quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Uma recordação de infância da Alma (crônica de Alma Welt)

Quando guria, na estância, eu sentia a plenitude de estar entre as flores, no jardim de minha mãe, sob o sol, e entre os zumbidos das abelhas e o vôo terno das borboletas. E percebia que ela, Ana Morgado, me preferia ali, como menina bela e doce, do que entre os livros, em que parecia escamotear-me aos seus olhos, refugiando-me num mundo que ela não sentia acessível a si mesma, na biblioteca que era o reino de meu pai. Ela estava certa: eu viajava longe em mundos insuspeitados, em todas as eras, todos os séculos, inúmeros reinos e povos. Mas sobretudo no perigoso e suspeito mundo dos artistas.

Minha mãe tinha razão, nada mais “subversivo” que uma boa biografia de um grande artista. Uma das primeiras que me encantaram foi a de Michelangelo, de autoria de Romain Rolland que, fora o prefácio, começava assim: “Era um burguês florentino...” Que sonho, real, profundo, universal, penetrar naquela Renascença, entre todos aqueles gênios concentrados na bela Itália, num dos períodos mais fecundos da história, comparado à própria matriz grega clássica de sua inspiração! Depois vieram centenas dessas biografias, como a de Byron (Don Juan ou a vida de Lord Byron) de André Maurois, só para citar outra de minha preferência. Mas o meu maior deslumbramento foi com “O Romance de Leonardo da Vinci”, de Dimitri Merejkowski, maravilhoso autor russo quase esquecido hoje em dia. Ali eu conheci e me apaixonei pelo grande Artista, um dos maiores da história, em todos os tempos. Devo dizer, que por causa da visão de Leonardo proposta por aquele livro, eu evitei até agora ler esse tão citado “O Código Da Vinci”, com receio de arruinar o meu olhar sobre o mestre.

Mas como eu dizia, minha mãe suspeitava das minhas leituras, pois elas me afastavam do seu mundo restrito, padronizado, comezinho, alheia até mesmo à sua própria beleza intrínseca, que, como poeta, ao descobri-la me livrei de todo o ressentimento. Por isso, num dia muito especial em minha vida, eu me lembro de ter ficado muitos minutos, observando, sob uma luz propícia o seu lindo perfil, debruçada sobre um bordado, que de repente me pareceu belo, para além do mimoso e convencional que realmente era.

Pobre Mutti! Ela nunca soube de seu próprio mistério e poesia...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

O Rosto de Musidora (de Alma Welt)




O Rosto de Musidora
(dos Contos Secretos, de Alma Welt)


Depois de muito tempo, tomada de uma súbita nostalgia subo ao sótão do nosso casarão, à procura de não sei o quê. Ao entrar no aconchegante aposento sob o forro inclinado de belo madeiramento lanço os olhos primeiramente ao pequeno catre que foi o leito de Rôdo em sua infância e parte de sua adolescência, e onde eu costumava tantas vezes me deitar ao seu lado até o dia em que Solange nos flagrou juntos e tudo mudou. Mas não é isso que procuro agora. Dirijo-me à grande arca que meu pai colocou ali com as lembranças de sua vida privada que ele não quis deixar expostas na biblioteca com aquelas outras que ele podia compartilhar com todos.
Abro a pesada tampa de espessa madeira antiga do tempo dos escravos, e começo a retirar álbuns, fotos soltas, cadernos de anotações e... velhos postais. Um em especial chamou-me a atenção: mostrava uma diva do cinema mudo chamada Musidora, um rosto típico dos anos vinte, portanto uma beleza antiga, datada, com aquela boquinha pintada em forma de coração, e por cima do colo uma dedicatória em inglês a alguém desconhecido, com o seu autógrafo reproduzido e a data, 1921. Virei o postal e encontrei as seguintes palavras que me surpreenderam: “A ti, Werner, o retrato da minha famosa sósia dos tempos idos, que descobri aqui no Marché-aux-pouces. Também achas-me parecida com ela? O comerciante presenteou-me o retrato, pela semelhança... Ah! Que saudade deste mesmo mercado de pulgas! Maria. Paris 1959”.
Fiquei um tanto perturbada e... comovida. “Deste mesmo mercado”? O Vati tivera uma amante como eu sempre suspeitara! Isso explicava muita coisa embora aquele rosto não sendo propriamente o dela funcionava como uma falsificação, um último véu sobre o enigma da paixão romântica de meu pai que eu suspeitava existir e ansiava há muito tempo desvelar.
Comecei a me lembrar de como eu pressentia uma presença oculta dentro de meu pai, adorada por ele, e como esse pensamento me surgiu pela primeira vez durante um de seus inúmeros concertos para mim, assim eu pensava, só para mim. Ao piano ele se transfigurava tocando como um virtuose que ele era, mas tão comovidamente, eu percebi, ao descobrir uma certa lágrima, um dia, enquanto ele tocava. Depois, a falta de afinidades, evidente entre ele e a Mutti, e a apatia visível de minha mãe diante de um homem que nascera, a meu ver, para ser adorado!
Para mim tudo ficou claro naquele instante mas eu me pus a procurar mais evidências, outras fotos, à procura do verdadeiro rosto daquela que meu pai amara e que camuflara tão bem a sua presença que aparentemente só sobrara aquele pequeno rastro dúbio. Realmente não encontrei mais nada, a não ser uma profusão de postais que não pertenciam àquele quebra-cabeças. Como conseguiram eles despistar tanto uma família inteira? Que imenso segredo eles carregaram no coração? Por um momento, eu, filha de meu pai, me senti também traída. Ele nunca se abrira comigo a respeito daquilo, do seu amor, talvez do grande amor da sua vida! Ele me excluíra, então, de seu mais profundo segredo. Comecei a odiar aquele rosto de mulher, ainda que na sua falsa versão.
Passei uns dias perturbada, talvez órfã como nunca. Recomecei a sentir imensa falta de meu irmão, meu confidente, meu cúmplice, meu amado irmão. Que falta ele me fazia, como sou só e vulnerável (eu pensava) sem ele! Como posso ser agora “a chefe”, a líder dessa família, se sou uma fraca mulher, apenas uma filha sem pai, uma irmã sem irmão? Ah! Rôdo, por que és assim tão independente, até de mim? Porque passas tanto tempo longe de casa, o que procuras no mundo que já não tiveste aqui ao meu lado, nos meus braços, nos meus olhos? Sinto-me traída, duplamente traída e... abandonada!
Alguns dias depois resolvi voltar ao sótão para procurar melhor naquela arca alguma pista, alguma coisa que acalmasse meu coração. Não era possível que o verdadeiro rosto da musa de meu pai não se encontrasse perdido naquela montanha de fotos e postais. Eu precisaria, talvez, ter a paciência de ler as cartas do Vati dirigidas à minha mãe com sua quase ilegível letra de médico? Ou, melhor, encontrar talvez alguma carta de mulher, um rosto verdadeiro que escapara do provável despiste de meu pai, como afinal aquele retrato que queria ser uma máscara, aquele postal fanado, aquele camuflado rosto.
E encontrei!
Uma foto de família, uma típica foto, da família de minha mãe com inúmeras pessoas, homens, mulheres, adolescentes e crianças. Rostos para mim desconhecidos mas tão sugestivos que um bom observador desvendaria o provável destino de cada um.
Reconheci afinal minha mãe, um rosto melancólico como sempre. E então, estremeci! Ao seu lado, de mãos dadas com ela, uma adolescente.... o rosto de Musidora!

