(conto de Alma Welt)
Chegou uma carta do advogado de meu falecido pai. Exige-me
a presença em casa, num encontro dos irmãos para a leitura do testamento do
velho, num determinado dia e hora.
Sei que isso não vai prestar. Conheço minhas irmãs e sua
cobiça. Quanto ao meu irmão mais novo, este é puro e honesto, mas violento e
exaltado por pura paixão de viver.
Todavia não me
esquivarei desse ato penoso, nem aceitarei mais nenhuma procrastinação. Cada
hora uma está em viagem e esperamos esse dia como uma sentença do irmão mais
novo de Deus, que era o nosso pai, em sua autoridade e juízo inquestionáveis desde
a nossa infância temerosa. Na verdade falo
isso mais por elas, pois eu era a queridinha, a caçula sobre quem ele derramava
a sua doçura insuspeitada.
Tínhamos um pacto, meu pai e eu. Sentada sobre seus
joelhos, ao meu ouvido ele segredou esse pacto que por ora não revelarei. No
devido tempo tirarei uma carta da manga.
Mas nada farei pra prejudicar ninguém, jamais, mesmo aos que me
ofenderem.
Feitas as malas, olho meu ateliê com carinho e já com
saudade. Junto à porta ajeito a tabuleta que está torta, a que adicionei um “a”:
“Pintora, pinta!”
Não falarei da viagem de ônibus, dos meus pensamentos em
retrospectiva, cheios de flagrantes, de flashbacks
entre o cochilo e a vigília cercada de paisagens fugidias, que meus olhos
captam para futuras telas transfiguradas.
Chego à mansão de nossos pais, que diminuiu muito pouco com
o tempo. Tudo tão velho! Tudo um pouco exagerado, como se fosse possível uma
escala mais modesta para absolutamente tudo dentro dela. A verdade é que me
pai, embora médico, possuía uma visão
senhorial do mundo, contra a qual me rebelei na adolescência, com inesperada
condescendência do velho, que quase não lutou contra a minha saída. Ele tinha
aceito minha vocação de artista, que na verdade estimulara desde que eu era
pequena, mostrando-me livros e quadros e liberando sem ressalvas meu acesso à
sua vasta biblioteca clássica. Lembro-me do episódio em que o fator de
discussão entre meus pais foram as reproduções na seção de cultura de uma
revista médica, que meu pai deixou à
mostra em sua mesa de cabeceira: uma
série de fotografias de obras pictóricas e escultóricas clássicas sobre o tema
“Leda o Cisne”. Ao ver aquelas imagens
estranhas, ambíguas (eróticas, depois eu soube) fiquei agradavelmente
perturbada, se posso dizer assim. Excitada. Um cisne entre as pernas... Minha
mãe estrilara. Poucas vezes eu a vi assim, enfrentando-o com uma fúria sagrada de moralista intransigente.
Exigia a destruição daquela revista, dizendo não admitir pornografia em casa.
Pela primeira vez vi meu pai na
defensiva, argumentando serem mitologia
grega em obras de arte consagradas, de Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Verrocchio, etc, o
que não adiantava diante da exaltação inusual de minha mãe, que invocava a
inocência dos filhos e a moral familiar, nominando aquilo de pura sujeira.
Bem, esta lembrança agora já podia se desvanecer, purgada
como tantas. Só para isso já serviria minha vinda a esta casa pela primeira vez
desde a morte de meu pai. Recordo então o velório à antiga, no salão, entre
velas e o nosso choro abafado, em contraponto ao copioso pranto da nossa cozinheira e do motorista fiel.
Encontro agora a recepção efusiva de Matilde, nossa cozinheira,
à porta de entrada, com abraços e exclamações carinhosas. Está envelhecida somente pelas rugas mas com o
mesmo entusiasmo de sempre. Chama-me sua “menina”, com lágrimas nos olhos.
