sábado, 23 de outubro de 2021

O Testamento

 (conto de Alma Welt)

Chegou uma carta do advogado de meu falecido pai. Exige-me a presença em casa, num encontro dos irmãos para a leitura do testamento do velho, num determinado dia e hora.

Sei que isso não vai prestar. Conheço minhas irmãs e sua cobiça. Quanto ao meu irmão mais novo, este é puro e honesto, mas violento e exaltado por pura paixão de viver.

 Todavia não me esquivarei desse ato penoso, nem aceitarei mais nenhuma procrastinação. Cada hora uma está em viagem e esperamos esse dia como uma sentença do irmão mais novo de Deus, que era o nosso pai, em sua autoridade e juízo inquestionáveis desde a nossa infância temerosa.  Na verdade falo isso mais por elas, pois eu era a queridinha, a caçula sobre quem ele derramava a sua doçura insuspeitada.

Tínhamos um pacto, meu pai e eu. Sentada sobre seus joelhos, ao meu ouvido ele segredou esse pacto que por ora não revelarei. No devido tempo tirarei uma carta da manga.  Mas nada farei pra prejudicar ninguém, jamais, mesmo aos que me ofenderem.

Feitas as malas, olho meu ateliê com carinho e já com saudade. Junto à porta ajeito a tabuleta que está torta, a que adicionei um “a”:  “Pintora, pinta!”

Não falarei da viagem de ônibus, dos meus pensamentos em retrospectiva, cheios de flagrantes, de flashbacks entre o cochilo e a vigília cercada de paisagens fugidias, que meus olhos captam para futuras telas transfiguradas.

Chego à mansão de nossos pais, que diminuiu muito pouco com o tempo. Tudo tão velho! Tudo um pouco exagerado, como se fosse possível uma escala mais modesta para absolutamente tudo dentro dela. A verdade é que me pai, embora médico,  possuía uma visão senhorial do mundo, contra a qual me rebelei na adolescência, com inesperada condescendência do velho, que quase não lutou contra a minha saída. Ele tinha aceito minha vocação de artista, que na verdade estimulara desde que eu era pequena, mostrando-me livros e quadros e liberando sem ressalvas meu acesso à sua vasta biblioteca clássica. Lembro-me do episódio em que o fator de discussão entre meus pais foram as reproduções na seção de cultura de uma revista médica, que meu pai deixou  à mostra em  sua mesa de cabeceira: uma série de fotografias de obras pictóricas e escultóricas clássicas sobre o tema “Leda o Cisne”.  Ao ver aquelas imagens estranhas, ambíguas (eróticas, depois eu soube) fiquei agradavelmente perturbada, se posso dizer assim. Excitada. Um cisne entre as pernas... Minha mãe estrilara. Poucas vezes eu a vi assim, enfrentando-o com uma  fúria sagrada de moralista intransigente. Exigia a destruição daquela revista, dizendo não admitir pornografia em casa. Pela primeira vez  vi meu pai na defensiva,  argumentando serem mitologia grega em obras de arte consagradas, de Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Verrocchio,  etc,  o que não adiantava diante da exaltação inusual de minha mãe, que invocava a inocência dos filhos e a moral familiar, nominando aquilo de pura sujeira.

Bem, esta lembrança agora já podia se desvanecer, purgada como tantas. Só para isso já serviria minha vinda a esta casa pela primeira vez desde a morte de meu pai. Recordo então o velório à antiga, no salão, entre velas e o nosso choro abafado, em contraponto ao copioso pranto da nossa  cozinheira e do motorista fiel.

Encontro agora a recepção efusiva de Matilde, nossa cozinheira, à porta de entrada, com abraços e exclamações carinhosas.  Está envelhecida somente pelas rugas mas com o mesmo entusiasmo de sempre. Chama-me sua “menina”,  com lágrimas nos olhos.

Subo para o meu quarto e desfaço as malas, pondo minhas roupas no armário onde encontro alguns vestidos de minha adolescência e decalques gastos nas portas, por dentro.

 Nada parece mudar nesta casa, mas apenas envelhecer, fanar-se lentamente.Ninguém ousaria tirar uma poltrona do lugar. Por que isso? A presença demasiado forte de meu pai cristalizou-a como um encanto e não me admiraria de ver, desta janela, um denso espinheiro impenetrável cercando a casa adormecida.

 No fundo de uma gaveta encontro uma pasta com um poema meu dentro, escrito aos 16 anos, de um romantismo obscuro e místico que me causou  agora estranheza e um rubor que senti nas faces:

 ORSILIA

Numa floresta gótica jaz,

 erma e terrível, a lembrança de Orsília

 A mágica luz dos entre-arcos, que nenhum vento distorce

pousa em algum lugar de seu corpo um reflexo de dor.

Nenhuma oscilação afugenta o espírito em seu retorno

mas toda a atmosfera submete-se a uma paz ditada pela morte.

 

O silêncio canta uma balada ancestral.

Nem a névoa estagnada dos pântanos

nem o petrificado gesto do íbis

se dispersa ante tão suave angústia.

 

Orsilia vagueia seu amor translúcido,

seu triste amor , agora isento de recordações

....................................................................

 à margem de uma estrada, um vento sofre nas ramadas.

 

Desço em seguida para a sala e entro na biblioteca contígua,  para repassar com o olhar  os volumes tão queridos. Os clássicos: a Odisseia e a Ilíada de Homero, a Divina Comédia de Dante Alighieri, o Don Quixote, de Cervantes, o Paraíso Perdido, de Milton, o Gargantua e Pantagruel,  de Rabelais , todos grandes volumes ilustrados por Gustave Doré, meu primeiro grande paradigma de desenhista. Descobri mais tarde que seus desenhos estavam desvirtuados nessas edições  pela interpretação estereotipada e maneirista de xilógrafos da época, e que seu traço maravilhoso só sobrevivia nas vinhetas. E esse traço me interessava tanto quanto as estórias a que ele estava a serviço.

 Corro os olhos pelo resto da biblioteca com fotos pousadas aqui e ali, como se ouvisse o som da Gymnopédie, de Eric Satie, no filme “Feu Follet” (Fogo Fátuo - “Trinta anos esta noite”) .

 Logo o som do piano em minha mente é perturbado pelo ruído de carros chegando, com suas portas batendo, e o burburinho da chegada de minhas irmãs com seus maridos e filhos. Vou recebê-los, vagamente contrariada. Lucia e Geraldo e o casal de gêmeos. Solange com a filhinha Patricia e o marido Alberto abraçam-me, falando sem parar. Meus sobrinhos disparam pelo jardim, depois de um beijo rápido. Como são lindas estas crianças! Quero estar com elas, conversar e brincar com elas, só assim estarei paga por esta viagem, que pressinto dolorosa pelo que nos espera de conflitos e mesquinharias. A verdade é que eu vivi sempre sob a égide do prazer, e a mim mesma me admiro por ser relativamente sóbria, salvo pela paixão que nutro, vez por outra, pelos eleitos do meu coração.

Na sala conversamos um pouco enquanto Solange, pragmática, dá ordens para o almoço enquanto Aberto seve coquetéis, com aquele olhar brilhante e rosto rubicundo de alcoólatra moderado.

