sábado, 23 de outubro de 2021

O Testamento

 (conto de Alma Welt)

Chegou uma carta do advogado de meu falecido pai. Exige-me a presença em casa, num encontro dos irmãos para a leitura do testamento do velho, num determinado dia e hora.

Sei que isso não vai prestar. Conheço minhas irmãs e sua cobiça. Quanto ao meu irmão mais novo, este é puro e honesto, mas violento e exaltado por pura paixão de viver.

 Todavia não me esquivarei desse ato penoso, nem aceitarei mais nenhuma procrastinação. Cada hora uma está em viagem e esperamos esse dia como uma sentença do irmão mais novo de Deus, que era o nosso pai, em sua autoridade e juízo inquestionáveis desde a nossa infância temerosa.  Na verdade falo isso mais por elas, pois eu era a queridinha, a caçula sobre quem ele derramava a sua doçura insuspeitada.

Tínhamos um pacto, meu pai e eu. Sentada sobre seus joelhos, ao meu ouvido ele segredou esse pacto que por ora não revelarei. No devido tempo tirarei uma carta da manga.  Mas nada farei pra prejudicar ninguém, jamais, mesmo aos que me ofenderem.

Feitas as malas, olho meu ateliê com carinho e já com saudade. Junto à porta ajeito a tabuleta que está torta, a que adicionei um “a”:  “Pintora, pinta!”

Não falarei da viagem de ônibus, dos meus pensamentos em retrospectiva, cheios de flagrantes, de flashbacks entre o cochilo e a vigília cercada de paisagens fugidias, que meus olhos captam para futuras telas transfiguradas.

Chego à mansão de nossos pais, que diminuiu muito pouco com o tempo. Tudo tão velho! Tudo um pouco exagerado, como se fosse possível uma escala mais modesta para absolutamente tudo dentro dela. A verdade é que me pai, embora médico,  possuía uma visão senhorial do mundo, contra a qual me rebelei na adolescência, com inesperada condescendência do velho, que quase não lutou contra a minha saída. Ele tinha aceito minha vocação de artista, que na verdade estimulara desde que eu era pequena, mostrando-me livros e quadros e liberando sem ressalvas meu acesso à sua vasta biblioteca clássica. Lembro-me do episódio em que o fator de discussão entre meus pais foram as reproduções na seção de cultura de uma revista médica, que meu pai deixou  à mostra em  sua mesa de cabeceira: uma série de fotografias de obras pictóricas e escultóricas clássicas sobre o tema “Leda o Cisne”.  Ao ver aquelas imagens estranhas, ambíguas (eróticas, depois eu soube) fiquei agradavelmente perturbada, se posso dizer assim. Excitada. Um cisne entre as pernas... Minha mãe estrilara. Poucas vezes eu a vi assim, enfrentando-o com uma  fúria sagrada de moralista intransigente. Exigia a destruição daquela revista, dizendo não admitir pornografia em casa. Pela primeira vez  vi meu pai na defensiva,  argumentando serem mitologia grega em obras de arte consagradas, de Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Verrocchio,  etc,  o que não adiantava diante da exaltação inusual de minha mãe, que invocava a inocência dos filhos e a moral familiar, nominando aquilo de pura sujeira.

Bem, esta lembrança agora já podia se desvanecer, purgada como tantas. Só para isso já serviria minha vinda a esta casa pela primeira vez desde a morte de meu pai. Recordo então o velório à antiga, no salão, entre velas e o nosso choro abafado, em contraponto ao copioso pranto da nossa  cozinheira e do motorista fiel.

Encontro agora a recepção efusiva de Matilde, nossa cozinheira, à porta de entrada, com abraços e exclamações carinhosas.  Está envelhecida somente pelas rugas mas com o mesmo entusiasmo de sempre. Chama-me sua “menina”,  com lágrimas nos olhos.

Subo para o meu quarto e desfaço as malas, pondo minhas roupas no armário onde encontro alguns vestidos de minha adolescência e decalques gastos nas portas, por dentro.

 Nada parece mudar nesta casa, mas apenas envelhecer, fanar-se lentamente.Ninguém ousaria tirar uma poltrona do lugar. Por que isso? A presença demasiado forte de meu pai cristalizou-a como um encanto e não me admiraria de ver, desta janela, um denso espinheiro impenetrável cercando a casa adormecida.

