sábado, 12 de abril de 2008

Nossa verdadeira vida

(das Crônicas da Alma, de Alma Welt)

Acaba de ocorrer-me que a nossa vida compõe-se de extratos superpostos, com maior ou menor representatividade, sendo que o plano sexual, representa a parcela mais sugestiva, o extrato superior, o mais significativo de nossa existência. Bem, nós sabemos que Freud já dizia isso com outras palavras. Mas parece que essa evidência continua a ser negada ou abafada até hoje, nesse começo de milênio, como se a sexualidade fosse uma potencialidade menor, ou obscura, que deve permanecer escondida, marginalizada em nossa vida. E nisso consiste a maior hipocrisia do ser humano.
O poderoso instinto de procriar se manifesta acompanhado da pulsão do prazer, um profundo prazer, cuja permanente lembrança se sobrepõe a tudo, por isso há quem tenha o sexo como uma idéia fixa, subjacente a tudo, durante todos os dias de sua vida. Isso, na maioria das pessoas, a julgar pelos estudos modernos sobre a sexualidade. No entanto, há quem negue essa verdadeira hegemonia do sexo, em nossas vidas, em nome de uma suposta “espiritualidade”.
Vocês, meus queridos leitores, já notaram a importância que atribuo ao sexo, como ponto de partida de todas as minhas experiências relevantes. O desejo. Motivação e porto de chegada de tudo, e tema básico ou residual de todas as minhas narrativas e poemas. Não preciso, evidentemente, justificar-me, a essa altura da minha obra, tão natural e espontânea em mim. Entretanto, acabo de ouvir algo desagradável, da parte de uma senhora de idade, bastante culta, que, não por acaso, e surpreendentemente, leu alguns dos meus contos. Ela disse: “A Alma tem, o que, no meu tempo, chamávamos de “furor uterino”. Trata-se de uma ninfomaníaca”. Fiquei, a princípio, chocada com essa observação, sentindo-me, no mínimo injustiçada ou incompreendida. Mas, a seguir, olhando bem nos olhos da tal senhora, não vi maldade nela, ou censura. Mas, sim, um risinho maroto. Percebi, então, que o meu texto levanta, talvez, nas mulheres principalmente, sentimentos ambíguos, contraditórios, despertando-as para a sua própria sexualidade, para os seus próprios “segredos”, tão recalcados. .
Aqui, no meu ateliê paulistano, que nos últimos anos eu sinto como uma base, de onde a minha imaginação parte, na poesia, no conto e... nas minhas memórias amorosas, muito pouco do que narro vem da pura imaginação. Por incrível que pareça, sou uma cronista de mim mesma, do meu próprio cotidiano. Se a tônica dos meus textos é a narrativa amorosa e... erótica, é porque esse é o verdadeiro território da minha alma: a procura incessante do amor, e do prazer. Dito isso, passo a narrar a minha última aventura.
Espero a visita de uma senhora, que telefonou marcando hora para hoje, a partir das três. Ela se diz uma grande admiradora de meus poemas, e quer conhecer-me. É um fato inusitado, raro mesmo. Em geral sou procurada em meu ateliê por conta de minhas pinturas. Todavia, lembro-me agora do desastrado encontro do poeta Umberto, sonetista daquela malfadada “Confraria dos Poetas do Soneto Triste”, da qual contei a patética estória no conto homônimo, dos meus “Contos da Alma”, já publicado em livro.
A doutora Lídia foi tão simpática e reverente ao telefone, que aceitei recebê-la, embora um tanto receosa de me aborrecer, por conta de mal-entendidos. Será que essa senhora leu realmente a minha obra poética, tão confessional que me faz evitar palestras e reuniões sociais, onde posso ser confrontada pelos leitores com perguntas indiscretas no plano pessoal, quando feitas diretamente, pessoalmente? Sempre me refiro aos meus “fiéis leitores sem rosto”, que quero manter assim, anódinos, como sombras servidoras do meu ego, um tanto narcisista, reconheço. Essa maneira de me colocar, sem peias, de maneira total e desabrida, no papel, funciona como uma análise permanente, senão uma terapia. Repasso os meus amores, e meus prazeres, minhas delícias mesmo, que incluem detalhes escabrosos para alguns moralistas. Ali, confesso até mesmo a nota de masoquismo de minha personalidade sexual, que assim assumo e administro, para que não me tome completamente e... me destrua, como ocorreu, por exemplo com aquelas personagens do magnífico filme japonês “ O Império dos Sentidos”.
O interfone soou, Lídia afinal chegou, subiu, tocou a campainha, abri, e me encantou. Deixei de lado imediatamente o “doutora”, como vocês perceberam, diante da encantadora figura à minha porta. Uma moça madura, de quarenta e poucos anos, de rosto interessantíssimo, talvez não bonita, mas atraente e com expressão muito inteligente. Abriu os braços, emocionada, e me abraçou, como se fôssemos velhas amigas, que há muito não nos víssemos. Segurou-me muito tempo, apertada a si, a ponto de eu estranhar, ainda ali na soleira, sob a porta. Então peguei-a pela mão e introduzi-a na grande sala-ateliê enquanto reparava no seu olhar deslumbrado, brilhante de emoção. Seu seio arfava, comovida e grata por estar ali, e de ter-me abraçado, de estar com sua mão na minha. Por minha vez, comovi-me também e abracei-a mais uma vez. Depois fi-la sentar-se, e olhos nos olhos, ela me contou sua estória:
“Alma, você não imagina o que foi a descoberta de sua obra poética, em minha vida. Sou professora de literatura e vivi sempre para os estudos, cultuando os autores clássicos e dedicada à orientação do gosto dos meus alunos na Faculdade de Letras, da USP. Mas ao descobrir na Livraria da Vila, o seu Kit de poemas, aquela graciosa caixinha recheada de maravilhas, com aqueles desenhos lindos do Guilherme de Faria, do qual, por sinal, eu tenho em minha parede, há muitos anos, uma litografia, eu comecei a folhear ali mesmo os livrinhos, e percebi estar diante de uma poetisa lírica de grande estro, e que evita metáforas e imagens artificiais, usando uma linguagem quase coloquial, embora culta, que me encantou. Lembrei-me do estilo de Withman, embora o seu universo seja diferente do dele. Você é talvez mais romântica, e ao mesmo tempo, erótica, o que me parece uma conjunção rara. Mas o timbre de sua expressão poética bateu-me na alma, como se fosse eu mesma, que dissesse aquelas coisas. Decidi imediatamente, ali mesmo, que devia conhecê-la, e me tornar sua amiga e divulgadora, já que você está sendo publicada de uma forma artesanal, encantadora, mas muito rarefeita em termos de público, me parece.”
Ela falou tudo isso muito depressa, devido à sua excitação, segurando a minha mão nas suas e devorando-me com seus grandes olhos cor de mel. Percebi que seu olhar ia dos meus olhos... para os meus lábios. De repente ela parou, arfando, e disse:
—Ah! meu Deus! Ainda por cima, você uma mulher linda! Eu não esperava isso, confesso. Pensava em você de uma maneira, digamos, mais abstrata. Como a poetisa maior, que eu descobrira, por acaso. Coisa raríssima, pois não entendo por quê não saiu ainda nenhum artigo sobre a sua literatura. Mas chega de falar disso, não é? É você que eu preciso ouvir, você, mulher linda e que tem tanto a dizer! Perdoe-me, estou impressionada, não consigo parar de olhá-la. Você...é um bálsamo para os olhos! ( ela não se conteve e tocou a palma de sua mão no meu rosto, num carinho que me surpreendeu).
Eu estava comovida, e lisonjeada. Jamais recebera elogios que fundiam ao mesmo tempo minha figura e minha poesia, e com essa autoridade, de uma professora da USP. Eu estava tão encantada quanto ela. De repente senti o perigo... em mim mesma! Devia eu aproveitar-me, acabar de seduzi-la, fisicamente? Mas o “fisicamente” não é sempre uma extensão do espírito, e por isso uma decorrência natural do processo de sedução mútua, que é o que sempre acontece no encontro amoroso? Vejam, meus leitores, eu já estava pensando em termos dessa palavra! Sou realmente incorrigível! Mas como não pensar nisso, se um encontro assim tão raro, de almas, impõem-se, e estende-se naturalmente aos corpos? Tudo o mais: reservas, prudência, soavam falsos, a partir do seu toque em meu rosto e de suas palavras.
Então aproximei meus lábios, lentamente, dos seus, e beijei-os profundamente. Dei-me conta, ao mesmo tempo, no meio de nossa profunda comoção, que eu não abrira a boca, desde a sua chegada. Eu não dissera uma palavra sequer. Tudo já tinha sido dito antes, nos meus poemas, e ela percebera.

Ela fora seduzida, e eu... consagrada como poeta!


15/06/2006

Tudo o que faremos quando tu voltares

(dos Contos Pampianos de Alma Welt)


Estás a caminho, Aline, eu já te vejo voltando. Recebeste minha carta, e respondeste com um lacônico bilhete, mas tão sugestivo, que foi o suficiente: meu coração se iluminou. Estarei sonhando? Interpretei tuas poucas palavras pela ótica da minha apaixonada esperança? Não creio. Eu sinto teus passos na estrada, na longa estrada que nos separou. E meu coração segue o compasso dessa tua caminhada em direção aos meus braços, à minha alegria recuperada.
Lembra, Aline, nossas noites infinitas, quando derramávamos lágrimas de embevecimento, e da pura alegria do nosso encontro nesta vida? Como apertávamo-nos em nossos braços esmagando nossos seios, aréola contra aréola. Como nossos púbis se colavam, nossos ventres, nossos lábios? Como trocávamos nossos fluidos, como irmãs-amantes? Como definir senão assim, nossa intensa simbiose, nossa paixão indescritível? E, no entanto, partiste... quase me matando, pelo tanto que eu me confundira, me perdera ou... me ganhara em ti. O êxtase, Aline, o êxtase, nos o conhecemos nesta vida. E isso é santidade, Aline, a verdadeira santidade! Nada faltou no nosso amor carnal: lançamos mão de tudo, sem reservas, e nos possuímos como mulher a mulher, homem a homem, homem à mulher e andrógino a andrógino, com ajuda de artefatos, imaginação e ardor, Aline. Paixão anímica e carnal!
Vem Aline, estou de braços abertos e assim ficarei como uma crucificada, em espera, e esperança, na soleira de minha porta, na varanda do casarão de minha estância, até chegares, e te colocares entre meus braços, endurecidos e... adormecidos, que se dobrarão, afinal, sobre ti. Já querem me internar, Aline, mas não se atrevem. Algo em mim, no meu olhar, talvez, faz crer que tenho razão, que estás a caminho. E os outros esperam a comprovação de um milagre anunciado, como aqueles que querem ver para crer. Ó, seres de pouca fé! Então não ouvem teus passos? Pensam que estou louca...
Quando voltares, te levarei nos meu braços, para que conheças meu florido jardim, meu pomar e minha macieira gravada a canivete AR, onde acrescentarei o teu A, transformando ar, em pedra sagrada. Ara dos Pampas, será o teu capítulo. Eu te levarei comigo com a maçã afinal colhida, ao meu rio, e ao meu bosque. E montarás na garupa do meu pampeiro, numa disparada infinita, pelas coxilhas, agarrada a mim por trás, que sentirei o teu corpo para sempre, mesmo apeadas, nuas, tu colada a mim, na frente, atrás. Eu não te deixarei mais! Tu não me deixarás, porque eu te farei tão feliz que não mais te arriscarás a perder-me! Eu te possuirei e me possuirás até o sangue, até formarmos o Hermafrodita sagrado, com nossos corpos e nossa mentes incendiadas. A salamandra regerá as noites das nossas fogueiras, em plena pradaria preparando o mate que compartilharemos, o amargo, que nos saberá doce e que nos esquentará sob um pala compartilhado na noite sagrada e fria do minuano.
Não poderão mais apartar-nos; não ousarão mais, embora estarrecidos!