 Em meio à reunião, amena, como uma trégua a anos de guerra surda entre os dois casais, em que me coloquei sempre à parte, neutra por prudência e desinteresse, já que minha arte me supre de tudo, e nada pode atingir-me desde que permaneça fiel ao conselho de Leonardo Da Vinci a um seu discípulo: “Se queres ser um bom artista não deves sofrer senão pela tua arte”. Mas não sei se posso permanecer inatingível , à toda prova.

Chega agora Rodolfo, nosso irmão mais novo. Como uma saudação faz roncar o motor de seu Porsche conversível, antes de desligar o motor. Pula por cima da porta sem abri-la, típico de sua vitalidade e juventude. Corro a abraçá-lo, meu querido Rodo... Ele roda-me no ar, em gargalhadas os dois, enquanto os outros abanam a cabeça quase enciumados da nossa afeição incondicional.

 Rodolfo cumprimenta a seguir nossas irmãs e cunhados e corre para a cozinha para festejar Matilde. Ouvimos as exclamações e risadas vindas de lá. Como Matilde ama esse rapaz que ela praticamente criou!

Mais tarde. À mesa Solange ocupou a cabeceira, significativamente, e tentou controlar o almoço e os nossos modos, como uma diretora de colégio. Mas eu já estava acostumada a tudo isso, enquanto Rodo apenas ria com ironia, trocando olhares cúmplices comigo.

 Após a sobremesa e o cafezinho fugimos, Rodo e eu, para conferirmos nossas vivências no último ano em que praticamente não nos vimos.  Segurava-me as mãos e beijava-as a toda hora. Eu lhe passava a mão nos belos cabelos negros revoltos,  e sentia conhecê-lo como a mim mesma.

Naquela noite, a insônia nos pegou a quase todos, e ouvimos os estalidos e o gemer da casa em seu sono agora perturbado. Cruzávamo-nos na cozinha num vai-e-vem entremeado de pequenas conversas. Até a amanhecer nos aquietamos. Acordei tarde com o alarido das crianças brincando no jardim. Senti-me como se estivesse perdendo alguma coisa. “Elas começaram sem mim...” Mas logo esse pensamento esvaneceu-se e voltei a adormecer num sonho onde me vi criança no jardim mágico de minha própria casa, pulando amarelinha e depois rodando um arco que me guiava até uma casinha de bonecas no jardim, onde dentro, ocupando todo o espaço como encaixotado, estava sentado um homem sem rosto que disse: “Alma,  vim cobrar nosso pacto. Você não deve esquecê-lo. Todo sonho tem um preço”.

 Uma angústia me fez acordar.

 Ao meio-dia estávamos todos reunidos na sala esperando o tabelião e o advogado que chegariam logo. Passamos à biblioteca-escritório, onde fizemos um pequeno auditório dispondo cadeiras frente à mesa de meu pai, em cuja cadeira de espaldar se instalou o tabelião gordo, com olhos saltados atrás de grossas lentes como um sapão, que me deu vontade de rir. Diante da solenidade dos presentes e da situação apercebi-me da criança que eu ainda era em minha alma. Senti-me como uma menina intrusa na sala dos adultos e quase abandonei o local para juntar-me às crianças no jardim, para que eles pudessem  decidir nosso destino enquanto brincávamos felizes.

 O notário fez um pequeno suspense e começou a ler o testamento de meu pai.  Eu podia ouvir-lhe a voz grave através da voz estridente daquele grande sapo e notei a astúcia do meu pai em nada especificar na partilha dos bens imóveis, que deveria assim ser divididos igualmente por quatro, mas à parte, um lote de terra para Matilde e seu irmão Galdério, o nosso factotum da estância. Entretanto salvaguardava os quadros, a biblioteca, o piano Steinway e os discos clássicos para mim, depositária da arte que havia na casa. Isso causou polêmica imediata, pois os quadros, o piano e alguns livros eram de grande valor.  Começavam ali as brigas, os ciúmes e as mesquinharias que eu antevira.

Retirei-me rapidamente no calor da discussão, e fui realmente me juntar às crianças.

 Patricia, minha sobrinha, bela como um anjo, deu-me a mão e fomos andar em silêncio no gramado e pelas alamedas entre as grandes árvores.  De repente parou, olhou-me bem nos olhos e disse: “ Tia Alma, leve-me com você. Quero viver no seu ateliê, quero ser como você, sempre criança no meio das cores, sem meu cabelo ficar branco e sem nunca falar de dinheiro ou gritar de raiva.”

 Meus olhos marejaram e eu a abracei forte. Que podia eu dizer-lhe senão deixar claro que eu a amava e que ela era como eu, e que já estávamos salvas por princípio, livres do pecado original do dinheiro, eternamente crianças e felizes em nossa suave dor de viver amando a vida e a beleza...

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 Rodo veio encontrar-me furioso com as irmãs mais velhas e com os cunhados. A luta começara e ele queria a minha aliança. Queria que a estância fosse só dele, com o vinhedo, e para isso abriria mão da sua parte no casarão.

Tudo isso era esperado, eles se engalfinhariam pelos bens materiais, pela fortuna de nosso pai, pomo da discórdia há muito pressentida. Quanto a mim , estava disposta a abrir mão de tudo no meu sonho romântico de abrir meu caminho e me realizar como artista pelo meu próprio valor um dia  reconhecido. Vejam só... Rodo indignou- se dizendo que não me deixaria ser espoliada por aquelas megeras,  etc.

 Eu deveria manter-me serena, pois percebi que todos me procuravam como o fulcro da questão, como um núcleo denso em torno do qual orbitavam suas paixões. Corriam para mim para que eu arbitrasse, mas na tentativa de me  cooptarem ou seduzirem em função de seus interesses. Eu sofria com isso. Era um papel que eu não queria, até que percebi que bastava que eu me mantivesse íntegra e desinteressada para que suas vontades se estilhaçassem contra o rochedo que eu me tornara.

 Rodo se exaltava. Enchia-se de cólera e se excedia na fúria verbal. Sua beleza se perdia. As crianças começaram a brincar mas afastadas no Jardim, mais silenciosas.Eu comecei a orar para que a paz reinasse naquela família e para que meu Deus da Arte da Vida me inspirasse.

 Alguns dias transcorreram amargos, em que as refeições já não se faziam com a mesa completa, sempre faltando alguns, que recarregavam nos quartos suas baterias de fel.

 Foi chamado, afinal, por inspiração minha e por intermédio do advogado, um conselheiro espiritual: Monsenhor Ângelo, o velho pároco da cidade, que fora amigo de meu pai e que nos batizara a todos.

O velhinho chegou antes do almoço, com sua longa barba e o olhar gasto, azulado, mas cheio de compaixão.