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01/09/2005

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O Violino de Magritte (de Alma Welt)


"Un peu de l'âme des bandits"- pintura de René Magritte


Meu irmão Rôdo trouxe um amigo para o fim de semana na estância. Trata-se de um rapaz interessante, não sei se bonito, mas extremamente viril e seguro de si. Percebe-se isso por sua naturalidade e absoluta falta de interesse de provar o que quer que seja. Sua capacidade de conversar sem nunca falar de si mesmo ou revelar qualquer coisa sobre sua vida ou suas origens é invejável embora ao mesmo tempo seja um pouco misteriosa, não sei se de maneira positiva. Esse rapaz, no entanto, não parece dissimulador no seu mistério, e isso é o suficiente para me deixar intrigada e mesmo fascinada.
Comecei então a testar o rapaz de maneira sutil com pequenas distrações sensuais, como um botão da blusa esquecido de abotoar; uma saia fina sem calcinha por baixo, um vestido de tecido muito fino em cima da pele, etc. Mas sobretudo um ar vago e sonhador e gestos lentos e muito harmônicos. Nada, o rapaz continua como um hóspede modelo, educado, e interessado apenas nas coisas da estância contadas pelo meu irmão e por Galdério, nosso empregado e charreteiro, embora também pelas minhas observações sobre poesia e literatura em geral, que ele ouve com muita atenção mas sem maiores comentários. Não estou agüentando mais. Esse rapaz deve estar fazendo um tipo de jogo. Então resolvo jogar duro.
Já que estamos no verão e as noites estão muito quentes e claras, saio do meu quarto, tarde da noite, totalmente nua sob o belo luar. Sei que estou deslumbrante sob esta lua que tudo prateia. Saio pela varanda e caminho pelo gramado em direção à piscina. Mergulho fruindo a frescura deliciosa da água, dando braçadas que sei competentes e até elegantes, tudo isso para um possível olhar oculto, o do nosso hóspede enigmático.
No dia seguinte sento-me à mesa do café da manhã exibindo a mais completa naturalidade de quem dormiu a noite inteira sem nenhuma travessura, sem a sombra de um possível pecadilho, sem o rastro da provocação, dando o bom dia convencional ao hóspede e sentando-me à sua frente na mesa para sondar disfarçadamente o seu olhar. Ele terá observado a minha performance ontem à noite?
Rolando (eis o nome que escolhi para o rapaz) continua o seu jogo, seu enigma: não consegui chegar a uma conclusão a respeito, por exemplo, de ele ter ou não me visto sair nua ao luar, de ter-me visto nadar na piscina apesar do rumor das braçadas na água rompendo o silêncio reinante da nossa noite de grilos e sapos já quase despercebidos, pelo hábito.
Nas noites seguintes repito com variações a cena da nudez por acreditá-la, por experiência, irresistível. Mas sem nenhum resultado. Rolando não denuncia o menor vestígio de minha sedução, cuja natureza agora me parece um tanto óbvia, reconheço, e me envergonharia se não fosse o meu senso de humor que ainda me faz rir de mim mesma. Resolvo ser mais direta e inquirir o rapaz sobre a sua vida e experiências, pois começo a suspeitar de suas preferências no terreno do “amor”. Estou, digamos assim, quase desesperada.
Antes que possa fazer isso sou abordada por Rôdo, uma manhã, que tomando-me pela mão me conduz a um canto reservado do nosso jardim, como um passeio carinhoso de irmãos, e ali chegando me diz com seus magníficos olhos azuis pousados sobre os meus:
— Alma, irmãzinha, desista. Tenho acompanhado teus vôos noturnos, de feiticeira, ou melhor dizendo, de náiade ao luar. Confesso que eles são deslumbrantes e chego a invejar o homem a quem são dirigidos. Mas, Alma , minha bela irmã, desista. Rolando é um jogador de poquer como eu, e o melhor blefador que jamais conheci. Perto dele sou um amador. Vou revelar-te agora o significado de tudo isso pois a honestidade não é o forte entre nós jogadores, como você sabe. Pouco antes de virmos para cá eu falei a Rolando muito de você, minha irmã, como a maior sedutora natural que eu jamais conheci, em oposição àquelas pérfidas e destruidoras que você mesma me ensinou que se chamam “Lilithianas”, as filhas de Lílith, fatais, sobre as quais tu mesma tanto me quer prevenir nesta vida que eu levo de inúmeros leitos e paixões, que no meu caso são uma extensão de minha alma de jogador. Tu suspeitas que sou viciado no jogo, e portanto de natureza frágil, no final das contas, daí a tua preocupação. Mas posso te garantir, que Rolando vem me surpreendendo com a sua capacidade de dissimular, e jogar os jogos do amor. Sim ele está apaixonado por ti, mas sua alma de jogador é tão forte que ele dissimulará até a morte, ou pelo menos até o fim do prazo que combinamos. Nada do que você fizer poderá fazê-lo render-se até lá. Sim, minha querida, pois está em jogo uma soma muito alta, da nossa aposta, e mais do que isso: seu orgulho de jogador.
Surpresa e indignada quase esbofeteei meu irmão que no entanto abracei apertado, com o coração confuso. Eu estava desnorteada. Eu afinal fora o motivo mas não o prêmio da aposta! Sentia-me vagamente humilhada. O dinheiro e orgulho de apostador falara mais alto para aquele jovem fascinante do que a minha beleza e a minha pretensa força de sedução. Mas, como sedutora, não sou também uma jogadora, afinal? Eles iam se haver comigo. Eu faria Rôdo ganhar a aposta e ficaria tudo em família. Ou melhor, talvez por honra do jogo eu deveria cobrar uma comissão do prêmio final, em dinheiro, de meu irmão. Senti-me naquele momento como parte de uma quadrilha, e poeta que sou lembrei-me do quadro de Magritte que representa um violino de pé, na vertical, pousado sobre um colarinho postiço engomado, sobre uma mesa, e denominado: “Un peu de l’âme des bandits”( “um pouco da alma dos bandidos”) imagem com a qual me identificava naquele momento, naquela situação após a insólita revelação de jogo e mentiras tão perigosas.
Naquela noite eu anunciei que receberia minha Aline, e o fiz com uma alegria exuberante, cheia de candura ( “o poeta é um fingidor...”) e pela primeira vez vi a surpresa e a curiosidade intrigada no olhar de Rolando que movimentou-se rapidamente até o de Rôdo e voltou numa fração de segundo, eu percebi. Ele mordera a isca!
Nos dias seguintes, tomei um ar mais sonhador do que nunca, o que não foi difícil, pois bastava-me realmente pensar em Aline e antecipar uma possível chegada dela, o verdadeiro amor da minha vida. Rolando começou a ficar inquieto: as fontes profundas, ancestrais de onde emana o instinto predador masculino, ou mesmo o simples machismo, estavam ativadas e ele logo se denunciaria. Voltei a andar nua agora pelo jardim como uma Ofélia nua ao luar. Até que ele veio encontrar-me perto do caramanchão, lugar perigoso pois não visível de dentro da casa. Estaria eu caindo na minha própria armadilha? Ali diante dele, nua na noite clara, tive um estremecimento de frio ou de pudor, e quis fugir, mas era tarde demais e ele pegou-me pelo pulso com delicada firmeza e puxou-me para si, dizendo:
-O jogo acabou, Alma, vocês ganharam! Não agüento mais, quero a ti mais que ao dinheiro, ou o amor do jogo. Quero perder, faço questão de perder, diga isso ao Rôdo. Agora, Alma, dá-me o prêmio da minha derrota!
Diante de suas palavras, eu, vitoriosa e comovida, fui abraçando esse homem totalmente vestido por fora... pousando suavemente sobre ele como o violino de Magritte, o violino ereto e orgulhoso que era a alma dos bandidos...