Ah! Tudo o que faremos, Aline, quando tu voltares!

21/04/2006

O Guerreiro

(Dos Contos Secretos de Alma Welt)

Preparo-me para pintar, ou, como costumo dizer, para atacar uma nova tela. É um momento de grande tensão, e confesso que tenho a tendência a procrastinar, fazendo “cera” por muitos minutos, antes de criar a coragem da primeira pincelada. Afinal, num impulso um tanto vertiginoso, semelhante ao apertar do gatilho numa “roleta russa” (imagino), lanço a primeira mancha, como quem corta as amarras de um navio lançado à aventura. Zarpar!
Quando me volto para a mesa, para buscar mais tinta, o telefone toca. Não sei se isso me causa alívio ou irritação: a sensação é dúbia. Atendo, deparando-me com uma voz máscula, grave, e bonita, que após apresentar-se me faz elogios, ao mesmo tempo que me pede para ser recebido num dia próximo, ou de preferência hoje mesmo, num horário de aceitação comum a ambos. Prefiro assim, não suporto expectativas prolongadas, e se tenho que receber alguém, que venha logo!
A verdade é que o tal telefonema abalou-me o dia, perturbou-me, no meu propósito de pintar. Mas, afinal, insisto, e acabo por deslanchar depois de um período penoso que me despende o resto da manhã. O quadro lançado, ao parar para observá-lo, pareceu-me ressentir-se desses sentimentos dúbios, dessa dispersão. E da insinuante expectativa com que esse desconhecido me contaminou. Medito uns minutos, sobre essa minha instabilidade, essa fragilidade do meu psiquismo. Ou será do psiquismo humano, em geral? Suspendo afinal o trabalho e vou tomar uma ducha, preparar-me para receber o estranho. Dedico-me a uma longa toillete, com especiais cuidados à minha beleza. Porque faço isso? Esse estranho, o merece? Bem, não importa, não devo pensar assim. É uma questão de princípio. Que é isso Alma, não seja hipócrita! Perscruta teu coração! És uma vaidosa, e amas a corte que te fazem, não importando muito o cortesão. Tens uma vocação de princesa, senão de rainha. Além disso, aquela linda voz máscula continua ressoando em teus ouvidos...
Afinal, estou pronta, toca o interfone, atendo. Depois a sineta oriental de minha porta, e o forasteiro, está diante de mim, maravilhoso. Sim, nada menos que isso, alto belo, maduro, e com um olhar de rapinante, logo abrandado, num esforço de doçura, se posso dizer assim. É essa a impressão que tenho, pertinente ou não. Este homem é um predador, disso estou certa, mas numa espécie de armistício com a presa potencial, a fêmea que sou, tão vulnerável... essa é que é a verdade!
Armando, esse o seu nome, se diz um admirador entusiasmado das minhas obras, que vem acompanhando nas galerias, desde a minha primeira exposição. Sentado à minha frente, com uma postura que me parece especialmente elegante, faz um discretíssimo charme de olhar. “Este homem sabe até sentar-se”, penso, sorrindo, por dentro, do meu próprio pensamento. Devo estar traindo-me pelo olhar, espelho de minha alma cândida, desejosa, inocente. Sim sou inocente, não carrego a culpa do meu enorme desejo do ser humano, da beleza, e da força graciosa! Sou mulher, com um orgulho ancestral... imemorial, tenho em mim uma rainha, sim, tenho certeza. Este homem me terá, se quiser. Notem que eu não digo “se eu quiser”...Serei resposta, não questão. Meio reino é aquele da receptividade, do aconchego, do “repouso do guerreiro”. Abro meus braços para o predador, que precisa descansar, pois não veio com o apetite da batalha, mas cansado, enternecido, lavar-se de tanto sangue, tanta guerra.

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A bela cabeça de Armando, repousa em meu seio. Sua respiração silenciosa, plácida, titila com uma leve brisa a auréola rosada que ele tanto beijou. Meus bicos, assim bafejados, continuam ligeiramente tesos, e eu me enterneço por nós, pelas nossas belezas, tão complementares. Trago em mim ainda o seu sumo, e queria guardá-lo para sempre. Este homem é agora o meu amor, e quando acordar, vou chamá-lo, com orgulho : “meu senhor”. “Dormistes bem, monseigneur?” Como o faziam as cortezãs de França ou mesmo suas rainhas. Vou entregar-me uma vez mais a ele, pois que os guerreiros acordam sempre com a lança em riste (dou uma pequena gargalhada, que procuro abafar com a mão, para não perturbar seu sono). Afinal, com o braço adormecido, preciso mudar de posição, e meu movimento, por mais cuidadoso... o acorda.
Ele abre os olhos lentamente, estranhando tudo, olhando-me como se não estivesse por um momento atinando com o lugar, a pessoa... a mulher. Um ligeiro aperto em meu coração antes dele afinal sorrir... e beijar-me. Então, olha embaixo do lençol, confere (os homens tem um secreto medo, eu sei) e tendo encontrado sua lança, tesa, fará mais uma vez uso dela, como eu previa. Ele vira-se sobre mim e me engolfa.

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O guerreiro deixou-me após o nosso banho vaporoso, que cobriu com uma suave bruma todo o meu espaço, fazendo-o partir como um cavaleiro na neblina da manhã, após beijos e mais beijos, que deixaram meus lábios dormentes de memória.
E ponho-me a girar no ateliê, a cantarolar, em minha alegria, a canção que brota do meu coração tocado pelo predador...que respeitou o ninho de seu descanso. Que ofereceu-me sua suavidade, sua força em repouso, fazendo doce a sua lança. E brando, muito mais brando, o seu olhar!

O fazendeiro

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Chegamos à fazenda quase ao anoitecer, mas pude perceber a monumentalidade e os vestígios de um apego desmesurado à tradição, já naquela entrada ladeada de grandes palmeiras. Avistei também um imenso baobá, insólito, raríssimo. Parecendo o abantesma de uma árvore exótica, africana, ali plantada no século retrasado, remeteu minha memória à única referência dela em minha infância: a do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Éxupery. No entanto o tom geral era de decadência, e eu imediatamente pensei na noite que iríamos enfrentar, com seus possíveis fantasmas, naquele casarão que se pretendia hospitaleiro.

À entrada, no alto da dupla escadaria que fazia o acesso à porta principal do solar, no centro de uma extensa varanda que o circundava, estava o nosso hospedeiro, metido em grandes botas, e um chapéu de abas largas, meio caídas, na cabeça. Entretanto, à medida que subia os degraus em sua direção, meu coração acelerou-se, discreta mas perceptivelmente. Ele estendeu-me a mão enorme, como quem oferece apoio, ao aparar uma amazona ao descer do cavalo, por exemplo, e não como alguém que atinge um patamar, como era o meu caso, ali, no alto daquela escada, em que imediatamente, sob aquele olhar viril, vislumbrei minha perdição.

Estevão, nosso anfitrião, conduziu-me pela mão, de uma maneira galante e um tanto antiquada, saudando minha amiga apenas com um rápido erguer do chapelão. Felizmente Flávia tem bom temperamento e não pareceu ofender-se, disposta que estava desde o princípio a fazer o papel de dama de companhia, já que estamos mergulhando numa atmosfera um tanto arcaica, ou no mínimo demodée.

Adentramos o casarão, que me pareceu escuro, mas ao mesmo tempo iluminado com um farol apenas pelo olhar de Estevão, que brilhava de uma maneira intensa. Eu já estava sob a influência inebriante da paixão nascente, ao por os pés ali, naquela casa maldita. A excessiva virilidade daquele homem, me dominara, paralisando a minha razão. Eu me conhecia... e previa até certo ponto o que viria. Entretanto era preciso nada precipitar, e submeter-me à ordem natural, mais lenta, dos acontecimentos.

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Como eu previra, durante a ceia um tanto silenciosa e constrangedora, fui devorada pelo olhar de Estevão, atrapalhando-me com os copos e talheres, como uma menina, a ponto de engasgar-me com um gole de água, tendo o nosso anfitrião que levantar-se e bater-me às costas. Após o oferecimento de um cafezinho, que recusamos como arremate da ceia, para não perturbar o nosso sono já suficientemente em perigo, despedimo-nos de Estevão, que beijou-me a mão à antiga, mais uma vez tocando o chapelão para Flávia, já que este voltara à sua cabeça imediatamente após a ceia. Fomos conduzidas até o nosso quarto de hóspedes, escolhido por ele, e preparado de antemão. Perguntou à Flávia, com um certo propósito, se ela preferia um quarto só para ela. Flávia, esperta, recusou, percebendo a possível armadilha que nos poria a ambas em perigo, uma vez que é tão bela e desejável quanto eu. Mas ao deitarmos, comentou esse detalhe, afirmando que sua única preocupação naquele momento fora comigo. A dedicação de Flávia sempre me comove.
Esta guria se declara disposta a seguir-me até o fim do mundo, e me lisonjeia uma servidão voluntária assim, vinda de criatura tão bela. Para ser sincera, devo dizer que percebo o timbre apaixonado, do seu amor por mim, que, no entanto nada pede, senão prazer de servir-me e estar sempre ao meu lado. Tenho de tomar cuidado para não feri-la, a este ser delicado, esta alma de elite, com que meu destino excepcional me contemplou.

Logo após nossa breve conversa, exaustas, apagamos a luz, mas minha amiga, passados cinco minutos, para mim previsíveis, pediu para passar para o meu leito, pois que tinha medo... disse, imediatamente metendo-se sob minha coberta e abraçando-me por trás como sempre faz, enquanto enterneço-me e mais a aconchego junto a mim.

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De madrugada, com a sinfonia dos galos, ainda antes do sol aparecer, acordo, e retirando com cuidado o braço de Flávia do meu ventre, levanto cuidadosamente para não acordá-la, e pé-ante-pé, dirijo-me para a porta, abro-a, ela range, e eu penetro no corredor mais escuro ainda, e percorro alguns metros tentando alcançar a cozinha. Tenho sede. Ma de repente, enxergo uma fresta iluminada sob uma porta. Vou passar por ela. Lentamente... mas de súbito ela se abre e... sou agarrada, puxada para dentro com uma grande mão abafando meu grito. Sou arrastada para a grande cama de dossel, só pude reparar nisso, e já o tenho sobre mim com todo o seu peso. Ele abre-me o peignoir com violência, e agarra-me um seio, pequenino sob sua mão, antes que possa entrar em pânico, sinto-o penetrar-me, enorme, tão dolorosamente, que me cala, como quem vai rasgar-se ao meio! Estou sendo estuprada... Eu sabia, eu sabia, desde o primeiro momento, que isto ocorreria, ainda antes de chegar aqui, nesta fazenda, desde lá em São Paulo, naquele restaurante em que ouvi o seu convite! Eu sabia, eu sabia.. só que não esperava que seria assim tão doloroso! Este homem, de cujo rosto nem assimilei os traços, somente o cheiro, os fluidos invisíveis de sua masculinidade brutal! Não sei sequer se este homem é belo, se me mereceria em outras circunstâncias. Quem é ele? Quem é? Agora é tarde: o invasor já está dentro de mim, e derrama seu sumo dentro do meu ventre em chamas. Grito, afinal, grito alto e longamente, para acordar Flávia, para acordar o mundo. E acordo.