 No fundo de uma gaveta encontro uma pasta com um poema meu dentro, escrito aos 16 anos, de um romantismo obscuro e místico que me causou  agora estranheza e um rubor que senti nas faces:

 ORSILIA

Numa floresta gótica jaz,

 erma e terrível, a lembrança de Orsília

 A mágica luz dos entre-arcos, que nenhum vento distorce

pousa em algum lugar de seu corpo um reflexo de dor.

Nenhuma oscilação afugenta o espírito em seu retorno

mas toda a atmosfera submete-se a uma paz ditada pela morte.

 

O silêncio canta uma balada ancestral.

Nem a névoa estagnada dos pântanos

nem o petrificado gesto do íbis

se dispersa ante tão suave angústia.

 

Orsilia vagueia seu amor translúcido,

seu triste amor , agora isento de recordações

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 à margem de uma estrada, um vento sofre nas ramadas.

 

Desço em seguida para a sala e entro na biblioteca contígua,  para repassar com o olhar  os volumes tão queridos. Os clássicos: a Odisseia e a Ilíada de Homero, a Divina Comédia de Dante Alighieri, o Don Quixote, de Cervantes, o Paraíso Perdido, de Milton, o Gargantua e Pantagruel,  de Rabelais , todos grandes volumes ilustrados por Gustave Doré, meu primeiro grande paradigma de desenhista. Descobri mais tarde que seus desenhos estavam desvirtuados nessas edições  pela interpretação estereotipada e maneirista de xilógrafos da época, e que seu traço maravilhoso só sobrevivia nas vinhetas. E esse traço me interessava tanto quanto as estórias a que ele estava a serviço.

 Corro os olhos pelo resto da biblioteca com fotos pousadas aqui e ali, como se ouvisse o som da Gymnopédie, de Eric Satie, no filme “Feu Follet” (Fogo Fátuo - “Trinta anos esta noite”) .

 Logo o som do piano em minha mente é perturbado pelo ruído de carros chegando, com suas portas batendo, e o burburinho da chegada de minhas irmãs com seus maridos e filhos. Vou recebê-los, vagamente contrariada. Lucia e Geraldo e o casal de gêmeos. Solange com a filhinha Patricia e o marido Alberto abraçam-me, falando sem parar. Meus sobrinhos disparam pelo jardim, depois de um beijo rápido. Como são lindas estas crianças! Quero estar com elas, conversar e brincar com elas, só assim estarei paga por esta viagem, que pressinto dolorosa pelo que nos espera de conflitos e mesquinharias. A verdade é que eu vivi sempre sob a égide do prazer, e a mim mesma me admiro por ser relativamente sóbria, salvo pela paixão que nutro, vez por outra, pelos eleitos do meu coração.

Na sala conversamos um pouco enquanto Solange, pragmática, dá ordens para o almoço enquanto Aberto seve coquetéis, com aquele olhar brilhante e rosto rubicundo de alcoólatra moderado.

 Em meio à reunião, amena, como uma trégua a anos de guerra surda entre os dois casais, em que me coloquei sempre à parte, neutra por prudência e desinteresse, já que minha arte me supre de tudo, e nada pode atingir-me desde que permaneça fiel ao conselho de Leonardo Da Vinci a um seu discípulo: “Se queres ser um bom artista não deves sofrer senão pela tua arte”. Mas não sei se posso permanecer inatingível , à toda prova.

Chega agora Rodolfo, nosso irmão mais novo. Como uma saudação faz roncar o motor de seu Porsche conversível, antes de desligar o motor. Pula por cima da porta sem abri-la, típico de sua vitalidade e juventude. Corro a abraçá-lo, meu querido Rodo... Ele roda-me no ar, em gargalhadas os dois, enquanto os outros abanam a cabeça quase enciumados da nossa afeição incondicional.

 Rodolfo cumprimenta a seguir nossas irmãs e cunhados e corre para a cozinha para festejar Matilde. Ouvimos as exclamações e risadas vindas de lá. Como Matilde ama esse rapaz que ela praticamente criou!