25/04/2006

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Três fragmentos do romance O Retorno dos Menestréis, de Alma Welt


Alma e Josué voando no Pavão Misterioso (Xilogravura de autoria de Guilherme de Faria)

Segunda parte do romance O Retorno dos Menestréis, de Alma Welt

A CASA DE LUDGER


Capítulo primeiro
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Ludugero persiste

Despedimo-nos de Rafisa, emocionadamente. Eu a abracei como irmã e amante, e também como sua discípula dileta. O quanto eu apreendera com esta cigana, com esta maga predestinada, vocês, meus leitores, não poderão saber a não ser em parte. Rafisa não desprendeu seus olhos dos meus, nesta despedida, o fulgor e a insistência do olhar impressionante desta Anti-Medusa benévola aquecia o meu coração, e eu levaria este olhar comigo para sempre e o veria nas lindas noites do sertão estrelado, com também nas do meu Pampa, se me fosse dado um dia voltar às verdes pradarias do Sul.
O “Alma do Sertão” nosso Pavão motorizado, silencioso, subiu na vertical, pairando pela última vez sobre o carroção que fora como um lar para mim, por dezesseis dias, e sobre cujas inusitadas tapeçarias do Oriente eu rolara, abraçada a um corpo tão belo como o meu, mas moreno como sombra acolhedora no deserto, como oásis naquele sertão solar, embora estivéssemos no meio de um agradável bosque. Mas refiro-me à toda aquela viagem da minha alma pela essência seca do chão duro daquele nordeste, que não queria ser considerado um desterro desta Alma, mas seu retorno ao lar, sua casa paterna imponderável, que eu ainda não reconhecia em totalidade. Ai! Que destino o meu! Sou frágil, não cresci completamente, sou na verdade a femme-enfant que eu nunca quis reconhecer, em minhas perplexas contradições. Tenho medos como uma criança, quero ser protegida nos braços de um homem forte. E, no entanto, em que aventuras me meto! Por que sendas, por que trilhas o destino me arrasta, amada por homens e mulheres, mas sem pouso, sem um lar verdadeiro, de casa tão distante! Mas, não será assim todo destino humano? Desterrados do Pai, erramos na Terra, e não temos guarida a não ser como hóspedes passageiros, dependentes “da bondade de estranhos”, como disse Tennesse Williams, pela boca da dolorosa e bela Blanche Dubois, com quem tantas vezes me identifico. Sou patética eu sei, sou romântica e só quero ser amada até o apaziguamento total, por um homem perfeito, um príncipe, imagem projetada do irmão dos nossos sonhos ou de um pai eternamente jovem. Sou incestuosa portanto, e assumida. Deslumbrada na infância com a face invertida do meu espelho, onde enxergava não a minha face, mas a do lânguido Narciso, contra-face de sua ninfa Eco, ecoando, ecoando em círculos concêntricos, em torno de uma flor desesperadamente branca, curvada sobre suas águas.
Voávamos agora, voávamos, e Josué já consultava as suas incompreensíveis cartas, enquanto eu meditava sobre o mistério da cidade onde pousáramos e que eu não conhecera, e que talvez nem tivesse realmente me visto, a não ser nua, isto é, não reconhecera sua princesa, pois agora estava claro: Rafisa com suas artes mágicas me escamoteara aos olhos da população. Minha descida no Pavão não constaria jamais dos anais da cidade, eu agora tinha certeza, e não pude senão sorrir. Ah! Rafisa, um dia nos reencontraremos? Atravessarás este Brasil no teu carroção puxado pela égua Miranda, coitada, tão magra, e estacionarás no bosque mágico de minha infância, na estância, onde Rôdo e eu correremos ao teu encontro para o abraço comovido de amigos de sangue?
Voamos tanto tempo que, perdidos sobre uma planura inóspita e espinhosa, talvez ainda no sertão da Paraíba (Josué já não tinha certeza de nada) acabou nossa água combustível, até a reserva, sobrando somente o conteúdo do menor dos odres, o de beber. Nós estávamos em apuros. A realidade cobrava os seus direitos a estes dois sonhadores e tivemos que descer, “no vapor” como se diz, para não espatifar-nos contra o solo rachado de uma caatinga seca de cem anos. Descemos da barcaça, com o coração apertado, preocupados, pois a paisagem era terrível, desoladora, e só tínhamos um horizonte indefinido a toda volta, reverberante de calor, cuja linha indefinida ondulava como um delírio de febre terçã.
Quando pus os pés no solo, quase tive uma vertigem de calor, e pensei em primeiro lugar, na minha pele tão branca... Eu iria ficar sardenta, pela primeira vez, e para sempre? Senti dor no meu coração. Mas por quê, por outro lado, eu não me queimara nem um pouco até agora naquela viagem e naquele vento, e minha pele permanecia branca e sedosa como sempre? Aquilo era um mistério, que impressionava até o Josué que não era fácil de se admirar, com nada estranho. Ele, mesmo assim, parece que também pensara nisso, e retirou de sua mala misteriosa, uma sombrinha branca como eu e como o meu vestido rendado, e abrindo-a, entregou-a a mim, para começarmos a caminhada.
Andamos por uma hora sob o sol inclemente e sarcástico como os metais do “ Le Sacre du Primtemps” de Stravinsky, eu, com minha sombrinha branca também debruada de renda, e meu vestido alvíssimo, quase tanto quanto a minha pele, minhas sandalinhas finas de ouro e prata, que eram feitas somente para mostrar meus pés, finos, delicados, com os dedinhos segundos mais compridos que os primeiros, como as mãos, que inspirariam aqueles versos do cordelista Guilherme. Mas eu me refiro a isso tudo para ressaltar o absurdo da nossa situação. Eu era incompatível com aquele deserto, eu que era “filha das verdes pradarias floridas, dos campos de trigo louros como os meus cabelos, e do vinhedo, de uvas rubras como os meus lábios”*. Eu iria morrer esturricada e ficaria ali como uma ossada branca. E não seria identificada em minha brancura óssea, como não o fora Dom Sebastião no areal africano. Afinal eu também não era a “Esperada”? Estes pensamentos irônicos, quase delirantes, denunciavam meu ressentimento, minha amargura nascente. Josué não podia me proteger mais do que o fizera arranjando-me aquela sombrinha que comprara na feira de Princesa, e que diziam ser cópia da que a Princesa Isabel usara na sua passagem por lá. Bah! Tudo sonhos, tudo delírios. Fiora e Anunciada tinham razão eu não era feita para a rudeza deste sertão, eu o subestimara em sua crueza, em sua crueldade. E agora iria morrer!
Mas, então, mesmo numa hora tão penosa e angustiante como aquela, sob um calor de quase 50º Celcius, eu, lembrando-me do filme “Barbarella”, dos anos 60 (que eu vira em DVD), ali, sedenta, exclamei: “CHAMPANHE! CHAMPANHE!”, com minha sombrinha muito tesa e meu ar de lady. E caí numa gargalhada cristalina, nada amarga, que perdeu-se na vastidão daquele deserto.
Então, Josué, que me olhara espantado, neste exato momento apontou o dedo, estendendo o braço em frente, e gritou: “TERRA À VISTA! TERRA À VISTA!” Eu não acreditava, o mundo estava verde novamente, e eu me vi sob palmeiras e coqueirais, jaqueiras frondosas e sapotizeiros que cresciam juntos, sem conflito, às margens de uma cascata e sua piscina azul, no doce país de Cocayne*, digo, da Esperança.
Sim, eu bem tinha ouvido que só o humor salva...