Flávia está sobre mim, apavorada, com sua mão apertando meu púbis. Ela quer defender-me... do mundo.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O Fauno


O Fauno- Desenho de Guilherme de Faria

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Resolvi recomeçar as minhas sessões de análise. Não porque esteja propriamente sofrendo, mas por perceber que as minhas fantasias estão me levando, cada vez mais a situações insólitas, e talvez a correr riscos. A verdade é que tenho sido estuprada com uma freqüência alarmante em minha vida. Por quê digo isso? Creio sinceramente que às vezes me submeto ao desejo de homens e mulheres que não amo, que na verdade não poderia amar, mas pelo simples fato de me desejarem ardentemente, e com paixão. Par délicatesse*...
Mas, então (vocês podem insistir), por quê falo em estupro?
É porque desperto, talvez, algo nos homens... e mulheres que cruzam a minha vida : uma espécie de exaltação do desejo, talvez um entusiasmo, que acaba por descambar para a obsessão, a exasperação, e finalmente a violência, nessa ordem. E o pior (ou melhor) é que fruo um imenso prazer na dor, e isso, acreditem, me confunde e... me deixa perplexa. Serei eu uma masoquista, e portanto vítima de uma patologia? Não sinto assim, propriamente, Creio que tenho em mim todas as dores, todas as necessidades de dor, e de prazer; tenho a convicção da universalidade de cada desejo, de cada fantasia que me assalta, tenho em mim todas as mulheres e... alguns homens. Por quê só alguns? Porque só os mais sensíveis, certamente, embora se possa dizer isso das mulheres, igualmente. Há mulheres que não são sensíveis. As mulheres vulgares, por exemplo. Entretanto devo reconhecer que a vulgaridade, como a entendo, pode ser, à vezes, a máscara defensiva de uma alma tímida.
Entretanto, recentemente tive a contrapartida de uma dor causada pelo inverso, pela isenção, pela delicadeza suprema, que marca a alma de uma outra maneira, indelével.
Dito isso, vou revelar, a vocês meus leitores, o que eu nunca contaria para um confessor, mesmo que eu tivesse um, ou confiasse num padre encerrado num confessionário, e com voto de sigilo. Mas advirto-os de que não estou aqui para diverti-los, como uma escritora, ou uma espécie de “enterteiner”. Não se trata disso. Antes, eu diria, de uma necessidade de usá-los, meus leitores, com sua permissão, para a terapia que pretendo iniciar. Em troca oferecerei, como sempre... beleza. Comecemos, pois:
Recebi, há dias, uma carta de um fã, que afirmava sentir uma afinidade extrema, total, com meus poemas e contos. Esse fã, entretanto dizia em sua carta que queria compartilhar comigo um segredo vital para ele, e que para isso precisava ser recebido por mim, para fazê-lo pessoalmente. Como a carta era extremamente bem escrita e delicada, eu, talvez precipitadamente, resolvi fazê-lo.
No dia e hora combinados pela pequena correspondência que entabulamos, o interfone soou, e anunciado pelo porteiro, meu visitante subiu, enquanto eu o esperava olhando pelo olho mágico, para ter a alternativa, extrema, de não abrir a porta se algo me desagradasse em sua figura. Para isso serve também a correntinha. Podia, por exemplo, pretextar uma gripe, e desculpar-me por não recebê-lo.
A porta de ferro do elevador, entretanto, ao abrir-se revelou a mais graciosa figura que se pode imaginar, um ser maravilhoso, de uma androginia evidente, cativante, com os olhos de um pequeno fauno, mas esguio, flexível, elegante. Abri a porta imediatamente, antes mesmo que tocasse a campainha.
Linus era o seu nome, que imediatamente me remeteu à arcádica invenção da flauta, na Era de Ouro. Recebi-o de braços abertos em meu coração. Na verdade, abracei-o mesmo, bem à entrada, sob o batente da minha porta. Bem vindo, ser de exceção, bem vindo pequeno fauno!
Os lindos olhos cor de mel do meu hóspede (imediatamente pensei em retê-lo como tal) começaram logo a marejar ao nos fitarmos, e mais nos abraçamos. Certamente minha figura também o surpreendeu e agradou. Sentimo-nos “almas gêmeas” desde o começo, e agora eu o reconhecia... por conferir a sua maravilhosa figura.
Linus quis contar-me a sua vida, mas teve dificuldade em expressar-se, pois o nosso olhar nos trazia a esse presente radioso, do nosso encontro. Não havia mais necessidade de narrativas, entre nós.
Sentindo isso, segurávamos nossas mãos, comovidos, em silêncio.



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Linus agora mora comigo, no meu ateliê. Poucas vezes na vida eu me senti tão segura e... tão à vontade com uma companhia masculina. Masculina? Bem... não é bem o caso. Este pequeno fauno, como gosto de chamá-lo, não é propriamente viril, e sua androginia é o que, na verdade me cativou. Um ser delicado, gracioso, na exata fronteira da estética e dos maneirismos dos dois sexos, produzindo um terceiro. Mas não exagerado e caricatural como estamos acostumados a ver por aí. Ele me comove, com a sua elegância sutil, com seus gestos suaves, que combinam com os meus. E, sobretudo com a sua doçura.
Botei-o para dormir na sala, isto é, no ateliê. Mas o cheiro de tinta me preocupa. Todas as noites, acordo de madrugada e venho observá-lo dormindo, acompanhando a sua respiração, suave, contemplando a sua beleza. Cubro-o quase maternalmente... às vezes descubro-o também, nas noites quentes deste verão, para observar seu corpo semi-nu, procurando descobrir o seu segredo. Sim, porque, por alguma razão, ele ainda não me deu essa intimidade, e estou cada vez mais intrigada. Ele é um companheiro maravilhoso para dividirmos o cotidiano, e estou feliz com a minha decisão. Mas, na verdade, há muito mais por trás do instinto que me fez aproximá-lo de mim, de recebê-lo em meu lar, portanto em minha intimidade. Trata-se de uma enorme atração, anímica e física ao mesmo tempo, que pertence a uma espécie de ancestralidade em minha alma, eu desconfio... Será tudo isso um eufemismo para a palavra amor? É bem possível, sim, eu creio que já amo o meu pequeno hóspede, e isso me faz sentir quase plena, feliz. Por quê digo quase? Porque falta algo, que não consegui realizar. Não consegui transpor uma pequena última barreira que ele interpõe entre nós, talvez deliberadamente. Ainda não o vi completamente nu, e à noite, quando o descubro, é isso, claro, o que estou procurando, tentando advinhá-lo sob a apertada cuequinha que ele não tira para dormir. Talvez ele se sinta inseguro...
Passei, já alguns dias, a desnudar-me, casualmente em sua frente, primeiro os seios, para trocar de blusa ou passar um desodorante, depois totalmente, para entrar no banho enquanto prosseguimos com nossas agradáveis conversas. Logo estava eu a andar nua pela casa toda e a pintar, assim , como sempre fiz, quando estou só. Ele parece encarar isso com uma enorme naturalidade, mas tem a maravilhosa delicadeza de ao mesmo tempo não disfarçar a sua admiração, manifestando-a com belos elogios ao meu corpo, à minha beleza.. Talvez um tanto técnicos, pois não percebi ainda a nota de desejo neles, que eu gostaria, no fundo, de encontrar. Linus se tornou um enigma para mim, e isso suscita minha curiosidade, de uma maneira perigosa, pois tende a se tornar uma obsessão.. Porque esse fauninho não se despe igualmente em minha frente, nem para entrar no banho, fazendo-o somente quando já está no box, fechado. E para dormir, então? Costuma ficar longamente sentado ao meu lado na minha cama, freqüentemente estirando-se, nas nossas conversas deliciosas, e então, sonolentos, ele me beija a testa, ou a face, cobre-me maternalmente, desejando-me bons sonhos, e retira-se para o ateliê para deitar-se. Fico então muito tempo insone, imaginando-o despir-se, e planejando a qualquer momento surpreendê-lo com um pretexto qualquer. Mas... se já sei que ele não se despe! Que devo fazer?
Essa curiosidade, unida, é claro, a uma certa frustração, já está produzindo uma pequena dor, fininha , que tende a crescer.

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Sim, deve tratar-se de um jogo. Linus conseguiu, estou apaixonada pelo meu pequeno fauno, e isso, longe de facilitar as coisas, deixou-me mais inibida para uma abordagem explícita. Nossa linda amizade, que, acredito, realmente existe, coloca mais uma barreira à mudança de timbre que pretendo em nossas relações. Por quê será que o fauninho não me deseja, a mim, ninfa que também me sei deliciosa? (perdoem-me a imodéstia).
Estou ficando exasperada, espero não cair na falta de sutileza da irritabilidade, do ciúme, do despeito, tipicamente femininos. Jurei a mim mesma que jamais cobrarei nada dele, que não o pressionarei, que não me atirarei sobre ele. Mas, ah! Isto está difícil. Esta noite, mais uma vez levantei-me e fui descobri-lo, na esperança de surpreendê-lo finalmente nu. Em vão. Julguei vislumbrar em seus lábios, num relance, sob o feixe de luz da minha pequena lanterna, um suave sorriso de Gioconda, um tanto feminino. Mas não estou certa. Meu desejo já está me pregando peças.
Planejo, então, uma maneira de ver o meu pequeno hóspede nuzinho. Ponho todas as suas cuecas para lavar na máquina, alegando que elas estavam encardidas (confesso que as cheirei, e...), que gosto de zelar pelas nossas roupas e programar as lavagens, etc. Ele fica confuso, um pouco perturbado, tanto mais que dou a ele para dormir esta noite um pijama meu, largo, feminino, muito fácil de despir com seus botõezinhos dos lados. E para a manhã, uma calcinha minha, provisória. Ele parece inseguro, desconfiado, mas não tenho certeza. Esta noite eu o pego.