 Reunimo-nos na grande sala, as crianças inclusive, e ele, sentado numa poltrona, deixou-se beijar a mão por cada um de nós. Depois de longo silêncio, ralhou: 

 - O que há com esses brigões? Não respeitam as crianças?  Lembrem-se do que Jesus falou daqueles que as escandalizam. “Mais vale  que pendurem uma mó ao pescoço e atirem-se ao rio”.  Quem de vocês não está disposto a ceder? Somente cedendo um pouco cada um haverá concórdia na família. Quem de vocês se chama Alma? Ah! Daqui a vejo, minha criança... Sente-se aqui ao meu lado. E vocês devem beijar-lhe as mãos,  mas não me perguntem por quê. Somente assim a harmonia reinará entre vocês, porque não entrarei jamais no mérito das suas polêmicas interesseiras. O segredo da paz nesta casa está com esta menina, assim o vejo claramente. Agora vou-me embora e não quero ouvir mais nada. A paz seja convosco se não desconhecerem o Cristo!

 Fiquei tremendamente embaraçada e impressionada enquanto os molhos da minha família pousavam sobre mim. 

 Então, subitamente, as crianças todas correram para mim e, agarrando-me as mãos e a saia, fizeram-me rodar de braços abertos no centro da sala, de maneira insólita, para alívio geral, e no meio de uma explosão de risos.

FIM

28/09/2001

sexta-feira, 5 de março de 2021

DIÁLOGO DE SOMBRAS (de Alma Welt)

Num velho parque duas sombras se encontraram, no meio da grande cidade. Uma disse depois de longamente se olharem: "Estamos mortas, talvez não saibas. Vivas, vivíamos no Vale de Lágrimas e então passamos ao Inferno. A diferença é pouca e mal percebemos. A multidão continua vagando a esmo e não se deu conta, assim como não acreditava no próprio Vale, apesar de tudo. São sonâmbulos felizes... deixa-os. O Inferno não tem poder sobre tal crença na Felicidade. Será isso talvez o Paraíso: uma cegueira que nem a Morte pode destruir... "
Mas a outra sombra até então calada, disse: " Então vou juntar-me à multidão, que me parece mais sábia do que tu. Ela descobriu o modo de não sofrer, que é a simples aposta na felicidade. Vê como somos escuras aqui neste tenebroso parque. Vê como elas, cegas, procuram a luz do sol... Deixa-me, tua lucidez é sombria, és a sombra de uma sombra. Adeus, amiga, deixa-me ir com elas para a luz, rumo ao sol, ao sol, ao sol...
E a sombra se afastou sorrindo e lentamente diluiu-se na luz...
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04/03/2021

terça-feira, 28 de abril de 2020

A Lenda do Pão Milagroso (de Alma Welt)

Numa aldeia do sul da Itália, durante a Idade Média, não sabemos bem o ano, uma jovem bonita de origem camponesa, órfã, chamada Angela, criada por uma família pobre que a adotara ainda pequena, querendo agradar os seus pais adotivos, um dia sozinha na pobre cozinha fez um grande pão doce, com os ingredientes comuns ao seu alcance e serviu-o pela manhã aos velhos pais. O velho casal comendo aquele pão ficou maravilhado com o seu sabor, tanto mais que não sabiam que a menina tinha dotes culinários, e era para eles já uma benção ser ela própria doce e meiga. Logo pediram para a garota fazer mais, para distribuir um pouco aos vizinhos, já que aquela era uma comunidade particularmente solidária. Os agraciados com aquela dádiva também ficaram deslumbrados com a verdadeira iguaria que era aquele simples pão adocicado, que parecia deixar as pessoas imediatamente felizes ao saboreá-lo. Naturalmente alguns pediam a receita à menina, que a cedia de bom grado, generosamente dando a lista muito simples dos ingredientes e as quantidades. Entretanto não conseguiam nem chegar perto de igualar a maravilha do sabor original do pão especial da Angelina, como chamavam carinhosamente a mocinha, que parecia deixar imediatamente as pessoas felizes, mesmo naquela pobreza geral.

Aconteceu que a fama daquele pão milagroso se espalhou pela região, que coincidentemente ou não, recebeu naqueles dias a visita do arcebispo do condado, que se instalou no casarão mais vetusto e digno da aldeia, do qual fez sua casa episcopal.

Ouvindo falar da única novidade daquela aldeia, imediatamente mandou chamar aquela família e interrogou-a um tanto rispidamente sobre aquele pão que o povo já chamava de milagroso. Exigiu que a família lhe trouxesse um exemplar para prová-lo segundo as regras da Igreja. A menina se esmerou, como sempre, e o arcebispo ao prová-lo ficou subitamente deslumbrado, mas logo se controlou, fechou o cenho e disse ameaçadoramente:
- O que é isso? Este pão tem um sabor celestial, nos remete ao paraíso, e isso é blasfêmia! Por acaso és uma santa ou um anjo? Apesar de teu nome, certamente que não! O paraíso nos foi interditado por Deus. É um imenso pecado trazer-nos, deste modo comezinho, a ilusão pecaminosa da felicidade terrena.
És uma bruxa, rapariga, e vais pagar por tal blasfêmia perante nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santa Igreja representada aqui por mim! Mas antes vais confessar o ingrediente mágico ou o sortilégio que agregaste a este maldito pão. Vais repetir aqui na minha cozinha a tua falsa fórmula e se na conseguires o mesmo sabor saberei que excluíste marotamente o ingrediente mágico!

Angelina, assustada, se esmerou na cozinha do bispo e com os poucos ingredientes pedidos por ela, conseguindo o mesmo resultado maravilhoso.
Foi a conta... O bispo, furioso em seguida ao momento de prazer que ele prontamente exorcizou de si, gritou:

-És uma bruxa! Confessa o ingrediente proibido ou o feitiço que disfarçadamente puseste na massa. Qual é ele, confessa!

Angelina assustadíssima, em lágrimas, respondeu:

-Mas, Sua Santidade, é amor...

-Amor de Deus? - insistiu o arcebispo- Certamente que não. Acaso és um anjo? Os anjos se retiraram da Terra há muito tempo. Amor das trevas, isso sim! Não temos direito à felicidade terrena. Ninguém tem!

- Amor somente, Senhor... Simplesmente amor – gemeu a menina.

O arcebispo, mais furioso ainda, mandou que a torturassem para ela confessar o ingrediente secreto. Sem obter resultado, pois a menina, sob terríveis torturas afirmava que nada tinha escondido, nada tinha a esconder.

Então, na pequena praça daquela aldeia, sob os insultos dos aldeões e as lágrimas de alguns, também, Angela sofreu o martírio das chamas.

