens... e mulheres que cruzam a minha vida : uma espécie de exaltação do desejo, talvez um entusiasmo, que acaba por descambar para a obsessão, a exasperação, e finalmente a violência, nessa ordem. E o pior (ou melhor) é que fruo um imenso prazer na dor, e isso, acreditem, me confunde e... me deixa perplexa. Serei eu uma masoquista, e portanto vítima de uma patologia? Não sinto assim, propriamente, Creio que tenho em mim todas as dores, todas as necessidades de dor, e de prazer; tenho a convicção da universalidade de cada desejo, de cada fantasia que me assalta, tenho em mim todas as mulheres e... alguns homens. Por quê só alguns? Porque só os mais sensíveis, certamente, embora se possa dizer isso das mulheres, igualmente. Há mulheres que não são sensíveis. As mulheres vulgares, por exemplo. Entretanto devo reconhecer que a vulgaridade, como a entendo, pode ser, à vezes, a máscara defensiva de uma alma tímida.
Entretanto, recentemente tive a contrapartida de uma dor causada pelo inverso, pela isenção, pela delicadeza suprema, que marca a alma de uma outra maneira, indelével.
Dito isso, vou revelar, a vocês meus leitores, o que eu nunca contaria para um confessor, mesmo que eu tivesse um, ou confiasse num padre encerrado num confessionário, e com voto de sigilo. Mas advirto-os de que não estou aqui para diverti-los, como uma escritora, ou uma espécie de “enterteiner”. Não se trata disso. Antes, eu diria, de uma necessidade de usá-los, meus leitores, com sua permissão, para a terapia que pretendo iniciar. Em troca oferecerei, como sempre... beleza. Comecemos, pois:
Recebi, há dias, uma carta de um fã, que afirmava sentir uma afinidade extrema, total, com meus poemas e contos. Esse fã, entretanto dizia em sua carta que queria compartilhar comigo um segredo vital para ele, e que para isso precisava ser recebido por mim, para fazê-lo pessoalmente. Como a carta era extremamente bem escrita e delicada, eu, talvez precipitadamente, resolvi fazê-lo.
No dia e hora combinados pela pequena correspondência que entabulamos, o interfone soou, e anunciado pelo porteiro, meu visitante subiu, enquanto eu o esperava olhando pelo olho mágico, para ter a alternativa, extrema, de não abrir a porta se algo me desagradasse em sua figura. Para isso serve também a correntinha. Podia, por exemplo, pretextar uma gripe, e desculpar-me por não recebê-lo.
A porta de ferro do elevador, entretanto, ao abrir-se revelou a mais graciosa figura que se pode imaginar, um ser maravilhoso, de uma androginia evidente, cativante, com os olhos de um pequeno fauno, mas esguio, flexível, elegante. Abri a porta imediatamente, antes mesmo que tocasse a campainha.
Linus era o seu nome, que imediatamente me remeteu à arcádica invenção da flauta, na Era de Ouro. Recebi-o de braços abertos em meu coração. Na verdade, abracei-o mesmo, bem à entrada, sob o batente da minha porta. Bem vindo, ser de exceção, bem vindo pequeno fauno!
Os lindos olhos cor de mel do meu hóspede (imediatamente pensei em retê-lo como tal) começaram logo a marejar ao nos fitarmos, e mais nos abraçamos. Certamente minha figura também o surpreendeu e agradou. Sentimo-nos “almas gêmeas” desde o começo, e agora eu o reconhecia... por conferir a sua maravilhosa figura.
Linus quis contar-me a sua vida, mas teve dificuldade em expressar-se, pois o nosso olhar nos trazia a esse presente radioso, do nosso encontro. Não havia mais necessidade de narrativas, entre nós.
Sentindo isso, segurávamos nossas mãos, comovidos, em silêncio.