Subo para o meu quarto e desfaço as malas, pondo minhas
roupas no armário onde encontro alguns vestidos de minha adolescência e
decalques gastos nas portas, por dentro.
Nada parece mudar
nesta casa, mas apenas envelhecer, fanar-se lentamente.Ninguém ousaria tirar
uma poltrona do lugar. Por que isso? A presença demasiado forte de meu pai
cristalizou-a como um encanto e não me admiraria de ver, desta janela, um denso
espinheiro impenetrável cercando a casa adormecida.
No fundo de uma
gaveta encontro uma pasta com um poema meu dentro, escrito aos 16 anos, de um
romantismo obscuro e místico que me causou
agora estranheza e um rubor que senti nas faces:
ORSILIA
Numa floresta gótica jaz,
erma e terrível, a
lembrança de Orsília
A mágica luz dos
entre-arcos, que nenhum vento distorce
pousa em algum lugar de seu corpo um reflexo de dor.
Nenhuma oscilação afugenta o espírito em seu retorno
mas toda a atmosfera submete-se a uma paz ditada pela
morte.
O silêncio canta uma balada ancestral.
Nem a névoa estagnada dos pântanos
nem o petrificado gesto do íbis
se dispersa ante tão suave angústia.
Orsilia vagueia seu amor translúcido,
seu triste amor , agora isento de recordações
....................................................................
à margem de uma
estrada, um vento sofre nas ramadas.
Desço em seguida para a sala e entro na biblioteca
contígua, para repassar com o olhar os volumes tão queridos. Os clássicos: a Odisseia
e a Ilíada de Homero, a Divina Comédia de Dante Alighieri, o Don Quixote, de
Cervantes, o Paraíso Perdido, de Milton, o Gargantua e Pantagruel, de Rabelais , todos grandes volumes
ilustrados por Gustave Doré, meu primeiro grande paradigma de desenhista.
Descobri mais tarde que seus desenhos estavam desvirtuados nessas edições pela interpretação estereotipada e maneirista
de xilógrafos da época, e que seu traço maravilhoso só sobrevivia nas vinhetas.
E esse traço me interessava tanto quanto as estórias a que ele estava a
serviço.
Corro os olhos pelo
resto da biblioteca com fotos pousadas aqui e ali, como se ouvisse o som da
Gymnopédie, de Eric Satie, no filme “Feu Follet” (Fogo Fátuo - “Trinta anos
esta noite”) .
Logo o som do piano
em minha mente é perturbado pelo ruído de carros chegando, com suas portas
batendo, e o burburinho da chegada de minhas irmãs com seus maridos e filhos.
Vou recebê-los, vagamente contrariada. Lucia e Geraldo e o casal de gêmeos.
Solange com a filhinha Patricia e o marido Alberto abraçam-me, falando sem
parar. Meus sobrinhos disparam pelo jardim, depois de um beijo rápido. Como são
lindas estas crianças! Quero estar com elas, conversar e brincar com elas, só
assim estarei paga por esta viagem, que pressinto dolorosa pelo que nos espera
de conflitos e mesquinharias. A verdade é que eu vivi sempre sob a égide do
prazer, e a mim mesma me admiro por ser relativamente sóbria, salvo pela paixão
que nutro, vez por outra, pelos eleitos do meu coração.
Na sala conversamos um pouco enquanto Solange, pragmática,
dá ordens para o almoço enquanto Aberto seve coquetéis, com aquele olhar
brilhante e rosto rubicundo de alcoólatra moderado.
Em meio à reunião,
amena, como uma trégua a anos de guerra surda entre os dois casais, em que me
coloquei sempre à parte, neutra por prudência e desinteresse, já que minha arte
me supre de tudo, e nada pode atingir-me desde que permaneça fiel ao conselho
de Leonardo Da Vinci a um seu discípulo: “Se queres ser um bom artista não
deves sofrer senão pela tua arte”. Mas não sei se posso permanecer inatingível
, à toda prova.