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Ficamos uma semana desfrutando do paraíso e “transando” tanto sem camisinha como se o mundo estivesse redimido, e não houvesse punição para os incautos e os inocentes. Aliás eu já via com bons olhos a idéia de um bebezinho em meus braços, mamando em meu seio, e mergulhando com os botos como o menino da escultura grega de bronze no museu de Atenas, que tanto me impressionara, como a essência emblemática da Idade de Ouro, que eu pensava estar revivendo ali, naquele sertão verdejante, inaudito. Mas, afinal, um dia, enquanto eu acariciava meu ventre e o bico dos meus seios com um ar sonhador, Josué aproximou-se e disse:
—Alma, querida, temos de partir, o mundo nos espera, passaram-se sete anos e eu também só soube disso agora, fazendo cálculos com um aparelho que inventei e que tirei da minha mala de equipamentos. Se ficarmos aqui, seremos esquecidos pela humanidade, e tudo o que passamos antes terá sido em vão.
—Mas, Josué, — eu disse— o que passamos, mal me lembro, e que importância tem, se estamos tão felizes? Vem, toma-me, toma-me mais uma vez, mais mil vezes. Só quero isso, e depois... talvez, morrer em teus braços. Mas dá-me um bebezinho, vê meu ventre crescer, ausculta-o, fala com ele, beija-o através do meu umbigo, tira-o de dentro de mim com tuas mãos, lamba-o junto comigo. Vem, vem, vamos fazê-lo agora!
Josué olhou-me fixamente, abanou a cabeça, e mais uma vez deitou-se sobre mim, que vivíamos nus, e me possuiu docemente.