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Linus agora mora comigo, no meu ateliê. Poucas vezes na vida eu me senti tão segura e... tão à vontade com uma companhia masculina. Masculina? Bem... não é bem o caso. Este pequeno fauno, como gosto de chamá-lo, não é propriamente viril, e sua androginia é o que, na verdade me cativou. Um ser delicado, gracioso, na exata fronteira da estética e dos maneirismos dos dois sexos, produzindo um terceiro. Mas não exagerado e caricatural como estamos acostumados a ver por aí. Ele me comove, com a sua elegância sutil, com seus gestos suaves, que combinam com os meus. E, sobretudo com a sua doçura.
Botei-o para dormir na sala, isto é, no ateliê. Mas o cheiro de tinta me preocupa. Todas as noites, acordo de madrugada e venho observá-lo dormindo, acompanhando a sua respiração, suave, contemplando a sua beleza. Cubro-o quase maternalmente... às vezes descubro-o também, nas noites quentes deste verão, para observar seu corpo semi-nu, procurando descobrir o seu segredo. Sim, porque, por alguma razão, ele ainda não me deu essa intimidade, e estou cada vez mais intrigada. Ele é um companheiro maravilhoso para dividirmos o cotidiano, e estou feliz com a minha decisão. Mas, na verdade, há muito mais por trás do instinto que me fez aproximá-lo de mim, de recebê-lo em meu lar, portanto em minha intimidade. Trata-se de uma enorme atração, anímica e física ao mesmo tempo, que pertence a uma espécie de ancestralidade em minha alma, eu desconfio... Será tudo isso um eufemismo para a palavra amor? É bem possível, sim, eu creio que já amo o meu pequeno hóspede, e isso me faz sentir quase plena, feliz. Por quê digo quase? Porque falta algo, que não consegui realizar. Não consegui transpor uma pequena última barreira que ele interpõe entre nós, talvez deliberadamente. Ainda não o vi completamente nu, e à noite, quando o descubro, é isso, claro, o que estou procurando, tentando advinhá-lo sob a apertada cuequinha que ele não tira para dormir. Talvez ele se sinta inseguro...
Passei, já alguns dias, a desnudar-me, casualmente em sua frente, primeiro os seios, para trocar de blusa ou passar um desodorante, depois totalmente, para entrar no banho enquanto prosseguimos com nossas agradáveis conversas. Logo estava eu a andar nua pela casa toda e a pintar, assim , como sempre fiz, quando estou só. Ele parece encarar isso com uma enorme naturalidade, mas tem a maravilhosa delicadeza de ao mesmo tempo não disfarçar a sua admiração, manifestando-a com belos elogios ao meu corpo, à minha beleza.. Talvez um tanto técnicos, pois não percebi ainda a nota de desejo neles, que eu gostaria, no fundo, de encontrar. Linus se tornou um enigma para mim, e isso suscita minha curiosidade, de uma maneira perigosa, pois tende a se tornar uma obsessão.. Porque esse fauninho não se despe igualmente em minha frente, nem para entrar no banho, fazendo-o somente quando já está no box, fechado. E para dormir, então? Costuma ficar longamente sentado ao meu lado na minha cama, freqüentemente estirando-se, nas nossas conversas deliciosas, e então, sonolentos, ele me beija a testa, ou a face, cobre-me maternalmente, desejando-me bons sonhos, e retira-se para o ateliê para deitar-se. Fico então muito tempo insone, imaginando-o despir-se, e planejando a qualquer momento surpreendê-lo com um pretexto qualquer. Mas... se já sei que ele não se despe! Que devo fazer?
Essa curiosidade, unida, é claro, a uma certa frustração, já está produzindo uma pequena dor, fininha , que tende a crescer.