Chega agora Rodolfo, nosso irmão mais novo. Como uma
saudação faz roncar o motor de seu Porsche conversível, antes de desligar o
motor. Pula por cima da porta sem abri-la, típico de sua vitalidade e
juventude. Corro a abraçá-lo, meu querido Rodo... Ele roda-me no ar, em
gargalhadas os dois, enquanto os outros abanam a cabeça quase enciumados da
nossa afeição incondicional.
Rodolfo cumprimenta
a seguir nossas irmãs e cunhados e corre para a cozinha para festejar Matilde.
Ouvimos as exclamações e risadas vindas de lá. Como Matilde ama esse rapaz que
ela praticamente criou!
Mais tarde. À mesa Solange ocupou a cabeceira,
significativamente, e tentou controlar o almoço e os nossos modos, como uma
diretora de colégio. Mas eu já estava acostumada a tudo isso, enquanto Rodo
apenas ria com ironia, trocando olhares cúmplices comigo.
Após a sobremesa e o
cafezinho fugimos, Rodo e eu, para conferirmos nossas vivências no último ano
em que praticamente não nos vimos.
Segurava-me as mãos e beijava-as a toda hora. Eu lhe passava a mão nos
belos cabelos negros revoltos, e sentia
conhecê-lo como a mim mesma.
Naquela noite, a insônia nos pegou a quase todos, e ouvimos
os estalidos e o gemer da casa em seu sono agora perturbado. Cruzávamo-nos na
cozinha num vai-e-vem entremeado de pequenas conversas. Até a amanhecer nos
aquietamos. Acordei tarde com o alarido das crianças brincando no jardim.
Senti-me como se estivesse perdendo alguma coisa. “Elas começaram sem mim...”
Mas logo esse pensamento esvaneceu-se e voltei a adormecer num sonho onde me vi
criança no jardim mágico de minha própria casa, pulando amarelinha e depois
rodando um arco que me guiava até uma casinha de bonecas no jardim, onde dentro,
ocupando todo o espaço como encaixotado, estava sentado um homem sem rosto que
disse: “Alma, vim cobrar nosso pacto.
Você não deve esquecê-lo. Todo sonho tem um preço”.
Uma angústia me fez
acordar.
Ao meio-dia
estávamos todos reunidos na sala esperando o tabelião e o advogado que
chegariam logo. Passamos à biblioteca-escritório, onde fizemos um pequeno
auditório dispondo cadeiras frente à mesa de meu pai, em cuja cadeira de
espaldar se instalou o tabelião gordo, com olhos saltados atrás de grossas lentes
como um sapão, que me deu vontade de rir. Diante da solenidade dos presentes e
da situação apercebi-me da criança que eu ainda era em minha alma. Senti-me
como uma menina intrusa na sala dos adultos e quase abandonei o local para
juntar-me às crianças no jardim, para que eles pudessem decidir nosso destino enquanto brincávamos
felizes.
O notário fez um
pequeno suspense e começou a ler o testamento de meu pai. Eu podia ouvir-lhe a voz grave através da voz
estridente daquele grande sapo e notei a astúcia do meu pai em nada especificar
na partilha dos bens imóveis, que deveria assim ser divididos igualmente por
quatro, mas à parte, um lote de terra para Matilde e seu irmão Galdério, o
nosso factotum da estância.
Entretanto salvaguardava os quadros, a biblioteca, o piano Steinway e os discos
clássicos para mim, depositária da arte que havia na casa. Isso causou polêmica
imediata, pois os quadros, o piano e alguns livros eram de grande valor. Começavam ali as brigas, os ciúmes e as
mesquinharias que eu antevira.
Retirei-me rapidamente no calor da discussão, e fui
realmente me juntar às crianças.
Patricia, minha
sobrinha, bela como um anjo, deu-me a mão e fomos andar em silêncio no gramado
e pelas alamedas entre as grandes árvores.
