domingo, 16 de novembro de 2008

Stradivarius no sótão ( conto de Alma Welt )

Stradivarius no sótão



Sentindo o meu apartamento nos Jardins completamente saturado , entulhado de telas, materiais e livros , resolvi procurar um sobradinho na região próxima, de Pinheiros, para estabelecer um novo ateliê, “clean”, para poder manejar e pintar grandes telas. Tendo encontrado a casa que me serviria, vi-me novamente envolta por uma vida de bairro, mais comunitária, a que estava desacostumada. Não tardei a conhecer um personagem destas ruas , que me faria participar de um extravagante episódio de sua vida.
O senhor Robledo, apesar de sua discrição e aspecto apagado, seu ar digno e um pouco distraído, teve seu tempo de notoriedade, há alguns anos atrás, nestes quarteirões, nos bares ociosos das adjacências, quando cometeu a publicação de um compêndio de sua autoria. Uma brochura, impressa numa tipografia próxima, por sua conta, e titulada, para gáudio da vizinhança e dos boêmios e bebedores de cafezinhos, nada mais nada menos que : “Romantismo e Vida Fiscal.” Não é preciso dizer que os gozadores não ultrapassaram o título em seus comentários, e que poucos se deram ao trabalho de folheá-lo. Confesso também minha total ignorância quanto ao seu conteúdo, quem sabe de notáveis ponderações, visto que o seu autor parece impregnado de uma certa aura de humanismo, que envolve toda a sua pessoa , de uma maneira um tanto arcaica.
O senhor Robledo contou-me que parou diante de um sobrado, tocou a campainha e foi imediatamente recebido pelo senhor de cabelos brancos e aspecto saudável que o conduziu por dependências já completamente esvaziadas e convidou-o a sentar-se numa das duas cadeiras que se avistavam no meio da sala. Este senhor teria dito mais ou menos isto:
-“ Meu caro senhor Robledo , conforme está no contrato, entrego-lhe a casa inteiramente vazia, mas com a condição de que o senhor suporte o meu despejo no sótão da casa. É afinal, a única dependência que me reservo, pois não tenho como me ocupar dessas velharias, nem quero perder tempo em livrar-me delas. Peço-lhe muitas desculpas por alugar-lhe a casa em tais condições , mas quero aproveitar a liberdade com que a vida subitamente me presenteou, com o afastamento dos meus filhos e parentes, que seguiram seus rumos, casaram-se e mudaram-se, e visto que sou viuvo já há muitos anos...Vejo-me enfim livre para uma última viagem pelo mundo, da qual talvez nem regresse , não posso esperar da vida tantos retornos, apesar de tudo. Gozo de boa saúde, pretendo dar um bom giro pela velha Europa, e passar pela minha região de nascença, minha pequena cidade natal . Peço-lhe, entretanto , que não se preocupe, absolutamente
não se preocupe com aqueles trastes lá em cima. Deixe-os empoeirar-se, se isso não o incomodar. Na verdade não queria incomodar um inquilino como o senhor , apenas rogo-lhe que suporte esses despojos, dos quais não tenho forças para livrar-me. Não creio, por outro lado, que o sótão lhe possa fazer falta não é mesmo? O senhor sendo solteiro, e visto que o senhor assim me afiançou com tanta generosidade. Enfim, fico-lhe grato. Não, não exagero. Um inquilino como o senhor é uma preciosidade, a essa altura da vida , quando não se pode mais aborrecer-se com ninharias e tudo o que se quer é partir, partir, sabe-se lá por quê, num ultimo giro pelo mundo, antes de aportar de vez, não é mesmo?
–“Naturalmente, sem dúvida, senhor”– o senhor Robledo se aprestou em afirmar, já com um zelo de guardião prestativo e fiel a desabrochar-lhe nos olhos, em todo o seu corpo aprumado, mas que anos e anos de serviço público faziam suspeitar pequenas reverências, movimentos imperceptíveis de coluna.
Na verdade, tudo isso eu deduzi, a partir de uma convivência esporádica que estabeleci com o protagonista desta história, das observações que pude fazer da janela do meu sobradinho, e a seguir, das insólitas cenas que me foram dadas a presenciar em sua casa, e que tentarei relatar por mais dolorosas e grotescas que pareçam. Por enquanto, ainda estamos naquele prólogo narrado pelo querido senhor Robledo, numa determinada visita que lhe fiz no sanatório.
O diálogo com o proprietário prosseguiu, um pouco mais, girando sobre estes mesmos pontos e afinal despediram-se cordialmente , quase efusivamente. O senhor Robledo cheio de inexplicável entusiasmo e com a melhor das disposições retornou à sua residência, distante apenas uma quadra dali, afim de tratar da sua mudança, considerável bagagem de homem civilizado, razoavelmente livresco( uma pequena e eclética biblioteca, onde predominava a boa literatura do século XIX ).