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Sim, deve tratar-se de um jogo. Linus conseguiu, estou apaixonada pelo meu pequeno fauno, e isso, longe de facilitar as coisas, deixou-me mais inibida para uma abordagem explícita. Nossa linda amizade, que, acredito, realmente existe, coloca mais uma barreira à mudança de timbre que pretendo em nossas relações. Por quê será que o fauninho não me deseja, a mim, ninfa que também me sei deliciosa? (perdoem-me a imodéstia).
Estou ficando exasperada, espero não cair na falta de sutileza da irritabilidade, do ciúme, do despeito, tipicamente femininos. Jurei a mim mesma que jamais cobrarei nada dele, que não o pressionarei, que não me atirarei sobre ele. Mas, ah! Isto está difícil. Esta noite, mais uma vez levantei-me e fui descobri-lo, na esperança de surpreendê-lo finalmente nu. Em vão. Julguei vislumbrar em seus lábios, num relance, sob o feixe de luz da minha pequena lanterna, um suave sorriso de Gioconda, um tanto feminino. Mas não estou certa. Meu desejo já está me pregando peças.
Planejo, então, uma maneira de ver o meu pequeno hóspede nuzinho. Ponho todas as suas cuecas para lavar na máquina, alegando que elas estavam encardidas (confesso que as cheirei, e...), que gosto de zelar pelas nossas roupas e programar as lavagens, etc. Ele fica confuso, um pouco perturbado, tanto mais que dou a ele para dormir esta noite um pijama meu, largo, feminino, muito fácil de despir com seus botõezinhos dos lados. E para a manhã, uma calcinha minha, provisória. Ele parece inseguro, desconfiado, mas não tenho certeza. Esta noite eu o pego.

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Sonhando com a incursão noturna que planejo, esperei por ele, na sua volta do trabalho, que, na verdade, nem sei no que consiste. O que ele faz? No que trabalha, ele, o pequeno fauno? Por incrível que pareça, nunca até agora ocorreu-me estas perguntas. Realmente não devo ser uma guria normal. Bem... nunca quis ser.
Linus chegou, surpreendentemente triste. Atirou sua mochila num canto e abraçou-me com lágrimas nos olhos:
—Alma, minha amiga. Minha doce e querida amiga, devo partir. Amanhã cedo devo ir embora, talvez por muito tempo. Não sei quando a verei novamente. Minha família deu-me um ultimato (ele jamais me falara antes de sua família) e preciso enfrentá-los, para me livrar deles. Eles descobriram onde estou morando, e se eu permanecer aqui, vão incomodá-la, Alma. E isso, eu não poderia suportar, minha amiga. Uma intrusão assim... Quero que você se lembre sempre de mim com agrado, pela nossa linda convivência nestes dias inesquecíveis, os mais felizes da minha vida.
Fiquei desesperada. Soltei um gemido, quase um grito. Agarrei sua linda cabeça, olhando bem dentro dos seus olhos amendoados, e exclamei:
—Linus, não me deixa! Eu te amo, não vês? Eu te amo desde a primeira mensagem, desde o primeiro encontro! Eu não posso mais viver sem ti, meu querido, meu amor! (beijei-o sofregamente na boca, pela primeira vez)—. Quero-te, não percebes? Fica comigo... para sempre!
Surpreso, perturbado, Linus recuou com a mão estendida, como se para evitar que eu o tocasse ainda mais, como se lhe doesse, e disse:
—Alma, Alma, não me peça isso, estou sofrendo demais, você não sabe de nada! Eu... também a amo, eu a adoro. Mas Alma... não podemos, não posso explicar. Não posso explicar!
Linus fez um movimento como se quisesse voltar-se para a porta, fugir. Agarrei-o segurando-o firmemente pela camisa. Gritei-lhe:
—Tu não podes, estás entendendo, é entrar assim na minha vida e deixar-me agora, que estou... a teus pés! (escorreguei pelo seu peito, ajoelhando-me, dramaticamente. Aqui não cabia mais vergonha alguma, eu já lhe dera quase tudo, a visão cotidiana da minha nudez, o meu carinho, o meu desejo insatisfeito... o meu amor. Eu não aceitava perdê-lo!) —Linus fomos tão felizes, apesar de nunca... de não nos tocarmos, meu pequeno fauno! Por quê? Por quê, eu não entendo!
Linus, então, os olhos cheios d’água, levantou-me pelos ombros, pegou-me a mão e puxou-me lenta e solenemente, conduzindo-me ao meu quarto. Colocou-se diante da minha cama, e de pé, pôs-se a despir-se diante de mim, pela primeira vez. Eu o olhava deslumbrada. Ele tirou a camisa, depois a calça, atirando-a para o lado, e afinal, enquanto eu o olhava, fascinada, abaixou a calcinha que eu lhe dera, em substituição. E então... eu vi!
Eu estava diante do Hermafrodita perfeito. Afinal!