Diz a lenda, que no meio das cinzas restou não o coração intacto da donzela doceira, mas um pãozinho perfeito, quentinho e doce, que desde então se encontra, meio comido, como única relíquia venerada pelo povo, num escrínio na capela da aldeia...
FIM
28/04/2020

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Anagramas (de Alma Welt )

08/05/2006 
De repente, há poucos dias, tive o súbito impulso de fazer anagramas. Tudo começou após a visita ao meu atelier, de uma nova amiga, a grande artista plástica Renina Katz, gravadora emérita: xilógrafa, litógrafa e água- fortista soberba. Grande dama da gravura brasileira, Renina é uma mulher madura e bela. Soube que despertou inúmeras paixões em sua juventude. O pobre do Pancetti, grande pintor e um homem simples, tinha-lhe adoração, não correspondida, claro. Soube que quase duelou por ela, acreditando-a ofendida por alguém. Renina apenas admirava-lhe a obra, havendo um abismo social e cultural entre eles. Naturalmente Renina não me falou nada sobre isso. Descobri essas curiosidades de sua biografia, num antigo número de uma revista extinta, numa excelente matéria sobre o marinheiro pintor. Refinada e culta, muito viajada, Renina honrou-me com a sua visita e fiquei horas a ouvi-la, prazerosamente. A uma certa altura de nossa conversa, citou o anagrama famoso de Salvador Dali: Avida Dollars, descoberto por André Breton. A propósito, Renina comentou: –“ O anagrama do meu nome parece difícil de encontrar. Alguém, uma vez, descobriu o seguinte: ZENIT KRANA. Mas não sei o que significa...” Após a sua saída, e com aquele anagrama ressoando em meus ouvidos, resolvi tentar. Sentei-me com caneta e papel e surgiu imediatamente: ANKRANZEIT A seguir: ANANKE RITZ Fiquei tremendamente intrigada. Mas, com a presença da palavra Katz ( gato), o anagrama só poderia mesmo ser em alemão, já que o K , nem existe em nossa língua. E o segundo anagrama, com a presença de uma palavra grega?. Resolvi fazer uma pesquisa para encontrar o nexo destas palavras enigmáticas em alemão e grego. Descobri o seguinte: AN= perto de, junto ou quase. KRANZ= coroa ZEIT= tempo ANKRANZEIT = PERTO DA COROA DO TEMPO Consultando diversos tratados de filosofia pré-socrática, cruzando suas rarefeitas informações sobre a filosofia grega dos tempos arcaicos, e ainda rejeitando a Teogonia poética de Hesíodo, que coloca o Caos e Noite como princípios, encontro, afinal, em teogonistas ainda mais antigos, como Jerônimo e Helânico, a seguinte teogonia órfica (aqui resumida): ANANKE = Princípio teogônico feminino da Necessidade( na Doutrina Órfico–Pitagórica) . Tinha inúmeras naturezas, como Fado (Destino), Moira( Morte), Dyke (Justiça), Nyke (Vitória). TEOGONIA (Geração dos Deuses) : No Início era Kronos (Zeit), o Tempo. A seguir, Kronos se acasala com Ananke (a Necessidade) para produzir uma “tríplice prole” ( para isso ele rejeita Adrastéia, princípio da Necessidade incorpóreo, disseminado no espaço ...(Conceito esse extremamente obscuro ). Do casamento de Kronos e Ananque ( o Tempo com a Necessidade) é gerado : o ÉTER úmido, o Kaos infinito, e o Érebo nebuloso ( região subterrânea , que mais tarde gerará o Hades.) Mas o que significava tudo isso em relação à Renina? E o que significava ANANKE RITZ, esse segundo anagrama completo que surgira? RITZ ( alemão)= fenda, racha, arranhão, ferida . ANANKE RITZ= a fenda de Ananke Continuei minhas pesquisas, e sabendo que Platão ( séculos V e IV aC ) era um órfico tardio ( Orfismo= religião de Mistérios, a mais antiga doutrina reencarnacionista do Ocidente, com origem anterior ao século VII aC, relacionada aos Mistérios de Elêusis), procurei rever os Mitos narrados em seus Diálogos. Passei ao largo do famoso Mito da Caverna, tão caro aos psicanalistas, e acabei me concentrando no Mito de Er ( o Armênio), que fala do “Fuso de Ananke”, nas dez últimas páginas da REPÚBLICA . Estudando esse mito, tudo começava a se esclarecer: FENDA, era o próprio sentido etimológico da palavra Ananke, que deriva de uma raíz presente no egípcio antigo. Em termos visuais era, também a reversão gestáltica do FUSO ( a coluna de luz que une o Céu à Terra , dento da qual girava o fuso em forma de oito “pesos” ou cones de metal, invertidos, girando em torno de um eixo, formando órbitas circulares. Os bordos circulares dos cones, formavam círculos concêntricos, que rodavam com um jogo complexo de cores e números pelo movimento impresso a eles pela mão das três Parcas: Láquesis, Cloto e Atropos, respectivamente, o Passado, o Presente e o Futuro. Esse movimento de números e cores, colocado em tabelas pelos matemáticos do século XX , produz maravilhas matemáticas em torno do número 9,( numero perfeito para eles). Além disso, essas órbitas , descreviam as dos planetas do nosso sistema solar, isto é, somente as dos conhecidos no tempo de Platão. Resumindo, eu estava diante da Teogonia Órfica a mais secreta, somente acessível aos iniciados ( tenho medo de estar revelando-a aqui ). Tudo se esclarecia para mim . A estrutura arquetípica das gravuras da Renina ficava clara : ÉTER —zona superior da gravura KAOS —zona intermediária ÉREBO—base, zona mais densa da gravura Suas gravuras tinham a estrutura espacial de aparentes paisagens abstratas, que eram assim divididas e o círculo que, muitas vezes ela inseria na região intermediária entre o Éter e o Kaos, era a representação gráfica do Ovo Primogênito do qual nascia ZEUS, o Princípio Ordenador do Universo, que daria início aos Protágonos, isto é, os outros primeiros deuses. Por isso , Renina, quando lhe perguntavam sobre esse círculo, se era a Lua , o Sol, ou a Terra vista de um outro planeta, árido, respondia : “ Não, isso está aí por uma “necessidade” plástica de “ordenar” o espaço”. Estava aí o segredo. A estrutura arquetípica de suas obras, continha ainda outros mistérios: na Doutrina Órfica, as Almas estavam encerradas nos corpos dos TiTÃS raça de gigantes, da qual Prometheu seria o mais famoso representante), quando estes se insurgiram contra ZEUS . Durante a formidável batalha ( TEOMAQUIA, ou Titanomaquia ) entre eles e os deuses, os Titãs estraçalharam e devoraram Dionisos criança. Os Titãs foram vencidos e Zeus fulminou-os com seus raios, e atirou-os à Terra. Das cinzas dos Titãs, Zeus criou o Homem , cuja alma é Dionisos encerrado no corpo titânico pecaminoso que busca recuperar as asas para retornar ao EMPÍREO, a morada dos Deuses e das Almas purificadas , após “dez ciclos de mil anos de reencarnações”. Prosseguindo nas minhas pesquisas esotéricas, encontro uma raríssima referência àquela COROA: Nos sepulcros órficos de Thuri, na Magna Grécia, foram encontradas, junto dos corpos de fiéis, “lamínulas” de ouro onde estavam inscritas orações das almas dirigindo-se à PERSÉFONE, ( rainha do HADES e intercessora das almas ). Havia uma que dizia : “... e voando cheguei perto da ambicionada coroa.” E a Deusa responde: “ abençoada cara Alma , serás transformada em Nume.” Descobri então que coroa era como os órficos chamavam o circulo que cingia o ponto mais alto do Empíreo, que as almas que recuperavam as asas , tentavam atingir , afim de descortinar “um maravilhoso vale , nunca descrito por nenhum poeta.” O círculo, nas gravuras, comportava, portanto, esta segunda interpretação. Estava claro, agora, para