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Quando completou-se dez anos de nossa chegada a Cocayne (não me entendam mal, nada a haver com o que alguns estão pensando), eu estava mais jovem e saudável do que nunca, e não envelhecera nem um pouco, o que preocupava Josué, não sei por quê, e que para mim era maravilhoso, com o único senão de não poder admirar a minha beleza intocada, num espelho de cristal mesmo, que não havia ali, e somente poder mirar-me nas águas, aliás cristalinas da nossa piscina natural da cascata. Mas eu não engravidava e isso estava tirando-me o prazer da imortalidade e da juventude eterna, que eu já percebia que reinavam ali, naquele paraíso sertanejo. Comecei a aceitar a idéia de partir. Não há perfeição no mundo, e se eu não podia perpetuar-me e nem tinha telas e tintas para pintar, ou papel para desenhar e escrever meus versos, nem admiradores e leitores ávidos das minhas criações, eu não queria a Eternidade! Lembrei-me, das últimas palavras do grande Jean-Baptiste Corot, no seu leito de morte: “Espero que no Céu, haja pintura!”
Então, fiz um esforço imenso para superar a preguiça e o prazer do meu corpo em eterno deleite (eu não tivera sequer um piriri, ou uma dor de dentes, ou de cabeça, nem um simples resfriado, todos as aqueles anos, e me esquecera totalmente da ameaça de Ludugero). Nunca mais voáramos no Pavão, do que, confesso, estava com saudades. Josué com sua habilidade, conseguira levar água aos poucos, durante aqueles longos anos, até encher os odres do pavão num trabalho de Sísifo, ou melhor, de tonel das Danaides, pois o sol da caatinga fazia evaporar uma parte no caminho e mesmo dentro dos próprios odres de maneira que foram necessários dez anos para ter neles uma quantidade razoável para levantar vôo e escapar daquele deserto. Durante aqueles anos nenhuma vez eu o acompanhara nesse trabalho, pois nem sabia que ele fazia isso. Eu tributava suas ausências à sua vida de homem, que precisava afastar-se um pouco de sua mulherzinha e sair com os amigos, esquecendo-me completamente que ali não havia amigos, não havia ninguém. A verdade é que eu me alienara no meu sonho de dez anos, e não vira o quanto Josué se esforçara e até envelhecera um bocado, naquele esforço brutal, quase cotidiano, que eu ignorava. Tive um grande remorso, quando me dei conta de tanto sofrimento do meu homem. Para ele não houvera Paraíso, e sua sina de homem nunca fora renegada. Ele sim, era o herói, e lembrei-me de que isto queria dizer que ele seria capaz de descer aos Infernos por mim, e voltar, se é que ele já não vinha fazendo isso continuamente há dez anos. Decidi partir com ele.
Josué foi buscar sozinho o Pavão e sobrevoou Cocayne, acenando-me antes de descer sobre a grama entre os coqueiros. Naquele momento ele poderia ter se afastado e fugido, deixando-me ali para sempre. Mas isso nem lhe passou pela cabeça, ele me afirmou depois, quando perguntado por mim, que levantara essa dúvida, num lapso de um minuto em meu espírito. Ele me amava, eu era a sua princesa e ele não me abandonaria, jamais, no paraíso.

sábado, 19 de janeiro de 2008

A nova amiga (de Alma Welt)

(Dos Contos Secretos, de Alma Welt) 