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Sonhando com a incursão noturna que planejo, esperei por ele, na sua volta do trabalho, que, na verdade, nem sei no que consiste. O que ele faz? No que trabalha, ele, o pequeno fauno? Por incrível que pareça, nunca até agora ocorreu-me estas perguntas. Realmente não devo ser uma guria normal. Bem... nunca quis ser.
Linus chegou, surpreendentemente triste. Atirou sua mochila num canto e abraçou-me com lágrimas nos olhos:
—Alma, minha amiga. Minha doce e querida amiga, devo partir. Amanhã cedo devo ir embora, talvez por muito tempo. Não sei quando a verei novamente. Minha família deu-me um ultimato (ele jamais me falara antes de sua família) e preciso enfrentá-los, para me livrar deles. Eles descobriram onde estou morando, e se eu permanecer aqui, vão incomodá-la, Alma. E isso, eu não poderia suportar, minha amiga. Uma intrusão assim... Quero que você se lembre sempre de mim com agrado, pela nossa linda convivência nestes dias inesquecíveis, os mais felizes da minha vida.
Fiquei desesperada. Soltei um gemido, quase um grito. Agarrei sua linda cabeça, olhando bem dentro dos seus olhos amendoados, e exclamei:
—Linus, não me deixa! Eu te amo, não vês? Eu te amo desde a primeira mensagem, desde o primeiro encontro! Eu não posso mais viver sem ti, meu querido, meu amor! (beijei-o sofregamente na boca, pela primeira vez)—. Quero-te, não percebes? Fica comigo... para sempre!
Surpreso, perturbado, Linus recuou com a mão estendida, como se para evitar que eu o tocasse ainda mais, como se lhe doesse, e disse:
—Alma, Alma, não me peça isso, estou sofrendo demais, você não sabe de nada! Eu... também a amo, eu a adoro. Mas Alma... não podemos, não posso explicar. Não posso explicar!
Linus fez um movimento como se quisesse voltar-se para a porta, fugir. Agarrei-o segurando-o firmemente pela camisa. Gritei-lhe:
—Tu não podes, estás entendendo, é entrar assim na minha vida e deixar-me agora, que estou... a teus pés! (escorreguei pelo seu peito, ajoelhando-me, dramaticamente. Aqui não cabia mais vergonha alguma, eu já lhe dera quase tudo, a visão cotidiana da minha nudez, o meu carinho, o meu desejo insatisfeito... o meu amor. Eu não aceitava perdê-lo!) —Linus fomos tão felizes, apesar de nunca... de não nos tocarmos, meu pequeno fauno! Por quê? Por quê, eu não entendo!
Linus, então, os olhos cheios d’água, levantou-me pelos ombros, pegou-me a mão e puxou-me lenta e solenemente, conduzindo-me ao meu quarto. Colocou-se diante da minha cama, e de pé, pôs-se a despir-se diante de mim, pela primeira vez. Eu o olhava deslumbrada. Ele tirou a camisa, depois a calça, atirando-a para o lado, e afinal, enquanto eu o olhava, fascinada, abaixou a calcinha que eu lhe dera, em substituição. E então... eu vi!
Eu estava diante do Hermafrodita perfeito. Afinal!

O Walhalla de meu pai (crônica de Alma Welt )

 Meu pai tocava maravilhosamente Beethoven, entre outros grandes mestres. Ele dizia que Beethoven era o maior de todos, também pela sua qualidade pianística, e me fazia ver que o piano do Mestre não era percussivo, não martelava, mas trinava como o canto de um pássaro, e isso seria a sua característica mais marcante. Exigia, dizia ele, grande agilidade dos dedos, para “trinar” assim ou “gorjear”, principalmente nas notas altas. O Vati me mostrava , tocando inteiras, a maravilha das sonatas Aurora e Apassionata, que ele me fazia ouvir e ver, como música descritiva mesmo, que eram, e como romântico assumido. Na primeira eu via o sol nascendo no meu pampa e a simples contemplação de sua luz na pradaria em tal glória e magnificência, me fazia chorar de alegria de estar viva e de compreender a beleza do mundo, de maneira consciente, graças ao meu pai, o cirurgião pianista que descobrira a validade de dedicar-se ao piano e à sua filha amada, que era eu, sem sentimento de dever perdido, ou de culpa por não mais exercer a também sagrada missão da medicina. Eu, hoje, olho o piano de meu pai, o Steinway, na biblioteca, silencioso quase sempre, somente dedilhado ocasionalmente por mim, e por Rôdo, mas sem o virtuosismo e esplendor do toque de meu pai, o último grande romântico alemão por estas plagas, e que agora deve estar ao lado de Beethoven., este com sua audição recuperada, discutindo gorjeios de pássaros e pianos. E também de Goethe, os três em animada palestra, na eternidade de seu *Walhalla artístico, que meu pai projetou sempre em sua bela vida, contemplativa, aprazível, sem culpa... __________________________________________ 

 Nota 

 *Walhala – Grande salão, ao ou sala do trono do deus Odin, da antiga mitologia germânica e dos Vikings escandinavos, em que os guerreiros renascidos como tal na eternidade, por prêmio de bravura, reuniam-se para planejar ou comemorar com as Walkírias ( formosas deusas guerreiras) em grandes orgias, as vitórias nas infinitas batalhas da imortalidade gloriosa. Alma imagina um Walhala dos grandes artistas, verdadeiros heróis da Arte, que ali se reuniriam para palestrar em alegre e eterno convívio. (Lucia Welt)

A guria do lago

(crônica de Alma Welt )

Durante o verão eu costumo ir nadar muitas vezes no poço da cascata de nossa estância, local encantado junto com o bosque, o jardim e a pradaria, enfim, todo o cenário da minha infância, que inclui o casarão, naturalmente, e que eu chamo de meu Pampa.
E tenho o hábito desde guriazinha, na verdade, de despir-me completamente, de banhar-me nua nessas águas límpidas, cristalinas e calmas, que somente se agitam no sopé da cascata, local todo ele cercado de pedras de todos os tamanhos, e de samambaias, líquens, e plantas belíssimas. Ali os pássaros se banham, e as borboletas adejam, juntando-se no solo de uma praínha, cuja areia dourada deve possuir alguma substancia salina que as atrai. Foi ali que ocorreu fatos que tiro de um lugar especial do coração, já que não posso confiar na memória infiltrada de sonho.
Banhando-me sempre nua, nunca pude conceber outra maneira de mergulhar nessas águas translúcidas, que me fizeram ver sua magia, malgrado um certo acidente que contornei, apesar de tudo, para não considerar-me uma vítima. Não falarei mais daquilo.

Uma linda manhã, dirigi-me para o poço, fruindo todas as impressões desde o levantar da cama, o lindo caminho, e a chegada no maravilhoso local, joia desta estância, desta região. Logo após mergulhar nas águas frescas, deliciosas, cheias de uma energia telúrica (que me mantêm com o aspecto dos meus vinte anos pelo menos), ao emergir resfolegando dei de cara com uma linda figura sentada sobre a pedra grande, arredondada, em que costumo deitar-me para secar, de olhos fechados, para ouvir os sons todos, em delicada sintonia.

Tratava-se de uma guria que eu nunca vira antes. Nua também, como eu, mas morena, luzidia, de longos cabelos negros escorridos, de maravilhosa beleza. Como eu nunca a tinha visto antes, por ali, ou em qualquer outro lugar?

Aproximei-me fascinada, enquanto ela sorria para mim, esperando-me. Erguemos nossos braços lenta e simultaneamente e tocamo-nos no rosto e no seio. Sempre sorrindo, uma para outra. Eu tinha a impressão de estar vendo meu reflexo, em outra luz, em outro tom, não sei, um sensação misteriosa, que me assustaria se não fosse acompanhada pelo tato real, sentido em meus dedos em minha palma, da tepidez daquele belíssimo corpo de ninfeta morena. Não me ocorreu perguntar-lhe nada, nem sequer um previsível “quem és?”
A guria mergulhou e nadou comigo toda a manhã, me pareceu, rindo, com gargalhadinhas cristalinas, borrifando água uma na outra, num indizível prazer lúdico e um tanto sensual, cheio de toques furtivos ou casuais, e... arrepios. Não me recordo de nada mais encantador e prazeroso na minha vida do que aquela manhã pueril, inocente e erótica a um tempo.
Então subitamente ela perturbou-se, ficou séria, parecendo auscultar algo mais dentro de si do que fora, deu-me as costas saindo da água, pisando a areia da prainha e penetrando na mata sem olhar para trás , nua como estava. Eu fiquei espantada, estranhando aquilo, principalmente por não vê-la vestir-se, mas logo imaginando que ela estivesse acampada no bosque, nalguma clareira, onde alguém a esperava, que sei eu? Logo me veio uma sensação esquisita, e fiquei triste e um pouco frustrada, por não ter trocado uma palavra sequer com a guria, não ter ouvido sua voz, e sabido seu nome. Quem era ela?

Não mais a encontrei, por mais que voltasse ao poço da cascata todos os dias. Começou a me bater uma espécie de nostalgia, de saudade, uma sensação de irrealidade frustrante. Comecei a duvidar do acontecido e a cogitar que pudesse ter sido apenas um sonho matinal encantador, fruto da minha necessidade de ter uma irmã de minha idade, com quem pudesse me identificar, já que Rôdo, meu irmão e companheiro era o oposto complementar, o bichinho macho que me atraía e fascinava como uma amostra atenuada do brutal universo masculino que me rodeava, apesar das minhas duas irmãs, mais velhas.
Um dia fui convidada por meu pai a acompanhá-lo na visita a um vizinho estancieiro que eu não conhecia e de quem somente ouvira falar como um homem que meu pai apreciava e de cuja mulher tratara e até fizera o parto, no tempo em que ainda exercia a medicina.
Acompanhei-o por natural curiosidade e também porque não perdia oportunidade de estar com meu pai, e aprender a vida com ele, conhecer outras pessoas... reais.

No casarão da estância do nosso vizinho, que me pareceu mais velho e mais decadente ainda do que o nosso, eu olhava para todos os lados, curiosa, e esperando na verdade encontrar algo que eu não sabia o quê, talvez uns piás, ou uma guria, os filhos e netos do estancieiro. Afinal, enquanto meu pai tomava um chimarrão da hospitalidade com o seu compadre de imensos bigodes, eu notei um porta-retratos em cima da lareira e fui estranhamente atraída para ele, levantei-me do sofá, fui até ele e peguei-o nas mãos. Era ela! A guria do lago! Ela ali estava, linda, igual eu a vira, mas vestida de chinoca para um baile, e radiante, com tranças com fitas dos dois lados da cabeça. Quase deixei cair o retrato, emocionada, e sem refletir interrompi os adultos perguntando: Quem é ela? Senhor, onde está ela! Quero vê-la, ela está aqui? Eu apontava o retrato e virava-o para o meu hospedeiro, como se fosse preciso...
Meu pai franziu o cenho, sério, e olhou o seu compadre que tomou-me o retrato das mãos, olhando-o tristemente, acariciando-o e dizendo:
Esta é Larinha, que tu fizeste o parto, trinta anos atrás, mais ou menos, não é Werner? A querida Lara, que falta nos faz... aquilo matou a minha mulher. E quase a mim também. Mas não falemos mais nisso. Vocês almoçam conosco?