mim o significado das obras da Renina. Pequenos grafismos, parecendo asas , que se aproximavam do círculo que ela inscrevia na região intermediária de suas obras, nessa fase, como aves noturnas aproximando-se do círculo da Lua, eram , na verdade isso: as almas aladas tentando chegar perto( AN ) da ambicionada coroa ( KRANZ) de KRONOS ( ZEIT ). Agora ficava fácil, também , descobrir o significado do anagrama anterior que lhe fizeram : ZENIT KRANA ZÊNIT: palavra persa que significa um determinado lugar no espaço, culminante. KRANA, (o mesmo que Akarana) : conceito do Tempo Infinito no ZEND AVESTA ( religião filosófica da antiga Pérsia), equivalente ao KRONOS grego. Quando perguntavam à Renina o quê ela desenhava, ela dizia, instintivamente: “ESPAÇO e TEMPO.” ( Zenit Krana) Remeti o novo duplo anagrama , e o resultado da análise dos três, à Renina, que ficou encantada, transcrevendo-os num lindo álbum de anotações e esboços. Na verdade, essa pesquisa deixou-me exausta. Eu penetrara nas imediações dos Mistérios de Elêusis e isso não se faz impunemente. Tinha uma dor persistente na base do crânio, na região do cerebelo, onde se origina o pensamento espiritual. Eu puxara muito por ele. Agora estava exaurida e temerosa, embora intrigada. Porquê o Orfismo, religião secreta da Antigüidade grega, se apresentara a mim através do anagrama da Renina? Bem, sabemos que tais coisas estão no nosso inconsciente coletivo, mas trazê-las à tona pode ser perigoso... Passei uns dias de molho. Sentia-me exaurida, ao mesmo tempo que enriquecida ( contradição em termos ). Foi quando recebi um telefonema que iniciou todo um processo similar. Tratava-se do pintor Guilherme de Faria , que, amigo da Renina, e ouvindo-a falar do fenômeno do seu duplo anagrama feito por mim, resolveu me contatar. Marcou dia e hora para sua visita e no dia combinado, um pouco mais cedo, tocava o interfone, denunciando sua ansiedade em consultar-me. Cheguei a pensar em dali por diante cobrar consultas anagramáticas, já que isso me custava tanto, mas... Abri a porta, e o pintor, extremamente conhecido, adentrou o meu atelier. Tratava-se de um homem de meia idade, simpático, de cabelos e barba branca, com uma aparência patriarcal e bonachona, logo desmentida por sua voz que evidenciava , talvez, uma imaturidade emocional que lhe dava um ar de garotão quando falava. Simpatizei imediatamente com ele. Na verdade, atraiu-me muito, mas tomei um ar distante, inatingível, profissional, de vidente ou coisa parecida. A situação me divertia. Guilherme botou seus olhos agudos de pintor sobre mim, como se quisesse me devorar. Mas ao mesmo tempo percebia-lhe a doçura. Era uma coisa contraditória... Em poucos minutos sentíamos, como se nos conhecêssemos há gerações... Quando afinal entramos no assunto dos anagramas, já estávamos íntimos o suficiente para ele começar a narrar o sonho que o trouxera aqui para esta consulta. Ele disse: “Tive um sonho, mais real que a realidade circundante. Isto é, quando acordei, as coisas e as pessoas não me pareciam tão nítidas e reais como o que eu vi no sonho. Entretanto, não houve transição, na passagem do sono para a vigília e a memória não desvaneceu. O sonho continuava nítido, fresco e real na memória e assim está passado já dois meses. Foi o seguinte: "Ví-me a bordo de uma nau, de velas, típica do século XVII, assim como tudo que me rodeava. Minha roupa era simples, de soldado, um gibão cingido por um grande cinto de couro, calções bufantes e botas de cano dobrado com saltos altos e grandes fivelas, punhos grandes virados, um grande chapéu com uma pluma e uma espada na cintura. Eu conversava com o capitão do navio, figura terrível, calvo, com grandes bigodes de pontas reviradas para cima, grotescamente enfeitado, com tranças que lhe saiam dos lados da calva. Brincos nas orelhas e um olhar sarcástico e mau. A figura típica de um capitão pirata. Nós estávamos no tombadilho, e ele me perguntava o que eu queria como minha parte no botim ( no saque de uma nau, que estava ainda longe no horizonte e que certamente o capitão pretendia atacar.) Eu lhe respondi que queria, das obras de arte que houvesse a bordo, somente os quadros. O capitão, com uma risada mais sarcástica ainda, disse-me que sim , que os quadros seriam meus. Aquilo aguçou ainda mais a minha cobiça e eu não via a hora de botar os olhos e as mãos naqueles quadros. Afinal, o galeão, à medida que se aproximava, mais evidenciava sua origem nobre e a riqueza potencial de sua carga". "No momento seguinte do sonho, após um corte cinematográfico, me vi no meio de um terrível combate de abordagem , com os marujos piratas lançando ganchos nas amuradas do outro navio para puxarem-no perfilando-o e saltando para ele pendurados nas cordas que pendiam dos mastros. Tiros, fumaça, odor de pólvora, gritos e sangue. Terríveis golpes mutilantes de sabre, de lado a lado. Quanto a mim, estava apavorado. Eu tinha minha espada na mão e lutava o menos possível, esquivando-me e pondo-me sempre atrás dos companheiros, fazendo o possível para evitar confrontos diretos, disfarçando e poupando-me ao máximo, com grande medo de ser ferido, mas avançando dessa maneira escusa, movido apenas pela cobiça e avidez pelas obras de arte prometidas pelo capitão. Afinal, para meu alívio, houve outro corte cinematográfico no sonho e eu me vi, o combate terminado, o navio abordado, dentro de um camarote luxuosíssimo, que seria o do capitão do navio vencido. Havia corpos mutilados e sangue por toda parte, dentro daquele camarote. Eu estava, afinal, diante dos quadros que forravam as paredes, desde o roda-pé até o teto baixo, passando pelos lados e por cima de uma belíssima cama de dossel. Cercavam-me vários marinheiros e o Capitão que me olhava sempre com aquele sorriso irônico, cofiando os grandes bigodes. Vi-me observando um grande quadro que retratava um nobre, de pé, nitidamente um Velazquez. Havia também pequenos quadros da escola holandesa: Vermeer e Rembrandt, bem reconhecíveis ali. Uma cena religiosa de El Greco. Uma natureza morta de Zurbarán , bem como uma sua Santa Ágata , servindo seus próprios seios, como pêssegos em calda, numa bandeja. Quando os admirava, cheio de cobiça, percebia, com dor, os furos e cortes que havia naquelas telas como resultado dos combates dentro daquele camarote. Mas eu pensei imediatamente nuns potes de pigmentos e pincéis que eu tinha visto, de relance, insolitamente num canto do tombadilho do navio tomado. Pensava num jeito instintivo de salvar aquelas telas puxando o tecido por trás, colando-o sobre pedaços de velame e retocando com aquelas tintas. Eu apontei, escolhendo a primeira obra: Esse aqui!, Nesse momento ouvi atrás de mim, bem alto uma voz que disse: Não! Esse é meu! Tive um aperto no coração, disfarcei, e sem voltar-me, prossegui: Esse aqui!. Novamente ouvi a voz atrás de mim: Não, esse também é meu! Voltei-me afinal e vi-me diante de um fidalgo ou coisa parecida, ricamente vestido, como um nobre, com um gibão prateado e um colar de ouro e pedras que lhe ornava o peito, e calções bufantes cheios de laçarotes, fitas e fivelas. Botas reviradas maravilhosas mas exageradas, com enormes saltos e fivelas de prata imensas. Punhos de renda, bem como a ampla gola faziam supor gestos amaneirados, entretanto ele se