A mudança do novo inquilino foi acompanhada por uma dezena de pares de olhos atentos, entrincheirados nas janelas da vizinhança, nas imediações do poste da esquina, e sobretudo nos bancos do boteco em frente. O sr. Robledo não era estranho a esses olhos, mas devia estar se aproximando considerável e inadvertidamente, com as entranhas de sua antiga residência à mostra , nessa
situação de terrível despudor em que uma mudança coloca as pessoas.
Dispostos o móveis em seus lugares, tarefa que tomou alguns dias ao sr. Robledo, que , por sinal, teve de despachar amavelmente alguns curiosos que sempre teimam nessas ocasiões em prestar uma mãosinha de ajuda, afim de pôr um pesinho dentro da nova moradia. Prestativos e bisbilhoteiros, olhares ávidos de tédio e curiosidade vã, vocês sabem, os bons vizinhos freqüentadores do boteco, a gorda e faladeira senhora da esquina; o inesperado anão provavelmente vendedor de bilhetes de loteria, o aposentado senhor de olhos empapuçados de alcoólatra, o moço espinhudo jogador de sinuca, talvez conhecido pelo apelido de Zé Galinha, a magérrima semi-louca da direita, em seu vestido de brim estilo sanatório, etc. Ah! Uma indefectível professora de música, outrora, segundo ela mesma, cantora lírica no Municipal. Pessoas amáveis e atenciosas, ligeiramente marginalizadas, é verdade, solitárias e solidárias a seu modo.
A porta trancada, o sr. Robledo, exausto, percorreu com o olhar cada centímetro quadrado do seu novo cenário, na verdade idêntico ao antigo, com as mesmas disposições e um restinho da velha poeira; os objetos metodicamente recolocados sobre as mesas e os consoles, e encerrou para si mesmo o assunto mudança, não sendo, afinal, um homem de demasiadas idiossincrasias, dessas que costumam assolar os solteirões.
Predispôs-se a dormir , não sem antes dar a primeira vista d’olhos no famoso sótão, objeto de sua crescente curiosidade, o que fez com ligeiro ar de displicência, de pijama, pensando sem querer num paninho de pó e na sua faxineira diarista. Não, não caberia a mais ninguém entrar naquele sótão tão íntimo, afinal, toda uma vida acumulada ali , nos seus visíveis recados, na sua linguagem cifrada de móveis, quadros e objetos, poltronas rotas e pó, provavelmente.
“É preciso ser sensível,” pensava ele, “à linguagem muda dessas coisas. Não, empregada jamais , talvez o esquecimento vigilante, isto sim, vejamos...”
Subiu o pequeno lance de escada e penetrou pela porta que ostentava
chave, e viu-se numa pequena alcova sob o telhado, entulhada de toda a sorte de móveis desmontados, comuns, bastante usados, vividos, sobre os quais pousavam quadrinhos empilhados e álbuns de fotografias de família. Com a ponta dos dedos, o sr. Robledo abriu um álbum, desinteressadamente, folheou timidamente outro mais adiante, retomou os ares de guardião zeloso e voltou-se para sair atritando os dedos empoeirados, quando seus olhos caíram sobre um instrumento pousado sobre uma cômoda bloqueada por todos os lados, displicentemente jogado, fora da caixa, sem cordas: um violino bastante belo, lhe pareceu, razoavelmente conservado, apesar de tudo. O sr, Robledo pegou-o com reverente cuidado, com as pontas dos dedos, examinou-o, com atenção e respeito. Admirou-lhe as formas barrocas que lhe pareceram perfeitas, advinhou-lhe as peças desaparecidas, que lhe completariam a harmonia: o cavalete e o suporte; intrigou-se com a queixeira negra que lhe pareceu abstrusa; percorreu com os dedos a voluta onde faltava uma chave, e em seguida espiou pelas frestas sinuosas e leu, inclinando adequadamente para a luz da pequena janela empoeirada: ANTONIUS STRADIVARIUS CREMONENSII – 1692.
Com um leve sobressalto íntimo, o sr. Robledo, pestanejando, depositou subitamente o instrumento, exatamente no espaço delineado pela sua forma na poeira da cômoda e tratou de afastar-se, num estado semi-sonhador, hipnagógico.
Trancou a porta com a chave e retirou-se, descendo até a sala, dirigiu-se até a sua estante, percorreu com os olhos as lombadas da sua Enciclopédia... “S”, retirou o volume, folheou-o, compulsou-o, até encontrar o verbete esperado: “Stradivari ( Antônio ), dito Stradivarius, de Cremona, Itália, célebre “maestro liutaio”( luterista ), discípulo de Amati, etc...”
O sr. Robledo soltou um gemido, enquanto seus pensamentos turbilhonavam sem forma, despontando aqui e ali uma censura em meio à surpresa: “Como puderam deixá-lo assim, abandonado, ali na poeira, mutilado, sem cordas, sem sua caixa, etc..? Tanto descaso... Um mistério. É preciso vigiá-lo, de algum modo...”