O Walhalla de meu pai (crônica de Alma Welt )

 Meu pai tocava maravilhosamente Beethoven, entre outros grandes mestres. Ele dizia que Beethoven era o maior de todos, também pela sua qualidade pianística, e me fazia ver que o piano do Mestre não era percussivo, não martelava, mas trinava como o canto de um pássaro, e isso seria a sua característica mais marcante. Exigia, dizia ele, grande agilidade dos dedos, para “trinar” assim ou “gorjear”, principalmente nas notas altas. O Vati me mostrava , tocando inteiras, a maravilha das sonatas Aurora e Apassionata, que ele me fazia ouvir e ver, como música descritiva mesmo, que eram, e como romântico assumido. Na primeira eu via o sol nascendo no meu pampa e a simples contemplação de sua luz na pradaria em tal glória e magnificência, me fazia chorar de alegria de estar viva e de compreender a beleza do mundo, de maneira consciente, graças ao meu pai, o cirurgião pianista que descobrira a validade de dedicar-se ao piano e à sua filha amada, que era eu, sem sentimento de dever perdido, ou de culpa por não mais exercer a também sagrada missão da medicina. Eu, hoje, olho o piano de meu pai, o Steinway, na biblioteca, silencioso quase sempre, somente dedilhado ocasionalmente por mim, e por Rôdo, mas sem o virtuosismo e esplendor do toque de meu pai, o último grande romântico alemão por estas plagas, e que agora deve estar ao lado de Beethoven., este com sua audição recuperada, discutindo gorjeios de pássaros e pianos. E também de Goethe, os três em animada palestra, na eternidade de seu *Walhalla artístico, que meu pai projetou sempre em sua bela vida, contemplativa, aprazível, sem culpa... __________________________________________ 

 Nota 

 *Walhala – Grande salão, ao ou sala do trono do deus Odin, da antiga mitologia germânica e dos Vikings escandinavos, em que os guerreiros renascidos como tal na eternidade, por prêmio de bravura, reuniam-se para planejar ou comemorar com as Walkírias ( formosas deusas guerreiras) em grandes orgias, as vitórias nas infinitas batalhas da imortalidade gloriosa. Alma imagina um Walhala dos grandes artistas, verdadeiros heróis da Arte, que ali se reuniriam para palestrar em alegre e eterno convívio. (Lucia Welt)

A guria do lago

(crônica de Alma Welt )

Durante o verão eu costumo ir nadar muitas vezes no poço da cascata de nossa estância, local encantado junto com o bosque, o jardim e a pradaria, enfim, todo o cenário da minha infância, que inclui o casarão, naturalmente, e que eu chamo de meu Pampa.
E tenho o hábito desde guriazinha, na verdade, de despir-me completamente, de banhar-me nua nessas águas límpidas, cristalinas e calmas, que somente se agitam no sopé da cascata, local todo ele cercado de pedras de todos os tamanhos, e de samambaias, líquens, e plantas belíssimas. Ali os pássaros se banham, e as borboletas adejam, juntando-se no solo de uma praínha, cuja areia dourada deve possuir alguma substancia salina que as atrai. Foi ali que ocorreu fatos que tiro de um lugar especial do coração, já que não posso confiar na memória infiltrada de sonho.
Banhando-me sempre nua, nunca pude conceber outra maneira de mergulhar nessas águas translúcidas, que me fizeram ver sua magia, malgrado um certo acidente que contornei, apesar de tudo, para não considerar-me uma vítima. Não falarei mais daquilo.

Uma linda manhã, dirigi-me para o poço, fruindo todas as impressões desde o levantar da cama, o lindo caminho, e a chegada no maravilhoso local, joia desta estância, desta região. Logo após mergulhar nas águas frescas, deliciosas, cheias de uma energia telúrica (que me mantêm com o aspecto dos meus vinte anos pelo menos), ao emergir resfolegando dei de cara com uma linda figura sentada sobre a pedra grande, arredondada, em que costumo deitar-me para secar, de olhos fechados, para ouvir os sons todos, em delicada sintonia.

Tratava-se de uma guria que eu nunca vira antes. Nua também, como eu, mas morena, luzidia, de longos cabelos negros escorridos, de maravilhosa beleza. Como eu nunca a tinha visto antes, por ali, ou em qualquer outro lugar?