FIM




O escultor

(Dos Contos Secretos, de Alma Welt )


Recebi um convite para a abertura de uma exposição de um escultor , cujo catálogo, pela beleza das peças reproduzidas, me impressionou. Há muito tempo eu não via esculturas figurativas que fossem tão convincentes. Desde Rodin, eu acho. Sem ser acadêmico, embora ligeiramente naturalista, tem um certo grau, sutil, de estilização pessoal, cheio de sensualidade, e até mesmo erotismo, que me encantou. Algumas de suas peças, realmente ousadas, me fascinaram: ele, assim como o grande escultor francês do passado, não teme expor a intimidade de seus modelos, como fazem, hipocritamente, alguns artistas. Mas é claro que foi, sobretudo, pela qualidade técnica e pelo superior plano estético, cheio de uma força madura, não simplesmente agressiva, que ele me aliciou, me cativou com a sua arte. Eu quis, imediatamente, conhecer esse escultor, de quem, no entanto, não revelarei o verdadeiro nome, aqui, neste relato, por razões óbvias.
Na noite da inauguração, no museu, lá estava eu, vestida com o que tinha de melhor, mas sem maquiagem, pois, como dizem alguns, já sou suficientemente colorida, com este contraste entre meus cabelos louros arruivados, minha pele alvíssima, e meus olhos verdes. Saliento isso, pois foi o que chamou a atenção do meu escultor, com sua noite cheia de mulheres belíssimas, que o assediavam nada sutilmente.
Cheguei, chamando atenção, mas mantive-me discreta, observando, encantada, as maravilhas do escultor, que realmente me atraíam por elas mesmas. Eu tinha vontade de tocá-las, e cheguei mesmo a fazê-lo, para sentir as formas deliciosas de uma figura de adolescente, de suave sensualidade. Eu não queria aproximar-me do escultor, tomando a iniciativa. Esperava que ele me descobrisse ali no meio de todas aquelas mulheres, e isso realmente aconteceu. Senti uma forte e grande mão, poderosa, abarcando meu braço fino e roliço, vinda de trás e abaixei a cabeça meio de lado para olhar essa mão, mas já esperando que fosse a dele, o grande escultor. Virei e defrontei-me com um homem alto, maduro, belo, de têmporas grisalhas e nariz enorme, de corte italiano.
Máximo (eu o chamarei assim), olhava-me fundo nos olhos, dizendo:
–“Signorina, permita-me que eu me apresente. Sou o escultor dessa peça que você acariciou de maneira tão encantadora. Peço-lhe que imagine as suas próprias formas, sua própria beleza magnífica numa peça que poderíamos fazer. Deixe-me esculpi-la, signorina, embora já seja uma escultura viva, e ao mesmo tempo uma pintura.”
Fiquei encantada com a delicadeza, clareza e honestidade de suas palavras, ao mesmo tempo galantes. “Esse homem é sincero, eu pensei, embora nem saiba que eu aceito, perfeitamente, segundas intenções, pois sou tudo, menos uma hipócrita, e conheço o desejo dominante dos homens, sua contida luxúria, geralmente disfarçada em público. Sorri e estendi-lhe a mão, de uma maneira um pouco antiga, démodeé, que ele não se apressou em beijar, mantendo os olhos fixos nos meus, de maneira hipnótica.
Começamos um intenso colóquio de artistas, plenos, assumidos, e logo estávamos de mãos dadas. Outras mulheres olhavam-me com ódio, algumas com curiosidade. Logo começaram a puxá-lo, para afastá-lo de mim, chamando sua atenção com elogios cheios de exclamações, e para posarem para o fotógrafo ao lado dele. Ficaram mais furiosas ainda, eu percebi, quando o fotógrafo foi buscar-me pela mão, ao me afastar discretamente, e fez-me voltar para o lado do escultor, que me abraçou o ombro para a pose da fotografia, enquanto eu sentia o calor de sua mão quase queimar meu ombro nu. Fiquei muito tempo com aquela sensação no meu ombro, que precisei acariciar, para neutralizar, a quase queimadura, que me arrepiava. Resolvi retirar-me logo, o que fiz, como uma fuga, mesmo, sem despedir-me do escultor. Eu temia me expor a um vexame. Perdera a segurança. Eu me sentia perdida de atração por aquele homem, por aquele artista. Tive que bater em retirada.
Nos dias seguintes, quando me lembrava dos lances daquela noite, a sensação de suave queimadura voltava a aparecer no meu ombro. E lembrei-me do mito de Psiqué, em que o azeite da candeia ferira o ombro de Eros fazendo-o adoecer de amor. Sentia-me como uma Psiqué às avessas, atingida por minha vez, pelo deus alado, de formas escultóricas. Mas um Eros maduro, em sua plena força de homem, e sem asas, bem pousado na terra, onde me queria também, no máximo sobre um pedestal de bronze ou de granito. Eu ansiava posar para ele. Ser esculpida por ele. Eu esperava esperançosamente seu telefonema, embora eu não tivesse tido tempo de deixar-lhe o meu número. Mas eu sabia que e isso não era problema. Eu não perdera um sapatinho de cristal, retirára-me bem antes da meia-noite, e tinha ido à pé, não montada numa abóbora. Mas ele se informaria. Ele encontraria a pista da Alma. Da pintora e poeta Alma Welt.
Isso aconteceu no terceiro dia, afinal. O telefone soou no ateliê, e era ele. Eu sabia! Com sua voz grave, macia, ligeiro sotaque italiano, charmoso, ele me envolveu, e a sensação de calor, vinda do ombro, tomou meu corpo todo, principalmente ali em baixo, obrigando-me a acariciar-me. Confesso que, ao desligar, tive que masturbar-me demoradamente até atingir um orgasmo imperfeito, pois meus braços, afinal, permaneciam vazios.
Senti, depois desse telefonema que perdera o controle de mim, que se o meu escultor demorasse, eu iria até ele, submissa, cativa, e me ofereceria como sua escrava. Eu sou assim. Tenho um tal orgulho e consciência de meus dons, que oferecendo-me inteira a um amor, me sinto maior, mais grandiosa, magnânima, como uma rainha dadivosa ou mártir. É como se oferecendo meu corpo, dessa maneira extremada, fizesse uma dádiva preciosa, a suprema dádiva. Nisso sou antiga: trago uma carga romântica comigo da qual nunca quis me desvenciliar, e por isso, há algum tempo, caí sob suspeição das feministas, acusada (pasmem) injustamente de “machismo”!
Sim, eu ansiava pelo meu príncipe escultor, que afinal, no dia e hora marcados, adentrou o meu estúdio, e me encontrou... nua, quero dizer... .metaforicamente falando, o que é a mesma coisa!
Eu estava toda atrapalhada diante do belo italiano, tentando preparar-lhe um café, do qual ele não fazia menor questão, mas que teve a serventia de me dar tempo de acalmar as batidas do meu coração, e a ele, de observar-me atentamente, devorando-me com os olhos, que eu sentia até pelas minhas costas, atarefada diante da cafeteira, à pia da cozinha americana. Afinal, servido, ele tirou das minhas mãos a pequena xícara que eu lhe oferecia. Pousou-a, mais afastada, e tomando minha cintura entre suas mãos enormes, que praticamente a abarcaram, ergueu-me sobre a pia da cozinha e levantando minha saia, enquanto tirava, habilmente seu mastro pela braguilha aberta do jeans, abrindo minhas pernas encostou sua imensa glande na porta da minha vulva que o acolheu, palpitante, agradecida. Ele me penetrou profundamente enquanto eu soltava um suspiro profundo e doce, que o comoveu, eu percebi, apesar de tudo, de estar quase desfalecendo, mas com minhas pernas erguidas abarcando sua cintura. Ele explodiria dentro de mim seu jorro branco, leitoso, e não me perguntem jamais pela camisinha, eu nem poderia pensar nisso: queria ser preenchida por esse homem, pelos sumos desse homem, e ficar escorrendo dele, para sempre, essa é que é a verdade!
A seguir comigo literalmente enganchada nele, carregada no seu colo, sem sair de dentro de mim, ele giraría eufórico pelo ateliê, em meio às telas, ambos às gargalhadas, antes de, orientado por mim, naquela espiral, pelas minhas mãos que agarravam portas e batentes, corrigir o seu rumo em direção ao quarto... ao nosso leito!

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Acordei com o Máximo assobiando na cozinha, feliz, preparando o café que, agora sim, tomaríamos juntos. Ele trouxe uma bandeja completa, e pousando-a no chão, abraçou-me, nua que ainda estava, com uma saudação matinal em italiano, que mais me enterneceu. Abracei-o, puxando-o sobre mim, com a mão direita colhendo e orientando seu pênis para dentro de mim, mais uma vez. Esse homem forte, esse imenso macho iria explodir, mais uma vez, de prazer, de gozo extremo, e estaria aprisionado, eu sabia, por muito tempo, talvez para sempre. Minha feminilidade, eu a sentia primitiva, arcaica, primordial, e não hesitaria em exaurir o meu homem até fragilizá-lo entre minhas mãos, como um menino, como um bebê que eu então acolheria no meu útero, para recomeçar o ciclo perene, o eterno retorno.
Mas, afinal as coisas não ocorreriam assim. Eu não seria pra sempre a sua mulher, ele não me fecundaria apesar de plena de seu branco sumo, abundante, que escorria sobre o meu leito saturado de nossos aromas. Mas devo descrever pelo menos a nossa primeira sessão de pose e escultura: eu nua, gloriosamente nua, em minha alvura extrema, como um mármore de Carrara vivo, para ser transformado em dourado bronze, como ele me projetava em sua imaginação. Mas antes de começar a moldar a argila, ele precisaria desenhar-me cem vezes, e ele o fazia apalpando meu corpo, avidamente, como se moldando-o entre suas mãos que acompanhavam minhas curvas, sofregamente, tateando minhas reentrâncias, enquanto eu estremecia de surpresa e de prazer. Acabávamos rolando pelo assoalho do ateliê e a obra era adiada, mais uma vez. Começava a desconfiar que ela nunca começaria, ou nunca ficaria pronta, não naquele nosso ciclo de vida, pelo menos. E eu não me importava. O grande escultor me amava, ou pelo menos estava apaixonado por mim, e me moldava entre as suas potentes mãos, pelo menos para as carícias luxuriosas, que me encantavam, que me arrebatavam, na verdade. Ele não estava fadado a realizar o simulacro ideal do meu corpo, moldado pelo divino, talvez ciumento de sua obra. Talvez a um outro escultor menos dotado seria dada a permissão.
E ele, Máximo, o escultor, o grande artista, partiria um dia, há um só tempo saciado e frustrado, abandonando a mim e sua obra mal começada, que se esboroaria aos poucos em meio às minhas telas.


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11/05/2005

O Seminarista

(dos Contos Secretos da Alma, de Alma Welt)



Rôdo trouxe um jovem amigo seu, seminarista, para passar umas férias em nossa estância. Meu irmão, sempre surpreendente, tem amigos de todos os tipos, e de todas as profissões. Mas eu não esperava isto: um seminarista, um jovem religioso, segundo ele com autêntica vocação religiosa.
André, o jovem, é quase belo, com um perfil ascético, e olhos sonhadores, místicos. Tenho conversado com ele sobre a existência de Deus, sua sabedoria e amor, que é um ponto pacífico no nosso diálogo. Mas... a existência ou não do Diabo, produziu um pequeno desacordo entre nós. André garante que o diabo existe e tem o poder de tentar-nos... e perder-nos. Que muitas almas foram realmente para o Inferno, irremediavelmente, não tendo se arrependido em vida e renunciado ao serviço do Cujo. Confesso que a conversa me perturbou, e depois meu sono já não foi o mesmo, e tive uns pequenos cauchemars Tenho muito medo de ter medo, e quando caio nesse círculo vicioso, posso perder a paz por uma semana. Mas não sou uma criatura covarde, longe disso. Eu sempre reajo, no final. A verdade é que sou influenciável, quero dizer, frágil e dependente demais do amor alheio. É interessante observar que todos os artistas são assim. Os grandes foram assim, com exceção do maior de todos, Leonardo da Vinci, que ao que parece, pairava acima da maioria das paixões humanas, salvo o sonho de voar, literalmente, com asas de pássaro.
André tem me procurado para continuar a nossa conversa sobre o Cujo, mas para mim basta. Prefiro não falar dele, pois temo que isso possa, de algum modo, invoca-lo, pois os pesadelos me deram uma amostra disso. Ontem, porém, André cercou-me na varanda, e disse-me:
—Alma, se quiseres, posso provar-te que o Diabo existe, e está em toda parte, bastado que o chamemos para ele se por ao nosso serviço, cobrando. é claro, depois, a nossa alma.
–André—eu disse—sei disso, mas ele pertence ao lado escuro da alma, “ele” é só isso, a sombra da alma, que dorme no escuro, e não deve ser despertada. É o lado arcaico, imemorial. O instinto primal, destrutivo, que nasce com o primeiro vagido, junto com a pulsão construtiva de vida, de amor. Por quê queres invocá-lo, se nem sequer estamos acuados, em perigo, ou em crise?
—Alma, se tu o avistares, como posso demonstrá-lo esta noite, no teu pomar, terás a prova do seu contrário, da existência material e espiritual do próprio Deus, pelo seu oposto. Queres experimentar? Ousa! Não te arrependerás!
—André— eu disse—recuso-me. Acredito em ti, e posso perceber, agora, claramente que ele existe. Ele está certamente a me tentar através de ti, e por isso quero que desistas, e deixes a minha casa.. Não quero mais a tua presença aqui entre nós, nesta estância, pois “aquele” está claramente servindo-se de ti. E se tu percebes ou não, é irrelevante, pois igualmente perigoso. Não mereces mais a minha confiança, pela tua proposta, tua imprudência ou maldade. Vai-te, pois, vou pedir a Rôdo que te leve à estação agora mesmo, e não ouse propôr a mesma coisa ao meu irmão.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

O Vizinho

(das Crônicas da Alma, de Alma Welt)

Tenho estado muito ativa, pintando o dia inteiro no ateliê, e ainda escrevendo nos intervalos de secagem ou de descanso. Poesias e contos. Sinto-me no auge das minhas forças criativas, e agradeço aos meus deuses por isso. Entretanto, falta-me alguma coisa, e aquela dorzinha, de solidão, insiste em se imiscuir na minha felicidade criativa. Preciso de um amor.