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Os dias se passaram e o sr. Robledo permanecia com aquele olhar sonhador, que agora lhe assentava como a definição verdadeira da sua personalidade, de modo que não foi notado conscientemente nem mesmo pela sua faxineira, embora isso o deixasse mais vulnerável às tentativas de aproximação dos vizinhos, pois já não reagia às pequenas invasões do cotidiano do bairro, na verdade por não estar atento. Tinha agora um ar mais vago, doce, os gestos mais lentos.
Um dia fez uma viagem ao interior, Taubaté, e trouxe um violino tosco, uma rabeca popular comprada na feira da cidade. Daí pra diante as rabecas se multiplicariam no seu caminho com curiosa facilidade. Violinos de feira, de bric-a-brac, de criança, quebrados, empenados, mutilados, feitos a canivete, primitivos
uns, belos, outros nem tanto, violinos de fábrica, cópias de bela aparência. Proliferavam pela casa como coelhos. O sr. Robledo os tangia, passava-lhes o arco uma vez ao chegarem, e logo os pendurava. Sim, porque, estranhamente, ele não suportava pousá-los pelos móveis, achando que a trepidação da rua, pelo movimento dos carros e caminhões, os prejudicaria de alguma forma. Pendurava-os em varais que se estendiam pelos cômodos da casa, sempre acompanhados dos seus respectivos arcos, pendentes pelas volutas, como enforcados, acima das cabeças das visitas. Sim porque, vulnerável como estava o nosso sonhador, a casa agora era constantemente invadida pelos vizinhos: o Zé Galinha, a louca da esquina, dona Magda, a cantora, o anão de terno, o poeta Aragipe, queixoso e impublicado, o aposentado alcoólatra na ativa, e outros. Até mesmo essa sua criada aqui, que ele convidou amavelmente, ao encontrar-me eventualmente na padaria do nosso quarteirão. Pude testemunhar o espantoso entra-e-sai de sua casa devassada. Entravam a qualquer hora do dia e da noite, sentavam-se à mesa com seus baralhos, em longas partidas demenciais, entremeadas de cafezinhos que movimentavam simultaneamente a cozinha, em confidencias, tagarelices, gracejos, fofocas. Sobretudo fofocas.
Um dia, em meio a essa balbúrdia, o sr. Robledo, de repente bateu palmas e pediu atenção. Tinha um comunicado a fazer. Olhamo-no em silêncio, surpresos e curiosos.
—Senhores, senhoras, meus amigos, e você, Alma , sobretudo você, minha nova querida amiga! Tenho uma revelação a fazer. Uma grande descoberta! Mas, primeiro um convite. A todos vocês. Façamos um grande almoço. Conto, para isso, com a colaboração das senhoras. Quero todos presentes. Durante esse repasto, amanhã, farei a minha revelação. Compartilharei com vocês, meus amigos, a minha grande descoberta. Fundamental, eu creio, vocês verão! Conto com vocês. Até amanhã!
Na verdade, poucos deixaram a casa, e as mulheres puseram-se logo a fazer planos para o promissor almoço. Frango assado!, decidiram.
No dia seguinte, ainda cedo , começaram os preparativos. A cozinha movimentou-se, com as incursões ao boteco da esquina para comprar os frangos. Na verdade, pré assados na máquina giratória, já prontos, faltando somente os condimentos, guarnições, etc.
Ao meio dia em ponto a mesa estava aberta, crescida e posta com a toalha de renda, os talheres e baixelas desenterrados do passado nebuloso e neutro dos baús do nosso amável anfitrião. As mulheres atarefadas, traziam os frangos fumegantes da cozinha, acompanhados aos saltos pelo anão e o Zé Galinha, que se faziam de bufões. O poeta Aragipe fazia o menestrel, tangendo como um alaúde, um dos violinos arrancado ao varal que se estendia acima da mesa, de parede a parede. O sr. Robledo estava um pouco desconcertado e incomodado com a feição de Festim que o almoço tomava, eu percebi. Mas mantinha o olhar sonhador e vago, à espera do momento de compartilhar sua Revelação.