De repente parou, olhou-me bem nos olhos e disse: “ Tia Alma, leve-me
com você. Quero viver no seu ateliê, quero ser como você, sempre criança no
meio das cores, sem meu cabelo ficar branco e sem nunca falar de dinheiro ou
gritar de raiva.”
Meus olhos marejaram
e eu a abracei forte. Que podia eu dizer-lhe senão deixar claro que eu a amava
e que ela era como eu, e que já estávamos salvas por princípio, livres do
pecado original do dinheiro, eternamente crianças e felizes em nossa suave dor
de viver amando a vida e a beleza...
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Rodo veio
encontrar-me furioso com as irmãs mais velhas e com os cunhados. A luta
começara e ele queria a minha aliança. Queria que a estância fosse só dele, com
o vinhedo, e para isso abriria mão da sua parte no casarão.
Tudo isso era esperado, eles se engalfinhariam pelos bens
materiais, pela fortuna de nosso pai, pomo da discórdia há muito pressentida.
Quanto a mim , estava disposta a abrir mão de tudo no meu sonho romântico de abrir
meu caminho e me realizar como artista pelo meu próprio valor um dia reconhecido. Vejam só... Rodo indignou- se
dizendo que não me deixaria ser espoliada por aquelas megeras, etc.
Eu deveria manter-me
serena, pois percebi que todos me procuravam como o fulcro da questão, como um
núcleo denso em torno do qual orbitavam suas paixões. Corriam para mim para que
eu arbitrasse, mas na tentativa de me
cooptarem ou seduzirem em função de seus interesses. Eu sofria com isso.
Era um papel que eu não queria, até que percebi que bastava que eu me
mantivesse íntegra e desinteressada para que suas vontades se estilhaçassem
contra o rochedo que eu me tornara.
Rodo se exaltava.
Enchia-se de cólera e se excedia na fúria verbal. Sua beleza se perdia. As
crianças começaram a brincar mas afastadas no Jardim, mais silenciosas.Eu
comecei a orar para que a paz reinasse naquela família e para que meu Deus da
Arte da Vida me inspirasse.
Alguns dias
transcorreram amargos, em que as refeições já não se faziam com a mesa
completa, sempre faltando alguns, que recarregavam nos quartos suas baterias de
fel.
Foi chamado, afinal,
por inspiração minha e por intermédio do advogado, um conselheiro espiritual:
Monsenhor Ângelo, o velho pároco da cidade, que fora amigo de meu pai e que nos
batizara a todos.
O velhinho chegou antes do almoço, com sua longa barba e o
olhar gasto, azulado, mas cheio de compaixão.
Reunimo-nos na
grande sala, as crianças inclusive, e ele, sentado numa poltrona, deixou-se
beijar a mão por cada um de nós. Depois de longo silêncio, ralhou:
- O que há com esses
brigões? Não respeitam as crianças? Lembrem-se do que Jesus falou daqueles que as
escandalizam. “Mais vale que pendurem
uma mó ao pescoço e atirem-se ao rio”. Quem de vocês não está disposto a ceder?
Somente cedendo um pouco cada um haverá concórdia na família. Quem de vocês se
chama Alma? Ah! Daqui a vejo, minha criança... Sente-se aqui ao meu lado. E
vocês devem beijar-lhe as mãos, mas não
me perguntem por quê. Somente assim a harmonia reinará entre vocês, porque não
entrarei jamais no mérito das suas polêmicas interesseiras. O segredo da paz
nesta casa está com esta menina, assim o vejo claramente. Agora vou-me embora e
não quero ouvir mais nada. A paz seja convosco se não desconhecerem o Cristo!
Fiquei tremendamente
embaraçada e impressionada enquanto os molhos da minha família pousavam sobre
mim.
Então, subitamente,
as crianças todas correram para mim e, agarrando-me as mãos e a saia,
fizeram-me rodar de braços abertos no centro da sala, de maneira insólita, para
alívio geral, e no meio de uma explosão de risos.
FIM
28/09/2001