mantinha numa única postura, ameaçadora: as costas do punho esquerdo apoiada na cintura acima do cinto que sustentava a espada. A perna direita avançada, e a mão destra empunhando a espada sem sacá-la ainda. Tive um arrepio de medo, que aumentou quando pude ver que seu rosto era... o meu! Apenas com os cabelos mais longos repartidos no meio, ( parecido ao que eu usava nos anos 70). Os bigodes finos com pontas reviradas para cima, e um olhar ainda mais sarcástico do que o do capitão. Disfarcei e continuei a minha escolha, sempre contestada por ele com o seu: “Não, é meu!” Eu sentia a minha parte no botim esvair-se por entre meus dedos. O pior: os marujos e o capitão estavam às gargalhadas, e insuflavam o conflito iminente. Gritavam: “vamos ver, vamos ver, para quem vão ficar esses quadros!”Alguns rolavam no chão do camarote, com as mãos na barriga de tanto rir. O capitão tinha um esgar malévolo, esfregando os punhos com os seus olhos brilhantes de demônio. Eu via claramente que não poderia me esquivar a esse combate. Eu teria que duelar pelos quadros com aquele homem, que devia ser um corsário, e um terrível espadachim, a julgar pela sua postura. O meu tesouro se esvaía. A angústia que me tomou, foi subindo, subindo e me fez acordar, interrompendo a cena e talvez salvando-me da visão de um terrível vexame. Alma, Alma diga-me, você pode desvendar esse sonho para mim? Tenho ouvido falar de seus dons de interpretação e de análise de anagramas. Você pode me ajudar. Continuo sob o efeito humilhante desse sonho, se é que isso foi um sonho...” – Guilherme, –disse eu– Posso tentar fazer o seu anagrama. Mas não posso prometer nenhum resultado, pois não sei se saberei interpretar as palavras, ou frases que surgirem. Mas vamos lá... Peguei papel e caneta, sentei-me à mesa e escrevi o seu nome pondo-me num estado de abstração, com a mente em branco, que uso para desenhar com a técnica Zen. Surgiram imediatamente as palavras: GUILHERME DE FARIA FEIG MURALHA DE REI A seguir um novo anagrama : DARA EFIGIE MULHER E mais outro: ILHA GERME DE FURIA Guilherme acompanhava tenso minha mão que colhia as palavras rapidamente. Estava muito sério e emocionado. Parecia pressentir-lhes o significado, como eu, antes mesmo de decifrarmos o sentido delas ou das frases. Comecei a analisá-las, intuitivamente assim: FEIG, nome alemão que significa homem vil, covarde. Tratava-se do personagem em que ele se via no sonho. Podia ao mesmo tempo tratar-se de um típico sobrenome alemão como Veiga em português que tem nitidamente a mesma raiz etimológica: o V como abrandamento do F germânico, e um A, vogal eufônica, adicionada ao G final ( gutural germânico ) e a leitura fonética direta EI, em vez da pronúncia alemã “FAIG”. Assim, também , o nome Viegas tem a mesma etimologia, bem como Faio. À propósito, Guilherme lembrou de um seu antepassado, português do século XVII, aventureiro mercenário, um tipo picaresco de anti-herói, chamado Lourenço Dias Viegas. Prosseguindo: FEIG ( junto à )MURALHA ( de um )REI Ou : FEIG sentinela do REI DARÁ um retrato(EFIGIE) de MULHER A uma ILHA, originando(GERME) a Guerra (FURIA) Enfim: O soldado alemão Feig, dará á sua Ilha natal, o retrato de mulher roubado ao castelo do rei (da Prússia?), do qual foi sentinela antes de desertar (Feig= covarde= desertor). Isso o tornou proscrito, fazendo-o juntar-se a outros apátridas, isto é, piratas. Daí por diante, obcecado por aquela imagem do retrato (efígie ), pela qual se apaixonou, a ponto de roubá-lo; estendeu sua obsessão por aquela pintura, à grande arte em si e com a perspectiva de restaurá-las ou refazê-las ( isto está subentendido no sonho). Deduzi que o sonho significava a origem, no século XVII, da vocação de sua ANIMA PICTORICA, isto é, da sua alma de pintor. Transmitia-lhe essa análise, um tanto especulativa, que Guilherme ouvia, extremamente emocionado. Neste momento interrompeu-me: —E o duelo? Quem era aquele homem terrível, com o meu próprio rosto, como um irmão gêmeo, mas com aquela expressão... O que aconteceu depois? O que ia ocorrer quando despertei? Consulte o Anagrama, Alma. Prossiga, por favor! Instada por ele, retomei a caneta e as palavras surgiram como resposta à sua pergunta, num novo Anagrama perfeito: UA MA LIDE HERR FEIG ( UA= maneira arcaica de evitar o cacófato UMA MÁ ) LIDE= palavra feminina que equivale a DUELO HERR= “Senhor” em alemão UM MAU DUELO, SENHOR FEIG O Anagrama nos respondera irônicamente! Guilherme insistiu: –E depois? E depois? Minha mão continuou, achando mais um Anagrama, em resposta: HERDAR GUME E FILIA —O que significa isso, Alma? Não estou agüentando de curiosidade, disse Guilherme. Respondi: —Certamente estes dois últimos Anagramas explicam o que estava para ocorrer: você iria herdar a espada ( GUME ), e o caminho, (descendência) ou mesmo a filha daquele homem( FILIA).Trata-se do duelo entre você e sua sombra, duplo ou alter-ego: o seu lado mau e corajoso, contra o seu lado bom, mas tímido ( Feig ). O duelo filosófico que produziu a fusão equilibradora entre esses extremos. Estou certa? —Sim, Alma, sim , é prodigiosa a sua interpretação. Por isso, agora entendo, havia uma dissociação nestes dois extremos quando eu tomava porres em minha juventude. Ora um, ora outro, aparecia. Como será que se chamava, ou se chama meu alter ego? Tenho agora esta nova curiosidade. Você pode me dizer? —Guilherme, –disse eu— para isso ainda faltam elementos, mas certamente encontraremos a resposta nos próximos dias. Agora preciso descansar. Estou com uma tremenda dor de cabeça. Isso sempre ocorre. Preciso parar e ficar com a mente quieta, me desculpe. Agora vá, e ligue-me dentro de uns dias, sim? Guilherme desculpou-se, responsabilizando-se por esse meu estado, beijou-me as mãos e partiu, meio siderado. Fui direto para a cama. Só o sono profundo poderia me restabelecer de tanto esforço mental, despendido no processo misterioso daquele desvelar dos nossos inconscientes em sintonia. No dia seguinte acordei com o telefonema do Guilherme. Ele não agüentara esperar nem um dia quanto mais três como eu lhe pedira: —Alô, Alma, bom dia! Você está bem ? Ótimo, preciso vê-la. Tive outro sonho. Descobri um pouco mais daquela história. Feig reapareceu em novos fragmentos de sua vida aventurosa. Já sei o seu nome todo: Thomas Feig .