Foi tomar consciência disso, e a campainha do ateliê soar. Abro a porta, um tanto eufórica com a perspectiva de um contato humano, qualquer que seja e... me surpreendo com a agradável figura com que me deparo frente a minha porta escancarada. Ele sorri, percebendo logo a minha receptividade, estranha nesta cidade grande. Nesta São Paulo, desvairada e cruel.

Estendo a mão ao belo jovem que vem pedir-me uma tesoura emprestada, pois acabou de mudar-se para o apartamento ao lado que esteve vago muitos meses. Convido-o a entrar, e a sentar-se, de uma maneira talvez precipitada, pois afinal, trata-se de um completo desconhecido, apesar do belo e agradável semblante descontraído. Acreditei imediatamente numa surpreendente afinidade, num encontro providencial, ingênua ou boba que sou. Tenho o dom de iludir-me, embora nunca me arrependa por isso, dado o prazer que fruo com a minha própria imaginação, que essa sim, nunca me decepciona, pois me entrega os prazeres e as emoções, adiantado, de avanço, sem fiador. E como pretendo viver num perpétuo presente...

Entabulo uma conversação que se pretende natural, sobre a sua recente mudança e instalação, os percalços da adaptação ao novo espaço, etc. A atração que o rapaz (vou chamá-lo Tiago), exerce sobre mim, parece ser recíproca, embora eu saiba que da parte dos homens isso é comum, dada a minha beleza e natural, mas discreta, sensualidade (quero crer). “Por quê então (o leitor perguntaria), freqüentemente te encontras solitária, ó Alma?” Porque sou seletiva, apesar de tudo, e por isso não promíscua como já me acusaram alguns leitores.

Mas volto à minha visita, o jovem Tiago, que me devora docemente com os olhos enquanto vejo passar por seu semblante toda fantasia natural, do desejo que a minha figura desperta, evidentemente.


Decido, pois, subitamente: vou entregar-me a este jovem, sem mais delongas, se ele quiser e souber tomar-me. Incondicionalmente. Não perguntarei pela sua vida pregressa, pelos seus dons, talentos e mesmo profissão. Evitarei esses assuntos. Ou melhor, os proibirei na nossa relação. Sim, será mais interessante, mais misterioso.

De repente, ele fica confuso, hesita em meio a nossa conversa, como se um pensamento, uma interferência, ocorresse no fluxo de sua mente, nesse nosso agradável bate papo. Terá ele captado as minhas intenções subjacentes? Terei sido pouco sutil, ou ostensiva? Talvez ele tenha se assustado...

Tiago levanta-se, estende-me a mão e encaminha-se para a porta. Lembro-me da tesoura que ele parece ter esquecido totalmente, e com uma risadinha faço-lhe um sinal e corro a buscá-la no quarto. Volto numa corridinha e entrego-lhe, já meio constrangida com meu próprio comportamento atrapalhado e eufórico. Ele sai, sorrindo, meio encabulado, e eu fecho porta, rapidamente, como para me compor, ou redimir-me de tanta atrapalhação, como uma guria, adolescente, que na verdade ainda sou, em minha alma.

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Passaram-se dois dias, e eu tenho pensado constantemente em Tiago, esperando ardentemente que ele volte a bater em minha porta. Se ele não vier, acabarei por tomar esta iniciativa, “dar o troco”, ir buscar a tesoura, aliás, excelente pretexto: ele já devia ter-me devolvido aquela bendita. Sim, vou lá, ele que me espere, o furacão “La Welt” está na área, ele que se cuide!

Toco-lhe a campainha. Nada. Insisto, mas realmente não tem ninguém no apê. Volto e ligo o interfone para a portaria, e pergunto ao seu Ermírio pelo meu vizinho. Este me diz que o rapaz sofreu um acidente e está hospitalizado. Meu coração apertou-se, fiquei muda por uns segundos, chocada, e então perguntei o nome do hospital. Seu Ermírio revelou-o, mas adiantou que não era preciso mais visitas, pois o rapaz já teve alta e está vindo hoje à tarde, daqui a pouco, para casa, isto é, o seu apartamento. Agradeço e desligo, pensativa... e aliviada. Ele parece ser tão sozinho! Sua família é do interior, vou cuidar dele. Vou mimá-lo na sua recuperação. Ele precisará de mim, sua vizinha benevolente, dedicada, desvelada, que serei.
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Esperei muitas horas. Afinal a campainha tocou. Corri a abrir, e topei com a figura consternadora de Tiago, desfigurado, com uma grande atadura no nariz e os olhos roxos, inchados, um deles completamente fechado, hematomas por todo o lado. Assustei-me, dei um gritinho e levei a mão à boca, mas, em seguida, puxei-o para dentro pela mão, e fi-lo sentar-se.

Tiago me conta como foi atropelado ao atravessar a rua fora da faixa, entre os carros parados, e foi colhido por uma moto que vinha em velocidade, singrando os corredores formados pelos veículos.Foi atirado longe, e acordou no hospital com o nariz quebrado, suspeita de concussão cerebral, mas nenhum outro osso quebrado, surpreendentemente, tendo alta depois de dois dias de observação.

Fiquei ali parada em sua frente, condoída, desolada, e depois lhe ofereci um chá que ele recusou, aceitando então um café. Queria logo ir para sua casa, para trabalhar no computador, pois estava com o serviço atrasado. Deixei-o ir. Não havia muito a fazer, apenas reiterei os meus préstimos. Nem perguntei da tesoura.

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No dia seguinte, tendo esperado que ele tivesse dormido bastante, lá pelas onze horas, voltei a tocar sua campainha. Nada, ele vai dormir até tarde, pensei. Não devo incomodá-lo. Mas, voltando, vou direto ao interfone para perguntar pelo meu vizinho. O porteiro me revela que Tiago, bem cedo, esta manhã, saiu com uma mala, dizendo viajar para a casa dos seus pais no interior. Suspirei, de algum modo aliviada. Pobre rapaz! Pelo menos terá uma mãe para cuidar dele, já que não quis os meus préstimos, meu carinho.

Ponho-me a pintar, depois de um longo suspiro.
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Passaram-se mais três dias. Não deixei de pensar no meu desastrado vizinho, o amor que não aconteceu, entre nós. Aquilo que podia ter sido. Esses pensamentos me levaram a filosofar um pouco, sobre a desconcertante autonomia que o destino parece ter, às vezes, em contradição com a teoria da auto-determinação, do livre arbítrio, etc. Essa oposição de dois conceitos que permeiam nossa vida e constroem nosso roteiro, nem só escolhido, nem só aleatório, é um dos mistérios da existência humana. Qual o verdadeiro mecanismo do Destino? A Ironia sagrada de Deus? Dos deuses?

Afinal, impacientei-me, e mais uma vez interfono ao meu porteiro:

—Bom dia, Seu Ermírio. O senhor tem notícias do Tiago, meu vizinho?

— Ah! Dona Alma, eu ia mesmo levar-lhe a notícia. Parece que o rapaz morreu, lá na terra dele. Um parente ligou, dizendo que o rapaz se sentiu mal, e morreu subitamente. O enterro vai ser lá mesmo, claro. Mas ele mandou avisar o condomínio e convidar todos para a missa de sétimo dia.

Deixei cair o fone, a vista escureceu-me por um segundo, tive de apoiar-me na pia da cozinha. Depois uma dor, uma dor aguda no peito, uma angústia me tomou. Sentei no chão da cozinha, em estado de choque por muito tempo.

Então explodi, e chorei, chorei, meu patético amor perdido, meu menino da tesoura, meu malfadado amor... aquele que nunca tive.

07/06/2006

O violeiro

(dos Contos Secretos de Alma Welt)


Eu precisava encontrar um violeiro que me acompanhasse num recital de meus poemas que pretendia fazer. Mas a verdade é que não o encontrava do meu gosto, até porque o imaginava belo, jovem, mais ou menos como o Almir Sater, com aqueles olhos verdes, como os meus.
Então, depois de anúncios, contatos, decepções, surgiu um jovem violeiro, erudito, capaz de tocar tudo, até Villa-Lobos e Bach, bem como as toadas dos nossos sertões, da caatinga nordestina ao pampa. Esse rapaz vive para o seu instrumento e parece não se importar com mais nada, a ponto de nem sequer perguntar quanto pretendo pagar pelo seu virtuosismo, ou dar ele mesmo o seu preço. Recebo-o todos os dias, para os ensaios, e declamo os meus poemas com meu sotaque gaúcho, que não me parece ideal para o meu próprio lirismo. Mas ele parece encantado comigo e minha poesia, e não serei hipócrita contigo, leitor, de declarar-me surpresa com algo que tu sabes, que estou deveras acostumada. Ser cortejada, cantada, assediada, faz parte da rotina da minha vida, desde a adolescência. Não se trata disso, portanto, mas do meus impulsos e desejos, a que obedeço, com o risco, sempre, de ser mal entendida até mesmo por ti, ó leitor inconstante. Ser-me-á leal? Não me detratarás por aí? Então continuo:
Aristeu Magno, o violeiro, já não consegue desviar os olhos de mim, e toca sem parar, como se fosse seu discurso amoroso, sua “charla”, que derrama sobre mim, para enredar-me, para capturar-me com seu único poder, o musical. Ele parece acreditar na eloqüência amorosa do som que derrama de sua viola, e com certa razão, pois já estou comovida e acreditando no merecimento de um prêmio por parte deste jovem filho de Orfeu.
Pára, leitor, não me reprima. Não tentes deter-me. Sim, vou dar-me a ele, o violeiro, serei a sua viola por uma noite ao menos, para ele tanger-me com seus dedos hábeis, com sua empunhadura forte, com as batidas rítimicas que lhe aprouver. Assim, transformar-me-ei na própria música em suas mãos, não somente uma musa casual, de passagem. Ele saberá dar valor ao contraponto que farei, à harmonia que faremos numa noite de festa , no terreiro do meu leito.
Então, Aristeu veio mais uma vez, ensaiou até o momento em que retirei a viola de suas mãos, e o conduzi ao meu quarto, semeando no caminho o assoalho do corredor com as peças de roupas que tirávamos caminhando.
Ali diante do leito, quase nus, olhávamos nossos corpos, examinando nossos detalhes, jovens , exuberantes, e atiramos para cima a última peça antes de mergulharmos com gritos de alegria, um no outro, como já o fazíamos em nossa música e poesia..