Aproximei-me fascinada, enquanto ela sorria para mim, esperando-me. Erguemos nossos braços lenta e simultaneamente e tocamo-nos no rosto e no seio. Sempre sorrindo, uma para outra. Eu tinha a impressão de estar vendo meu reflexo, em outra luz, em outro tom, não sei, um sensação misteriosa, que me assustaria se não fosse acompanhada pelo tato real, sentido em meus dedos em minha palma, da tepidez daquele belíssimo corpo de ninfeta morena. Não me ocorreu perguntar-lhe nada, nem sequer um previsível “quem és?”
A guria mergulhou e nadou comigo toda a manhã, me pareceu, rindo, com gargalhadinhas cristalinas, borrifando água uma na outra, num indizível prazer lúdico e um tanto sensual, cheio de toques furtivos ou casuais, e... arrepios. Não me recordo de nada mais encantador e prazeroso na minha vida do que aquela manhã pueril, inocente e erótica a um tempo.
Então subitamente ela perturbou-se, ficou séria, parecendo auscultar algo mais dentro de si do que fora, deu-me as costas saindo da água, pisando a areia da prainha e penetrando na mata sem olhar para trás , nua como estava. Eu fiquei espantada, estranhando aquilo, principalmente por não vê-la vestir-se, mas logo imaginando que ela estivesse acampada no bosque, nalguma clareira, onde alguém a esperava, que sei eu? Logo me veio uma sensação esquisita, e fiquei triste e um pouco frustrada, por não ter trocado uma palavra sequer com a guria, não ter ouvido sua voz, e sabido seu nome. Quem era ela?

Não mais a encontrei, por mais que voltasse ao poço da cascata todos os dias. Começou a me bater uma espécie de nostalgia, de saudade, uma sensação de irrealidade frustrante. Comecei a duvidar do acontecido e a cogitar que pudesse ter sido apenas um sonho matinal encantador, fruto da minha necessidade de ter uma irmã de minha idade, com quem pudesse me identificar, já que Rôdo, meu irmão e companheiro era o oposto complementar, o bichinho macho que me atraía e fascinava como uma amostra atenuada do brutal universo masculino que me rodeava, apesar das minhas duas irmãs, mais velhas.
Um dia fui convidada por meu pai a acompanhá-lo na visita a um vizinho estancieiro que eu não conhecia e de quem somente ouvira falar como um homem que meu pai apreciava e de cuja mulher tratara e até fizera o parto, no tempo em que ainda exercia a medicina.
Acompanhei-o por natural curiosidade e também porque não perdia oportunidade de estar com meu pai, e aprender a vida com ele, conhecer outras pessoas... reais.

No casarão da estância do nosso vizinho, que me pareceu mais velho e mais decadente ainda do que o nosso, eu olhava para todos os lados, curiosa, e esperando na verdade encontrar algo que eu não sabia o quê, talvez uns piás, ou uma guria, os filhos e netos do estancieiro. Afinal, enquanto meu pai tomava um chimarrão da hospitalidade com o seu compadre de imensos bigodes, eu notei um porta-retratos em cima da lareira e fui estranhamente atraída para ele, levantei-me do sofá, fui até ele e peguei-o nas mãos. Era ela! A guria do lago! Ela ali estava, linda, igual eu a vira, mas vestida de chinoca para um baile, e radiante, com tranças com fitas dos dois lados da cabeça. Quase deixei cair o retrato, emocionada, e sem refletir interrompi os adultos perguntando: Quem é ela? Senhor, onde está ela! Quero vê-la, ela está aqui? Eu apontava o retrato e virava-o para o meu hospedeiro, como se fosse preciso...
Meu pai franziu o cenho, sério, e olhou o seu compadre que tomou-me o retrato das mãos, olhando-o tristemente, acariciando-o e dizendo:
Esta é Larinha, que tu fizeste o parto, trinta anos atrás, mais ou menos, não é Werner? A querida Lara, que falta nos faz... aquilo matou a minha mulher. E quase a mim também. Mas não falemos mais nisso. Vocês almoçam conosco?

FIM