— ( Tive um arrepio, lembrando-me do pobre Thomas Veiga, meu falecido marido...) — Alô, Alma, receba-me logo, por favor, preciso de você! Ainda estremunhada de sono, concordei em recebê-lo às três da tarde. Eu precisava da manhã para meditar e depois ter um forte almoço antes de gastar novamente tanta energia mental. Pouco depois de desligar, o telefone tocou novamente. Era Renina dizendo carinhosamente, rindo: —Alma, querida, o que você fez com o Guilherme? Ele está mais doido que nunca. Telefonou-me ontem à noite e falou-me uma hora, de você. Está obsecado. Trata-a como uma pitonisa ou Vestal sagrada. Ou, melhor, como Musa. É bem dele isso! É um homem muito apaixonado, por tudo. É sua maneira de ser. Mas quando ele canalisa sua paixão vital sobre alguém, sai debaixo! A mulher dele, Eliana, que se cuide. Ela é uma grande mulher, mas suspeito que irá sofrer ou que já sofre muito com um marido assim. Bem, isso é comum nos artistas, não é mesmo? Nós sabemos disso. Mas, você está bem, Alma? Tenho pensado em você e nos seus espantosos anagramas. Eles não me deixaram dormir por uns dias. Mas depois tudo voltou ao normal. Os tesouros do inconsciente devem permanecer onde estão, é o meu parecer. É ali que eles tem a sua vida , e dirigem indiretamente a nossa vida consciente a uma distancia segura, como do porão das máquinas. Querida, pare de mexer com isso. Pode fazer mal a você. Não sente isso? —Sim, Renina,—respondi— Creio que você tem razão. Tenho tido umas dores de cabeça na base do crânio, na intercessão da primeira vértebra cervical. Como se estivesse forçando alguma coisa. Esse tipo de pensamento desvelador, dos arquétipos profundos, trabalhando assim, em estado de vigília, parece não fazer bem. Talvez , a consciência desses arquétipos, e também a memória de nossas vidas passadas seja algo proibido. Não estou muito segura da validade do que estou fazendo. É tudo muito interessante, mas mexe muito comigo e com as pessoas envolvidas também. Suponho que a única justificativa é um aumento do auto-conhecimento. Mas, nesse momento, lembro-me do Eclesiastes: “ quanto maior o conhecimento, maior a dor...” Renina ficou uns segundos calada, comovida, eu senti. Depois disse: — Alma, você é tão jovem, e sabe tanto... Cuidado, sua mente é prodigiosa...e frágil. Cuide do seu equilíbrio, acima de tudo. Você me preocupa. Desde que a conheci, tenho-lhe a maior estima. Não tive filhos, mas a senti como uma filha, não sei porquê. Talvez a filha que eu gostaria de ter tido. Uma artista, sensível e apaixonada... pela vida e pelas pessoas em geral. Você me faz lembrar de mim mesma em minha juventude. Mas a vida me ensinou um distanciamento mais prudente. O seu envolvimento emocional com todas ou quase todas as pessoas que se aproximam de você, pode lhe causar um imenso desgaste, pondo em risco seu equilíbrio e até essa felicidade de onde emana, visivelmente, a sua arte. Mas... estou me imiscuindo muito em sua vida. Desculpe-me. —Não, não, Renina, sou-lhe imensamente grata. Vou me lembrar sempre de suas sábias palavras. Sinto, às vezes, que preciso ser detida. Minha sensibilidade se torna exagerada ou mórbida, e eu piro. Não posso conhecer ninguém mais a fundo, que passo a amar essa pessoa. E só quero conhecer as pessoas a fundo. Não sei, não sei se terei jeito. — Querida, —finalizou Renina—não se preocupe. Não exageremos. Quero vê-la logo. Depois você me contará esse anagrama do Guilherme. Que loucura! Na verdade estou curiosa. Até logo, Alma, cuide-se, hem?! Renina desligou, e eu fiquei um bom tempo pensativa. Depois fui tomar o meu café da manhã para continuar a pintura da grande tela que tenho no cavalete e que chamarei “Anagramas”. De tarde, à hora combinada, recebi Guilherme, que entrou com aquele seu olhar agudo e obsessivo. Entrou já ofegante, dizendo: —Alma, você não imagina! Reencontrei o Feig num novo sonho ou fragmento de sua vida. Ele realmente pertencia a uma ilha, sua terra natal. Ali escondeu-se após o furto do retrato e sua deserção do serviço do rei da Prússia. Ouvi seu nome na boca de um interlocutor: Thomas... Thomas Feig . Ele apaixonou-se por um retrato, você viu isso no anagrama, espantosamente. Esse retrato apareceu, nítido, no sonho desta manhã. Era...você, Alma. Uma donzela idêntica a você. Eu roubei essa tela da coleção real e tive que desertar, fugir. Tive toda uma tropa no meu encalço. Mas eu conhecia profundamente as muralhas onde servia como sentinela. Sabia de um túnel secreto muito antigo e desconhecido do próprio rei e de seus soldados. Permaneci num subterrâneo sinistro, cheio de ratos, toda uma noite, usando o archote para percorrer o túnel e olhar o seu retrato naquelas profundezas. Ao alvorecer, saí por uma toca, no meio de uma floresta e não fui percebido. Depois, através de muitos percalços, minha associação temporária com piratas, e um duelo em que milagrosamente sobrevivi matando traiçoeiramente meu oponente, tomando-lhe a espada e com ela fazendo-me passar por ele diante de sua filha, uma menina chamada Rena, consegui com sua ajuda, chegar à minha ilha natal. Meu pai, recebeu-me como filho pródigo, com uma grande festa, perguntando-me por Lorenz, meu irmão. Respondi-lhe: “Não sei, pai, acaso sou eu o guarda de meu irmão? Meu pai ficou silencioso e suspendeu a festa. Olhou bem o retrato e disse:—“ Thomas, meu filho, quero que vá embora. Temo que esse retrato nos trará desgraças. Quem é a modelo? Se não é sua noiva , virão buscá-lo e minha casa cairá. Deixe aqui comigo a minha neta, e vá procurar Lorenz, seu irmão. Ele é um grande guerreiro e nos protegerá dos nossos inimigos. Sim, porque sinto que esse retrato nos ocasionará uma multidão deles, que se chocarão contra os nossos portões.” Nesse momento senti uma angústia e meu sonho se interrompeu, acordando-me. Alma, está tudo claro. Na verdade não vim mais para consultá-la, mas para participar-lhe minha descoberta. O retrato era seu, Alma. Eu me apaixonei por você através do seu retrato...mas não sei se a conheci pessoalmente, o que na verdade não importa. Mas queria saber, por curiosidade, e para que o círculo se feche. Quem era você? Porquê o seu retrato estava ali, no castelo do rei da Prússia, pendurado numa parede do seu quarto? Como tive acesso a esse quarto,eu, um simples soldado, sentinela? Seria você uma filha do rei, uma princesa? Certamente que sim. O rei era velho, em meu sonho, e apareceu vagamente, sem rosto . Mas você, o seu retrato, era deslumbrante. Alma, precisamos achar esse retrato. Uma tão grande obra de arte, de tal beleza, com tal modelo, deve ainda existir. Algo me diz isso. Pressinto que o acharemos, de um jeito ou de outro se nos empenhar-mos... numa pesquisa. Sei que ela parece supérflua, uma vez que você está aqui, diante dos meus olhos. Ainda assim, sinto que preciso desse quadro, eu cobiço ainda esse quadro, não sei porquê. Para devolvê-lo, talvez, a você? — “Guilherme,”— disse eu —“parece-me claro que você pode pintar esse quadro. Cabe a você pintá-lo. Para isso você saqueou quadros e mais quadros, restaurou-os e repintou-os. Agora você está pronto para a sua obra prima. Pinte meu retrato, eu lhe peço. Eu lhe conclamo”. ( Calei-me, embargada. Como eu dissera aquilo? Num impulso? Fiz mais: depositei uma paleta, pincéis e tintas sobre a mesa. Retirei meu quadro do cavalete, o inacabado “Anagramas”, coloquei uma grande tela em branco e, em seguida, desnudei-me no meio da sala, deixando minha roupa cair aos meus pés ). Guilherme, emocionado, empunhou a paleta e os pincéis. ____________________________________________ Nota da editora: Alma incluiu nos seus "Sonetos Pampianos" este que transcrevo aqui abaixo, por curiosidade, onde ela cita nos dois tercetos o epísódio narrado no conto Anagramas: Minhas vidas (de Alma Welt) (134) Tenho certeza de que um dia voltarei Assim como voltei já muitas vezes No corpo de mulheres e de um rei Que não perdeu seu trono mas as rezes*. Fui poeta, pintora e não matrona Mas me orgulho mesmo da D’Affry*, Adèle, a Castiglione, a Colonna Que descobri ao ver a sua Pithie*. Mas no século das luzes e “de Ouro”* Fui princesa com retrato no castelo Pintada tão real e sem desdouro Que tive o meu “portrait” então roubado Por um Feig que embora também belo, Era soldado, desertor e desastrado. 17/01/2007