O resto é música.

10/08/2006

Nossa verdadeira vida

(dos Contos Secretos, de Alma Welt)

Acaba de ocorrer-me que a nossa vida compõe-se de extratos superpostos, com maior ou menor representatividade, sendo que o plano sexual, representa a parcela mais sugestiva, o extrato superior, o mais significativo de nossa existência. Bem, nós sabemos que Freud já dizia isso com outras palavras. Mas parece que essa evidência continua a ser negada ou abafada até hoje, nesse começo de milênio, como se a sexualidade fosse uma potencialidade menor, ou obscura, que deve permanecer escondida, marginalizada em nossa vida. E nisso consiste a maior hipocrisia do ser humano.
O poderoso instinto de procriar se manifesta acompanhado da pulsão do prazer, um profundo prazer, cuja permanente lembrança se sobrepõe a tudo, por isso há quem tenha o sexo como uma idéia fixa, subjacente a tudo, durante todos os dias de sua vida. Isso, na maioria das pessoas, a julgar pelos estudos modernos sobre a sexualidade. No entanto, há quem negue essa verdadeira hegemonia do sexo, em nossas vidas, em nome de uma suposta “espiritualidade”.
Vocês, meus queridos leitores, já notaram a importância que atribuo ao sexo, como ponto de partida de todas as minhas experiências relevantes. O desejo. Motivação e porto de chegada de tudo, e tema básico ou residual de todas as minhas narrativas e poemas. Não preciso, evidentemente, justificar-me, a essa altura da minha obra, tão natural e espontânea em mim. Entretanto, acabo de ouvir algo desagradável, da parte de uma senhora de idade, bastante culta, que, não por acaso, e surpreendentemente, leu alguns dos meus contos. Ela disse: “A Alma tem, o que, no meu tempo, chamávamos de “furor uterino”. Trata-se de uma ninfomaníaca”. Fiquei, a princípio, chocada com essa observação, sentindo-me, no mínimo injustiçada ou incompreendida. Mas, a seguir, olhando bem nos olhos da tal senhora, não vi maldade nela, ou censura. Mas, sim, um risinho maroto. Percebi, então, que o meu texto levanta, talvez, nas mulheres principalmente, sentimentos ambíguos, contraditórios, despertando-as para a sua própria sexualidade, para os seus próprios “segredos”, tão recalcados. .
Aqui, no meu ateliê paulistano, que nos últimos anos eu sinto como uma base, de onde a minha imaginação parte, na poesia, no conto e... nas minhas memórias amorosas, muito pouco do que narro vem da pura imaginação. Por incrível que pareça, sou uma cronista de mim mesma, do meu próprio cotidiano. Se a tônica dos meus textos é a narrativa amorosa e... erótica, é porque esse é o verdadeiro território da minha alma: a procura incessante do amor, e do prazer. Dito isso, passo a narrar a minha última aventura.
Espero a visita de uma senhora, que telefonou marcando hora para hoje, a partir das três. Ela se diz uma grande admiradora de meus poemas, e quer conhecer-me. É um fato inusitado, raro mesmo. Em geral sou procurada em meu ateliê por conta de minhas pinturas. Todavia, lembro-me agora do desastrado encontro do poeta Umberto, sonetista daquela malfadada “Confraria dos Poetas do Soneto Triste”, da qual contei a patética estória no conto homônimo, dos meus “Contos da Alma”, já publicado em livro.
A doutora Lídia foi tão simpática e reverente ao telefone, que aceitei recebê-la, embora um tanto receosa de me aborrecer, por conta de mal-entendidos. Será que essa senhora leu realmente a minha obra poética, tão confessional que me faz evitar palestras e reuniões sociais, onde posso ser confrontada pelos leitores com perguntas indiscretas no plano pessoal, quando feitas diretamente, pessoalmente? Sempre me refiro aos meus “fiéis leitores sem rosto”, que quero manter assim, anódinos, como sombras servidoras do meu ego, um tanto narcisista, reconheço. Essa maneira de me colocar, sem peias, de maneira total e desabrida, no papel, funciona como uma análise permanente, senão uma terapia. Repasso os meus amores, e meus prazeres, minhas delícias mesmo, que incluem detalhes escabrosos para alguns moralistas. Ali, confesso até mesmo a nota de masoquismo de minha personalidade sexual, que assim assumo e administro, para que não me tome completamente e... me destrua, como ocorreu, por exemplo com aquelas personagens do magnífico filme japonês “ O Império dos Sentidos”.
O interfone soou, Lídia afinal chegou, subiu, tocou a campainha, abri, e me encantou. Deixei de lado imediatamente o “doutora”, como vocês perceberam, diante da encantadora figura à minha porta. Uma moça madura, de quarenta e poucos anos, de rosto interessantíssimo, talvez não bonita, mas atraente e com expressão muito inteligente. Abriu os braços, emocionada, e me abraçou, como se fôssemos velhas amigas, que há muito não nos víssemos. Segurou-me muito tempo, apertada a si, a ponto de eu estranhar, ainda ali na soleira, sob a porta. Então peguei-a pela mão e introduzi-a na grande sala-ateliê enquanto reparava no seu olhar deslumbrado, brilhante de emoção. Seu seio arfava, comovida e grata por estar ali, e de ter-me abraçado, de estar com sua mão na minha. Por minha vez, comovi-me também e abracei-a mais uma vez. Depois fi-la sentar-se, e olhos nos olhos, ela me contou sua estória:
“Alma, você não imagina o que foi a descoberta de sua obra poética, em minha vida. Sou professora de literatura e vivi sempre para os estudos, cultuando os autores clássicos e dedicada à orientação do gosto dos meus alunos na Faculdade de Letras, da USP. Mas ao descobrir na Livraria da Vila, o seu Kit de poemas, aquela graciosa caixinha recheada de maravilhas, com aqueles desenhos lindos do Guilherme de Faria, do qual, por sinal, eu tenho em minha parede, há muitos anos, uma litografia, eu comecei a folhear ali mesmo os livrinhos, e percebi estar diante de uma poetisa lírica de grande estro, e que evita metáforas e imagens artificiais, usando uma linguagem quase coloquial, embora culta, que me encantou. Lembrei-me do estilo de Withman, embora o seu universo seja diferente do dele. Você é talvez mais romântica, e ao mesmo tempo, erótica, o que me parece uma conjunção rara. Mas o timbre de sua expressão poética bateu-me na alma, como se fosse eu mesma, que dissesse aquelas coisas. Decidi imediatamente, ali mesmo, que devia conhecê-la, e me tornar sua amiga e divulgadora, já que você está sendo publicada de uma forma artesanal, encantadora, mas muito rarefeita em termos de público, me parece.”
Ela falou tudo isso muito depressa, devido à sua excitação, segurando a minha mão nas suas e devorando-me com seus grandes olhos cor de mel. Percebi que seu olhar ia dos meus olhos... para os meus lábios. De repente ela parou, arfando, e disse:
—Ah! meu Deus! Ainda por cima, você uma mulher linda! Eu não esperava isso, confesso. Pensava em você de uma maneira, digamos, mais abstrata. Como a poetisa maior, que eu descobrira, por acaso. Coisa raríssima, pois não entendo por quê não saiu ainda nenhum artigo sobre a sua literatura. Mas chega de falar disso, não é? É você que eu preciso ouvir, você, mulher linda e que tem tanto a dizer! Perdoe-me, estou impressionada, não consigo parar de olhá-la. Você...é um bálsamo para os olhos! ( ela não se conteve e tocou a palma de sua mão no meu rosto, num carinho que me surpreendeu).
Eu estava comovida, e lisonjeada. Jamais recebera elogios que fundiam ao mesmo tempo minha figura e minha poesia, e com essa autoridade, de uma professora da USP. Eu estava tão encantada quanto ela. De repente senti o perigo... em mim mesma! Devia eu aproveitar-me, acabar de seduzi-la, fisicamente? Mas o “fisicamente” não é sempre uma extensão do espírito, e por isso uma decorrência natural do processo de sedução mútua, que é o que sempre acontece no encontro amoroso? Vejam, meus leitores, eu já estava pensando em termos dessa palavra! Sou realmente incorrigível! Mas como não pensar nisso, se um encontro assim tão raro, de almas, impõem-se, e estende-se naturalmente aos corpos? Tudo o mais: reservas, prudência, soavam falsos, a partir do seu toque em meu rosto e de suas palavras.
Então aproximei meus lábios, lentamente, dos seus, e beijei-os profundamente. Dei-me conta, ao mesmo tempo, no meio de nossa profunda comoção, que eu não abrira a boca, desde a sua chegada. Eu não dissera uma palavra sequer. Tudo já tinha sido dito antes, nos meus poemas, e ela percebera.
Ela fora seduzida, e eu... consagrada como poeta!


15/06/2006

A Professora belga

(dos “Contos Secretos” de Alma Welt)



Meus leitores escolhidos, compartilhem comigo a nova aventura que ocorreu recentemente em minha vida, a partir deste ateliê paulista, que parece conter uma fonte de inquietação, que precipita acontecimentos incontroláveis desde que nele me instalei, recém chegada do meu Pampa. Vocês sabem, eu não procuro, eles vêm até mim, esses admiradores e admiradoras, freqüentemente fogosos, e até... perigosos, no seu ardor que a minha pessoa parece despertar, feliz ou infelizmente, ainda não sei, ao certo. O fato é que por uma determinada peculiaridade do meu caráter, não consigo e nem mesmo pretendo deter o fluxo dos eventos, mesmo quando eles se anunciam ameaçadores, em minha vida, pondo-me freqüentemente em perigo.

Dito isso, passo a narrar os fatos ocorridos na minha relação inesperada com uma dessas personalidades cativantes que cruzaram minha existência: uma nova professora, que contratei para treinar o meu francês, com vistas a uma viagem de exposição, desta vez na Bélgica. Elle s’apelle Chantal. Mademoiselle Chantal.

Uma mulher de trinta e poucos anos... bela, de uma maneira aristocrática, como afinal também se caracteriza minha própria beleza, segundo dizem, apesar de eu descender de agricultores pelos dois lados, o alemão e o açoriano. Mas, Chantal, assim que pôs os pés na grande sala do apê que é o meu estúdio, saturada de telas e livros, pareceu iluminar-se. Sua querida Europa, sua Bélgica, afinal, não lhe pareceram mais tão distantes, ela me confidenciaria em seguida.

Rodando no meio do ateliê, com a mão no seio, emocionada, ela deu um imenso suspiro e agarrou as minhas mãos colocando-as sobre o seu seio palpitante (ah! mademoiselle, por quê fizeste isso?) dizendo, trêmula, quase em lágrimas:

— Alma, Alma! Isto tudo, as suas cores, me lembram a paleta flamenga de Ostende, do nosso James Ensor, nacarada, sob a suave luz de Flandres. Mesmo abstrata, a sua pintura contém aquele mistério, aquela magia um pouco soturna, das máscaras de Ensor, do nosso “Mardi-Gras”, um tanto “diabolique”.