Mais tarde. À mesa Solange ocupou a cabeceira, significativamente, e tentou controlar o almoço e os nossos modos, como uma diretora de colégio. Mas eu já estava acostumada a tudo isso, enquanto Rodo apenas ria com ironia, trocando olhares cúmplices comigo.

 Após a sobremesa e o cafezinho fugimos, Rodo e eu, para conferirmos nossas vivências no último ano em que praticamente não nos vimos.  Segurava-me as mãos e beijava-as a toda hora. Eu lhe passava a mão nos belos cabelos negros revoltos,  e sentia conhecê-lo como a mim mesma.

Naquela noite, a insônia nos pegou a quase todos, e ouvimos os estalidos e o gemer da casa em seu sono agora perturbado. Cruzávamo-nos na cozinha num vai-e-vem entremeado de pequenas conversas. Até a amanhecer nos aquietamos. Acordei tarde com o alarido das crianças brincando no jardim. Senti-me como se estivesse perdendo alguma coisa. “Elas começaram sem mim...” Mas logo esse pensamento esvaneceu-se e voltei a adormecer num sonho onde me vi criança no jardim mágico de minha própria casa, pulando amarelinha e depois rodando um arco que me guiava até uma casinha de bonecas no jardim, onde dentro, ocupando todo o espaço como encaixotado, estava sentado um homem sem rosto que disse: “Alma,  vim cobrar nosso pacto. Você não deve esquecê-lo. Todo sonho tem um preço”.

 Uma angústia me fez acordar.

 Ao meio-dia estávamos todos reunidos na sala esperando o tabelião e o advogado que chegariam logo. Passamos à biblioteca-escritório, onde fizemos um pequeno auditório dispondo cadeiras frente à mesa de meu pai, em cuja cadeira de espaldar se instalou o tabelião gordo, com olhos saltados atrás de grossas lentes como um sapão, que me deu vontade de rir. Diante da solenidade dos presentes e da situação apercebi-me da criança que eu ainda era em minha alma. Senti-me como uma menina intrusa na sala dos adultos e quase abandonei o local para juntar-me às crianças no jardim, para que eles pudessem  decidir nosso destino enquanto brincávamos felizes.

 O notário fez um pequeno suspense e começou a ler o testamento de meu pai.  Eu podia ouvir-lhe a voz grave através da voz estridente daquele grande sapo e notei a astúcia do meu pai em nada especificar na partilha dos bens imóveis, que deveria assim ser divididos igualmente por quatro, mas à parte, um lote de terra para Matilde e seu irmão Galdério, o nosso factotum da estância. Entretanto salvaguardava os quadros, a biblioteca, o piano Steinway e os discos clássicos para mim, depositária da arte que havia na casa. Isso causou polêmica imediata, pois os quadros, o piano e alguns livros eram de grande valor.  Começavam ali as brigas, os ciúmes e as mesquinharias que eu antevira.

Retirei-me rapidamente no calor da discussão, e fui realmente me juntar às crianças.

 Patricia, minha sobrinha, bela como um anjo, deu-me a mão e fomos andar em silêncio no gramado e pelas alamedas entre as grandes árvores.  De repente parou, olhou-me bem nos olhos e disse: “ Tia Alma, leve-me com você. Quero viver no seu ateliê, quero ser como você, sempre criança no meio das cores, sem meu cabelo ficar branco e sem nunca falar de dinheiro ou gritar de raiva.”

 Meus olhos marejaram e eu a abracei forte. Que podia eu dizer-lhe senão deixar claro que eu a amava e que ela era como eu, e que já estávamos salvas por princípio, livres do pecado original do dinheiro, eternamente crianças e felizes em nossa suave dor de viver amando a vida e a beleza...

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 Rodo veio encontrar-me furioso com as irmãs mais velhas e com os cunhados. A luta começara e ele queria a minha aliança. Queria que a estância fosse só dele, com o vinhedo, e para isso abriria mão da sua parte no casarão.