 Minha amiga Vânia me telefona bem cedo convidando-me a encontrá-la num barzinho aqui perto na Oscar Freire para tomarmos um café e botarmos o papo em dia. Jamais esperaria que ela tivesse uma segunda intenção e que esse telefonema tivesse as conseqüências que ora passo a narrar a vocês, meus confidentes leitores. Depus a paleta, limpei os pincéis, dei uma última grande olhada na tela nascente no cavalete e passei a ocupar-me de uma caprichada toilette: banho, escova nos cabelos, e uma esmerada escolha de uma roupa “casual” mas elegante. Foi como se meu inconsciente captasse alguma coisa, um prenúncio, uma aurora. Saí depois de deixar um auspicioso e sintomático bilhete brincalhão para minha faxineira que chega sempre um tanto tarde devido à viagem que necessita fazer para chegar neste seu emprego. Minha querida Luíza, minha nova “mãe-preta”, como acostumei-me a chamá-la: “Querida Luiza, fui ao encontro do “grande amor da minha vida!”. Tem comida na geladeira. Esquente e coma o que você quiser. Não me espere para o almoço. Pode matar a goiabada com queijo: Romeu e Julieta, é todo seu. Vou ao encontro da alegria. Beijos” Alma Duas quadras depois topo com minha amiga na mesinha da calçada mas não sozinha, há uma moça com ela. Estremeço: é linda, estendendo-me a mão à apresentação de Vânia que troca beijinhos comigo, aos gritinhos, como é do seu feitio. Perturbada, esqueço de soltar a mão da moça que no entanto não parece constrangida. Olha-me atentamente, parecendo também fascinada. Não ouvíamos mais o bábáblá de Vânia. Nossos olhos não mais se desgrudariam. Prima de Vânia, Letícia é o seu nome, parece vir de longe, mas de um outro tempo, de dentro de mim mesma. Vocês conhecem, leitores, o meu temperamento romântico e minha procura incessante pela felicidade amorosa. Trata-se de uma idiossincrasia, eu reconheço, nestes tempos tão pragmáticos que esperam tudo de uma artista jovem, “contemporânea”, menos isso! Entretanto, tenho cada vez mais a tendência, como vocês já perceberam, de assumir minha alma lírica, “sáfica”, no melhor sentido. Eis porquê cada vez mais exercito minha veia de sonetista, produzindo até mesmo alguns de timbre camoniano, como este: Quando criança, o amor já desejava E sonhando construía meus enredos; Tornar-me escritora eu almejava, Ser poeta e espalhar os meus segredos. Ser pura, secreta e desbragada; Confessional pelo mais puro pudor, Abrir o coração, e, alargada, Conter o essencial do meu amor: Aquilo que devora e me conserva Jovem para sempre enquanto morro Um pouco a cada dia que percorro. E assim, da Natureza alegre serva, Manter do coração a chama eterna, Heróica, ao sol acesa a vã lanterna. E agora estava eu ali, à beira de um novo amor, feliz desde logo, de puro encantamento por uma adorável jovem, reflexo da minha própria beleza, juventude e alegria. Eu já estava novamente vivendo a glória de uma nova paixão, única razão legítima de se viver, o próprio sentido da vida, evanecente embora, segundo a experiência. Uma embriaguez eufórica, que produz frequëntemente, uma espécie de “apagamento", como o alcoólico. Não sei dizer como nos desvencilhamos de Vânia. Só me lembro de caminharmos um quarteirão de mãos dadas, trêmulas de emoção. Depois a porta aberta do estúdio, com Letícia já atirando o sutiã para cima, numa explosão de peças deixadas pelo caminho, numa verdadeira corrida até o quarto onde nos atiramos uma sobre a outra, no imenso leito. Nosso encantamento nos conduzia numa longa viagem, que fatalmente iria pela tarde e pela noite até o dia seguinte... pela eternidade. Eu me esquecera de Luiza, a mãe-preta, que chegou e nos pegou juntas na cama. A pobre negra, uma mulher quase idosa, coitada, teria mesmo que ficar um tanto chocada... Mas a boa mulher recuou rapidamente da porta do quarto, com o meu bilhete na mão. E permaneceu discreta na cozinha, calada, de cabeça baixa. Fui ao seu encontro e encontrei-a assim, com lágrimas nos olhos, tentando limpar a pia. Segurei-a pelos