Espantei-me dela dizer isso, pois eu pensava ser uma pintora tropical, contra todas as expectativas, na verdade, dadas as minhas ascendências européias, e a minha própria pele, de uma alvura que costumava produzir espanto, por aqui, nas ruas desta paulicéia, que contém de tudo.

Nada comentei, todavia, e apenas me comovi com a sua emoção, e as batidas aceleradas do seu coração sob a palma das minhas mãos.

Tive uma súbita vontade de beijar os lábios perfeitos daquela européia. Ela pareceu perceber isso e adiantou-se a mim nesse impulso, e nossos lábios se encontraram mais perto de mim, eu percebi. Desta vez, por fração de segundo, não fora minha a iniciativa da sedução, mas o que importa é que a seguir estávamos abraçadas, rodando no centro do ateliê, mas numa espiral centrífuga, que nos conduzia para o meu quarto, onde nos esperava o grande leito de tantas estórias, de tantas paixões.

Despimo-nos avidamente, e Mademoiselle (vou continuar a chamá-la assim) revelou o mais belo corpo que eu pudera ver em muitos anos. Muito alva também, ostentava pêlos pubianos ruivos, que deixavam descobertos os grandes lábios, muito vermelhos, um tanto salientes, carnudos, apetitosos. Ela os ofereceu, de saída, percebendo a minha atenção, e eu mergulhei ali com todo o meu entusiasmo e digamos, a minha gula, porque não? Eu iria voar com aquela feiticeira belga, na vassoura fálica que não tínhamos, mas que contínhamos no nosso impulso, na nossa vontade que não excluía o Animus, o masculino em nós, determinado, eu senti, pelo espectro de Ensor e suas máscaras, que invadiram meu quarto naquele momento, onde podíamos ouvir o sapateado da moira*, toda de negro, nas imensas, infinitas planícies desoladas do inverno de Flandres.

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Despertamos nuas, após a nossa noite flamenga, e voltamos a nos beijar, embevecidas e maravilhadas com a harmonia do nosso encontro todo ele de suaves tons quentes, de um impressionismo nórdico, que regia a nossa relação, que ela assim insinuara com as suas metáforas pictóricas inusitadas, que acolhi prontamente, e incorporei. Mas estaria eu à altura daquela aristocrática criatura banida do seu Norte, como eu, do meu sul? Podíamos realmente nos encontrar? Isso realmente estava acontecendo? Nossa carne embevecida, desperta, dizia que sim, e eu me inclinei mais uma vez para alcançar com os lábios suas aréolas rosadas que se tornavam quase rubras como os seus lábios dos dois extremos, pela excitação encantada de nossas mucosas em flor. Eu iria desfrutar desta suave maçã do norte, e entregaria a ela tudo o que quisesse do meu corpo jovem, insaciável, cheio da saudável gula da paixão. Assim, em seguida, virei-me, lentamente, empinando minhas nádegas muito brancas em direção ao seu rosto, oferecendo-me sem pejo, mais uma vez, enquanto ela mergulhava por sua vez num crepúsculo ardente, contido naquela manhã de inverno.

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Chantal telefona-me, em lágrimas. Ela tem que viajar, pra buscar uma pequena herança de uma tia, em Ostende. Mas, ela me diz, está conflitada, pois teme que ao se afastar tão cedo de mim , eu escaparei da espécie de sortilégio que se criou entre nós, graças às felizes metáforas que a atração ditou a ela no nosso encontro. Ela está apaixonada, como eu. Não quer se separar de mim, tão cedo, teme perder-me, e eu a ela. Contudo, com o coração apertado, insisto em que viaje, garantindo-lhe que não a esquecerei, e que meu amor esperará por ela.

Não é preciso dizer que tudo isso era falado em francês entre nós, pelo menos para justificarmos nossa aproximação de aluna e mestra, e como mulheres sérias, e não duas adolescentes, como na verdade, nos sentíamos.

Chantal partiu. Fui levá-la ao aeroporto e lá conheci o casal de velhos belgas, seus pais, muito calados, que me olharam com curiosidade, e fizeram um discreto elogio à minha beleza. Mas eu não queria maiores aproximações, eu estava insegura. Temia comprometer minha nova amiga, e assim tive de puxá-la para o toilette, comigo, para poder despedir-me dela condignamente, com um grande beijo em sua boca. Saímos daquele banheiro de aeroporto, com os olhos ligeiramente inchados, sem contudo despeitar suspeitas dos seus pais. Para todos os efeitos eu era a aluna predileta de sua filha, e uma nova amiga. Voltei de carona com eles, falando amenidades em francês, embora intimamente perturbada e comovida. Pelo menos fiquei sabendo que Chantal tinha uma irmã pouco mais nova, chamada Stéfanie, que poderia eventualmente substituir Chantal nas aulas. Eles pediriam para ela me telefonar e combinar os dias e horas para as lições.

Ao ser deixada frente ao meu prédio, eu já estava decidida a conhecer a irmã de Chantal, e ao entrar no estúdio fui direto ao telefone, que soava. Estranhamente era ela, que já falara ao celular com os pais pegando o meu número. Tudo tão rápido nesta cidade, tão diferente do tempo do meu Pampa.


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Stéfanie entrou no meu ateliê, e eu tive imediata sensação de recorrência, como de um sonho. Havia muitas semelhanças entre elas, mas o que mais me impressionou foi a predisposição de Stéfanie , que parecia estar ali para substituir a irmã ... também, ou principalmente, no meu leito. Ligeiramente conflitada, não deixei de desfrutar deste novo tesouro que se me oferecia. Ela correspondeu aos meus beijos com imediata paixão, a curiosidade me mordeu, e indaguei-lhe:

—Stéfanie, querida, eu amo a tua irmã, e espero por ela. No entanto tu pareces aceitar e até mesmo fazer um papel de substituta temporária. Estarei enganada?

—Não, Alma—ela respondeu—Estou agindo de acordo com Chantal. Ela é que me recomendou vir até você, muito antes de eu lhe telefonar. Em pequenas, fizemos um pacto, de compartilharmos todas as experiências de nossas vidas e também nossos amores. Ela me cedeu você. E a você. E me recomendou ao partir: “Stéfanie, quero que você ame e seja amada por Alma. Assim não a perderei. Ela não é propriamente volúvel, mas sua personalidade de poeta, faz que não se permita deixar passar nada em vão em sua vida e nem se furtar a nenhuma experiência nova: ama e deixa-se amar com uma ninfa. Por isso fique com ela e preserve-a para mim... para nós, se você não quiser abrir mão dela ao meu retorno, o que é bem provável, pois sua pele, seu perfume entram sob a nossa e não podemos mais deixá-la, como um vício, como um ópio”.— Sim, Alma estou vendo que minha irmã tem razão, e agora eu lhe quero tanto quanto ela lhe quer. E quero estar, um dia, no seu leito junto com ela, se vocês permitirem. Para sempre.”

Deslumbrada, eu me sentia no paraíso, com as promessas daquele amor duplicado. Sim, porque para mim elas eram uma só, ou a continuidade uma da outra. Entreguei-me à Stefanie com redobrada paixão, após suas alentadoras palavras, e já ansiava por aquele maravilhoso prognóstico, de tê-las as duas ao mesmo tempo no meu leito, num deslumbrante “ménage-a-trois”.

Assim transcorriam os dias da minha espera, que eu não mais sentia, pois Chantal continuava de certo modo no meu leito. Seus cheiros, seus perfumes eram iguais, e as semelhanças não paravam por aí. Ela gemia e chorava de amor, como Chantal, e eu entregava-me a ela, também, com o mesmo ardor, gozando em sua boca igualmente ávida, de lábios tão perfeitos quanto os de Chantal. E eu derramava meus fluidos sobre essa boca maravilhosa junto com as lágrimas da minha felicidade duplicada. Então...

Um dia, Chantal telefonou, finalmente. Estava de volta. Eu gritei de alegria. Eu iria buscá-la no aeroporto, com Stéfanie. Ao desligar, perguntei a Stéfanie, comovida, ao meu lado, a ponto de nem sequer querer falar ao telefone com a irmã, se podíamos ir buscá-la juntamente com seus velhos pais, no carro deles. Stéfanie ficou subitamente sombria e disse :

—Não, Alma, não podemos, isso não será assim.— E calou-se, ficando, estranhamente silenciosa, o resto do dia. Passou a noite comigo, onde se entregou, mas com um timbre de tristeza que não me passou despercebida. Ela derramou lágrimas a noite toda, durante o nosso amor e eu percebi que apesar de suas palavras anteriores, ela sentia estar se despedindo. E eu chorava com ela, ansiando por Chantal. Ansiando pelas duas. Pelo meu duplo amor, um dia reunido.

Acordei no meu leito vazio. Estranhamente, Stéfanie não me acordara e partira. Não deixara sequer um bilhete. Perturbada, instintivamente decidi ir sozinha buscar Chantal, sem nem sequer telefonar para seus pais, já que Stéfanie pusera aquela ressalva, obstáculo obscuro, incompreensível, mas que eu senti que devia respeitar, tanto mais que me sentia um pouco culpada, não sei porquê, diante daquele amável casal de velhos.

Fui, pois, sozinha, de rádio-táxi, para o aeroporto. No caminho, ao som da suave Pavane opus 50, de Fauré que o chauffer sintonizou amavelmente no rádio, os acontecimentos do último mês desfilavam ante meus olhos como um filme, ou como um sonho, culminando com a estranha noite anterior, e não pude deixar de pensar que eu fora de alguma forma abandonada, embora estivesse indo ao encontro do meu amor.

Quando ela apareceu no saguão, linda, com um chapéu negro, bem europeu, e sua roupa também preta, tive um sobressalto, meu coração apertou-se ligeiramente dentro da alegria daquele reencontro. Abraçadas e chorando eu disse:

—Chantal, Chantal... meu amor, você voltou, afinal. Só não morri, porquê você me deixou a Stéfanie, que me fez companhia. Sua irmã é um doce, é maravilhosa, quase como você ( eu pensava estar preparando o terreno). E seus pais, então, que velhinhos lindos, tão gentis e amorosos. Ainda não os encontrei aqui no aeroporto, devem estar chegando, não? Que família tu tens, hem, guria?

Chantal empalideceu. Ficou sombria, trêmula, mas pegando minhas mãos, juntou-as ao seu seio palpitante, dizendo;

—Alma que estás dizendo, minha amiga? Não tenho mais família no Brasil. Meus pais morreram na Bélgica no ano passado, estavam muito idosos. E . minha irmã suicidou-se, a seguir, por amor desenganado, por um noivo que nos abandonou, às duas. Éramos muito unidas. Mas... o quê estás dizendo? Falas como se tivesses conhecido a Moira. Era o seu nome, não Stéfanie, como Roland, meu noivo, arbitrariamente costumava chamá-la, pois não gostava do seu nome.

Fiquei estarrecida. A vista se me turvou, uma cortina negra caiu sobre meus olhos e quase desfaleci nos braços de Chantal. A doce irmã me visitara, eu estivera com a Moira em meus braços, e não poderia mais esquecê-la. Ela estaria sempre entre nós.

A branca e suave Moira, que me apertara com paixão em seus braços, sussurrando aos meus ouvidos nossos nomes:

“ Chantal... Alma...”


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Notas da editora

*Moira : A morte em sua configuração feminina. Uma das naturezas de Ananke, a deusa da Nescessidade, ou do Destino, entre os antigos órficos gregos.


27/04/2006