Todos sentados à mesa, o sr. Robledo à cabeceira, os convidados buliçosos faziam pirraças, arrulhavam feito pombas, grasnavam, latiam, batiam palmas e atacavam as entradas e aperitivos, atiravam azeitonas, casquinando.
De repente, ao entrarem os frangos, em meio ao vapor e aroma que se desprendiam, o sr. Robledo pôs-se de pé, hesitante, e pediu silêncio, batendo discretamente um garfo no cristal.
–Senhores, senhoras, um momento! Eu lhes peço. Quero dizer-lhes algo... que me parece sumamente importante. Assim, obrigado. Senhores, quero fazer-lhes uma revelação... Quero compartilhar a enorme alegria da minha descoberta, com vocês, meus amigos!...( o sr. Robledo balbuciava ). O Segredo... o segredo!
Fez-se um profundo silêncio. Desconcertado, o sr, Robledo hesitou mais um pouco, todos os olhos pousados nele, mas subitamente, num gesto rápido, agarrou pelo braço e arrancou ao varal o violino mais próximo de sua cabeça e com um golpe seco, espatifou-o contra a quina da mesa.
Diante da estupefação dos presentes, abriu o tampo e com dois dedos, pinçou um pequeno pino de madeira, uma espécie de suporte ou espinho, no ventre do instrumento e mostrando-o à malta, anunciou:
— Eis o Segredo, senhores. Eu descobri! Eu descobri! O segredo do maravilhoso som do Stradivarius! Senhores, está aqui, isto se chama Alma! Compreendem? Estão vendo? Tudo está aqui! Vejam!
Nesse momento, passada a surpresa, os convidados levantaram-se e agarraram os violinos que pendiam acima de suas cabeças, o varal despencou, os instrumentos foram disputados, estraçalhados, desmembrados. O anão subiu à mesa, e munido da tesoura de destrinchar, pôs-se a abrir os tampos, metendo as pontas pelas frisas. Volutas eram arrancadas e brandidas como coxinhas, enquanto o Zé galinha arrancava cravelhas e fingia palitar os dentes com elas. Dona Magda trinava a ária Libiamo! Libiamo!, da La Traviata, enquanto o poeta Aragipe com o dedinho enroscado num pesinho de cavalete, disputava com o senhor aposentado a sorte no rompimento do ossinho. E uivos, cacarejos, gargalhadas, enquanto cordas eram tangidas como nervos retesados, tampos eram destrinchados, volutas enfiadas nos molhos e lambidas em meio a gritos de: “Está na alma! O segredo está na alma! Passe o frango! Hi, hi,hi! Quá! Quá! Quá!
O sr. Robledo, recoberto pelos pinos que lhe atiravam, coberto de molho como sangue, subitamente revira os olhos e estende a mão para mim, horrorisada que estou, e paralisada a um canto da sala. Parecendo querer agarrar-se às lágrimas que divisou nos meus olhos, subitamente tem uma apoplexia, os olhos esbugalhados, e desfalece, derrubando a cadeira para trás e rolando aos pés da mesa.
O banquete acaba aqui. Também não vi mais nada. Não tenho mais detalhes dos acontecimentos depois disso. Tudo se desvanece...

FIM


01/10/2002


Stradivarius no Sótão (de Alma Welt)

Um vizinho no bairro de Pinheiros
A quem deu a mania de comprar
Violinos e rabecas sem parar
Que lhe levavam falsos companheiros

De um carteado fútil, sem sentido,
Vilipendiado em sua inocência
Em seu lar doce lar mais que invadido,
Já estava à beira da demência...

E me convidando especialmente
Com a presença dos falsários
No meio de um jantar beneficente

Destrincharam violinos como frangos
E até o seu falso Stradivarius,
A pinçar-me-lhes a alma ao som de tangos...


Nota
Este soneto inédito que acabo de descobrir na Arca da Alma, sintetisa de maneira prodigiosa o conto inteiro entitulado Stradivarius no Sótão, dos Contos da Alma, de Alma Welt, livro publicado em 2004 (o qual ainda se encontra à venda), com contos que correspondem ao período em que Alma morou em São Paulo nos Jardins, e em Pinheiros, para onde mudou seu ateliê para uma casa, para ampliá-lo. (Lucia Welt)

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