ombros, ergui-lhe o queixo com dois dedos e disse-lhe: –Luiza, querida, não fica assim. Lembra-te, sou eu, Alma, a tua “guria”, sempre a mesma, que adotaste como tua “filha branca”, não sou? Olha, não é melhor assim, uma bonita garota, pura afinal, do que um belo cafajeste, ou aproveitador, ou ainda um “macho” com o cabresto numa mão e a sela na outra, como diríamos lá no meu pampa? Vamos, vamos, não fica assim. Agora eu te peço, Luiza, toma aqui a tua diária e volta amanhã. Nada temas. Eu estou feliz, não é isso que importa a ti ? Luiza, olhou-me sem entender. Tocou meu rosto com sua mão áspera de faxineira, e disse: — Alma, eu não entendo isso. Duas moças... isso é pecado, minha filha! Você assim não casa, não vai ter filhos. Isso não leva a nada, minha filha! Olhei seu rosto negro, seu cabelo pixaim que começava a ficar grisalho, suspirei e retruquei: —Luiza, já fui casada, tu sabes disso. Não gostaria de repetir a experiência. Os homens interessantes ou são neuróticos ou são bêbados, é perigoso meter-se com eles. Tu mesma, não foste casada com um bêbado? Que te batia, que te fazia sofrer? Essa garota não baterá em mim e me fará feliz, eu te garanto. Luiza abanou a cabeça, com lágrimas nos olhos, tocou novamente meu rosto, e murmurou: —Que pena... Tão linda... que pena! Luiza pegou sua bolsa e o dinheiro que lhe estendi, enfiou-o nela, retirou o avental e saiu de cabeça baixa visivelmente deprimida e chocada. Ela nos vira nuas na cama. Teria visto mais que isso? Voltei para o leito onde Letícia permanecia adormecida. O seu maravilhoso corpo nu, tão entregue, numa bela posição, estética e natural ao mesmo tempo! Uma obra de arte! Sentada ao seu lado contemplei longamente o seu puríssimo rosto de menina. Esse rosto banhara-se de lágrimas de emoção, da pura emoção do nosso encontro, e eu bebera a suas lágrimas como elas as minhas. Estava tudo certo. O amor era lindo, e nós certamente não iríamos para o inferno, pois já estávamos no paraíso. 18/02/2004

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Divagações da Alma (de Alma Welt)

Há algo que nunca deixarei que acabe em nossa estância. Trata-se da charrete do Galdério, o hábito de irmos buscar nossos eventuais hóspedes na estaçãozinha de trem, uma das últimas Maria-Fumaça ainda na ativa no Brasil. Enquanto eu for viva lutarei pra a preservação dessa relíquia, tão cara a mim, que sou acusada de “antiquada” e passadista, por isso. O próprio Rôdo, meu querido irmão, sorri, irônico e condescendente, quando se toca no assunto. Ele, com sua paixão por carros esporte e seu amor pela velocidade, é sem dúvida bem mais “moderno” do que eu. Mas não se trata disso! É uma questão cultural, e eu tenho lutado desde a morte do Vati para que nada se modifique por aqui, e que o casarão não sofra nenhuma reforma, mesmo se mostrando nitidamente “decadente”, com rachaduras e musgo subindo pela fachada e paredes externas ( Rôdo compara-a , rindo, à Casa de Usher, de Poe). Minha luta ( reacionária talvez ) eu registrei no meu romance autobiográfico A Herança, ainda inédito. Acredito que o meu romance é atual e oportuno justamente por se situar na fronteira de dois mundos: a face tradicional e até arcaica do Pampa, e o mundo citadino, cosmopolita, da comunicação de massa, embora eu mesma não tenha comprado até hoje um celular (pasmem!). Escrevo à mão (só não com pena de ganso) antes de digitar, e somente a partir de 2001, quando fui contatada e “descoberta” pelo Guilherme de Faria, comprei um computador e aprendi a navegar na Internet. Confesso que fiquei praticamente viciada. A net é realmente a maior revolução desta virada do século, e me permite “ganhar tempo” enquanto as editoras me olham ressabiadas: “...essa escritora é profunda, tem o que dizer, na certa não venderá. As pessoas não gostam de refletir, nem de sofrer, nem mesmo de se comover, querem apenas se divertir: sua faceta ponderável para nós é a do seu erotismo. Mas ela não é suficientemente pornográfica. Será que venderá?’