Tudo isso era esperado, eles se engalfinhariam pelos bens materiais, pela fortuna de nosso pai, pomo da discórdia há muito pressentida. Quanto a mim , estava disposta a abrir mão de tudo no meu sonho romântico de abrir meu caminho e me realizar como artista pelo meu próprio valor um dia  reconhecido. Vejam só... Rodo indignou- se dizendo que não me deixaria ser espoliada por aquelas megeras,  etc.

 Eu deveria manter-me serena, pois percebi que todos me procuravam como o fulcro da questão, como um núcleo denso em torno do qual orbitavam suas paixões. Corriam para mim para que eu arbitrasse, mas na tentativa de me  cooptarem ou seduzirem em função de seus interesses. Eu sofria com isso. Era um papel que eu não queria, até que percebi que bastava que eu me mantivesse íntegra e desinteressada para que suas vontades se estilhaçassem contra o rochedo que eu me tornara.

 Rodo se exaltava. Enchia-se de cólera e se excedia na fúria verbal. Sua beleza se perdia. As crianças começaram a brincar mas afastadas no Jardim, mais silenciosas.Eu comecei a orar para que a paz reinasse naquela família e para que meu Deus da Arte da Vida me inspirasse.

 Alguns dias transcorreram amargos, em que as refeições já não se faziam com a mesa completa, sempre faltando alguns, que recarregavam nos quartos suas baterias de fel.

 Foi chamado, afinal, por inspiração minha e por intermédio do advogado, um conselheiro espiritual: Monsenhor Ângelo, o velho pároco da cidade, que fora amigo de meu pai e que nos batizara a todos.

O velhinho chegou antes do almoço, com sua longa barba e o olhar gasto, azulado, mas cheio de compaixão.

 Reunimo-nos na grande sala, as crianças inclusive, e ele, sentado numa poltrona, deixou-se beijar a mão por cada um de nós. Depois de longo silêncio, ralhou: 

 - O que há com esses brigões? Não respeitam as crianças?  Lembrem-se do que Jesus falou daqueles que as escandalizam. “Mais vale  que pendurem uma mó ao pescoço e atirem-se ao rio”.  Quem de vocês não está disposto a ceder? Somente cedendo um pouco cada um haverá concórdia na família. Quem de vocês se chama Alma? Ah! Daqui a vejo, minha criança... Sente-se aqui ao meu lado. E vocês devem beijar-lhe as mãos,  mas não me perguntem por quê. Somente assim a harmonia reinará entre vocês, porque não entrarei jamais no mérito das suas polêmicas interesseiras. O segredo da paz nesta casa está com esta menina, assim o vejo claramente. Agora vou-me embora e não quero ouvir mais nada. A paz seja convosco se não desconhecerem o Cristo!

 Fiquei tremendamente embaraçada e impressionada enquanto os molhos da minha família pousavam sobre mim. 

 Então, subitamente, as crianças todas correram para mim e, agarrando-me as mãos e a saia, fizeram-me rodar de braços abertos no centro da sala, de maneira insólita, para alívio geral, e no meio de uma explosão de risos.

FIM

28/09/2001

sexta-feira, 5 de março de 2021

DIÁLOGO DE SOMBRAS (de Alma Welt)

Num velho parque duas sombras se encontraram, no meio da grande cidade. Uma disse depois de longamente se olharem: "Estamos mortas, talvez não saibas. Vivas, vivíamos no Vale de Lágrimas e então passamos ao Inferno. A diferença é pouca e mal percebemos. A multidão continua vagando a esmo e não se deu conta, assim como não acreditava no próprio Vale, apesar de tudo. São sonâmbulos felizes... deixa-os. O Inferno não tem poder sobre tal crença na Felicidade. Será isso talvez o Paraíso: uma cegueira que nem a Morte pode destruir... "
Mas a outra sombra até então calada, disse: " Então vou juntar-me à multidão, que me parece mais sábia do que tu. Ela descobriu o modo de não sofrer, que é a simples aposta na felicidade. Vê como somos escuras aqui neste tenebroso parque. Vê como elas, cegas, procuram a luz do sol... Deixa-me, tua lucidez é sombria, és a sombra de uma sombra. Adeus, amiga, deixa-me ir com elas para a luz, rumo ao sol, ao sol, ao sol...
E a sombra se afastou sorrindo e lentamente diluiu-se na luz...
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04/03/2021