Alma Welt permanece sob suspeita. Estarão os abutres esperando somente a morte da gaúcha doida, da “última romântica”? Tenho elementos para supor que sim.

Em compensação, uma rede de leitores, no boca a boca propaga minha literatura, “como musgo sobre a tundra” (expressão um tanto nórdica, minha mesma) E tenho recebido milhares de e.mails com manifestações de afeto e apreço. Isso é o que vale.


06/11/2006

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008


Logotipo da Alma Welt, criado e pintado por ela em 2001, a óleo, com grande destreza em dois golpes de pincel.

sábado, 5 de janeiro de 2008

A Navalha e o Abismo (crônica de Alma Welt)

A Navalha e o Abismo

(de Alma Welt, 1972-2007)



Meu pai possuía uma navalha de barbear que me fascinava, em minha infância. Era um objeto magnífico, com cabo de marfim, dentro de um belo estojo, com a marca alemã em letras douradas: Abgrund & Sohn. Ele não a usava desde a sua juventude, quando deixara a barba crescer e eu só o conheci barbado, patriarcal, a princípio fulvo e grisalho, depois todo branco. No entanto ele guardava a sua navalha, que lhe era cara por alguma razão. Digo isso, por que, estranhamente, eu nunca lhe perguntei como a obtivera, se ganhara de alguém, se a comprara numa loja, ou se fora de seu pai, coisas assim. A razão da minha discrição, acredito, é que o objeto parecia secreto, a mim, que cheguei perto da obsessão, por um período, naquela época. Foi logo que descobri o estojo na gaveta de sua escrivaninha, na biblioteca. Eu o abri, e deslumbrada, num nicho em depressão sobre o veludo, dormia o objeto que me... “vertiginou”. Eu desnudei a lâmina, lentamente, com o dedo indicador toquei-lhe o fio, e imediatamente a minha carne se abriu quase até o osso, me pareceu. Dei um grito e nem sei como guardei o objeto agressivo, no estojo, empurrando a gaveta com a outra mão, para sair correndo buscar gaze e esparadrapo, para tratar-me, pois sabia que fizera algo errado e pretendia esconder o fruto da minha bisbilhotice. Eu consegui facilmente, de minha mãe e de Matilde, sob interrogatório, atribuindo o corte a uma inocente faca de cozinha. Meu pai percebeu a verdade, eu acho, pois a navalha dever ter ficado manchada do meu sangue. Mas ele nada comentou, para não abrir uma nova área de atrito com minha mãe. E escondeu a lâmina noutro lugar, eu depreendi. Com um meio sorriso, levantou o dedo, disfarçadamente, para mim, a um tempo com admoestação e cumplicidade, assim me pareceu.

Daí por diante fiquei praticamente assombrada pela navalha e seu perigo. Eu tomara a consciência traumática de sua ameaça, de seu... abismo. Sim, pois por alguma ilação poética, cuja propensão me era inata, eu associei a navalha a um abismo. Quando dali a não muito tempo eu descobri na estante da biblioteca, o livro intitulado “O Fio da Navalha", de W. Somerset Maugham, eu o devorei, para encontrar a resposta do enigma daquela lâmina. E, acreditem, apesar da ingenuidade do meu propósito infantil, eu a encontrei. Há mesmo uma associação entre o fio da navalha e o abismo, pois a metáfora de andar no fio de uma navalha incorre no perigo de abismar-se, talvez dividido ao meio, numa queda sem retorno. Na minha mente, porém, a própria lâmina era o precipício.

Entretanto aquele era um objeto material que continuava me atraindo, me chamando, me obcecando. Eu temia levantar à noite, sonâmbula ou não, ir direto ao seu novo esconderijo, que de alguma forma eu sabia, e precipitar-me sobre ele. O que era estranho é que eu não me via degolada, mas sentando-me nua na lâmina aberta, sobre o fio, e cortando a minha pequena vulva, num talho sangrento, que não se fecharia nunca. Quando afinal surgiu o sangue da minha menarca, por uma fração de segundo, inesquecível e terrificante, eu pensei ter feito aquilo: sentara-me na lâmina sagrada e proibida!

Eu agora estava no abismo de mim mesma, do meu desejo infinito, do misterioso sangue das minhas entranhas de mulher!