domingo, 16 de novembro de 2008

Stradivarius no sótão ( conto de Alma Welt )

Stradivarius no sótão



Sentindo o meu apartamento nos Jardins completamente saturado , entulhado de telas, materiais e livros , resolvi procurar um sobradinho na região próxima, de Pinheiros, para estabelecer um novo ateliê, “clean”, para poder manejar e pintar grandes telas. Tendo encontrado a casa que me serviria, vi-me novamente envolta por uma vida de bairro, mais comunitária, a que estava desacostumada. Não tardei a conhecer um personagem destas ruas , que me faria participar de um extravagante episódio de sua vida.
O senhor Robledo, apesar de sua discrição e aspecto apagado, seu ar digno e um pouco distraído, teve seu tempo de notoriedade, há alguns anos atrás, nestes quarteirões, nos bares ociosos das adjacências, quando cometeu a publicação de um compêndio de sua autoria. Uma brochura, impressa numa tipografia próxima, por sua conta, e titulada, para gáudio da vizinhança e dos boêmios e bebedores de cafezinhos, nada mais nada menos que : “Romantismo e Vida Fiscal.” Não é preciso dizer que os gozadores não ultrapassaram o título em seus comentários, e que poucos se deram ao trabalho de folheá-lo. Confesso também minha total ignorância quanto ao seu conteúdo, quem sabe de notáveis ponderações, visto que o seu autor parece impregnado de uma certa aura de humanismo, que envolve toda a sua pessoa , de uma maneira um tanto arcaica.
O senhor Robledo contou-me que parou diante de um sobrado, tocou a campainha e foi imediatamente recebido pelo senhor de cabelos brancos e aspecto saudável que o conduziu por dependências já completamente esvaziadas e convidou-o a sentar-se numa das duas cadeiras que se avistavam no meio da sala. Este senhor teria dito mais ou menos isto:
-“ Meu caro senhor Robledo , conforme está no contrato, entrego-lhe a casa inteiramente vazia, mas com a condição de que o senhor suporte o meu despejo no sótão da casa. É afinal, a única dependência que me reservo, pois não tenho como me ocupar dessas velharias, nem quero perder tempo em livrar-me delas. Peço-lhe muitas desculpas por alugar-lhe a casa em tais condições , mas quero aproveitar a liberdade com que a vida subitamente me presenteou, com o afastamento dos meus filhos e parentes, que seguiram seus rumos, casaram-se e mudaram-se, e visto que sou viuvo já há muitos anos...Vejo-me enfim livre para uma última viagem pelo mundo, da qual talvez nem regresse , não posso esperar da vida tantos retornos, apesar de tudo. Gozo de boa saúde, pretendo dar um bom giro pela velha Europa, e passar pela minha região de nascença, minha pequena cidade natal . Peço-lhe, entretanto , que não se preocupe, absolutamente
não se preocupe com aqueles trastes lá em cima. Deixe-os empoeirar-se, se isso não o incomodar. Na verdade não queria incomodar um inquilino como o senhor , apenas rogo-lhe que suporte esses despojos, dos quais não tenho forças para livrar-me. Não creio, por outro lado, que o sótão lhe possa fazer falta não é mesmo? O senhor sendo solteiro, e visto que o senhor assim me afiançou com tanta generosidade. Enfim, fico-lhe grato. Não, não exagero. Um inquilino como o senhor é uma preciosidade, a essa altura da vida , quando não se pode mais aborrecer-se com ninharias e tudo o que se quer é partir, partir, sabe-se lá por quê, num ultimo giro pelo mundo, antes de aportar de vez, não é mesmo?
–“Naturalmente, sem dúvida, senhor”– o senhor Robledo se aprestou em afirmar, já com um zelo de guardião prestativo e fiel a desabrochar-lhe nos olhos, em todo o seu corpo aprumado, mas que anos e anos de serviço público faziam suspeitar pequenas reverências, movimentos imperceptíveis de coluna.
Na verdade, tudo isso eu deduzi, a partir de uma convivência esporádica que estabeleci com o protagonista desta história, das observações que pude fazer da janela do meu sobradinho, e a seguir, das insólitas cenas que me foram dadas a presenciar em sua casa, e que tentarei relatar por mais dolorosas e grotescas que pareçam. Por enquanto, ainda estamos naquele prólogo narrado pelo querido senhor Robledo, numa determinada visita que lhe fiz no sanatório.
O diálogo com o proprietário prosseguiu, um pouco mais, girando sobre estes mesmos pontos e afinal despediram-se cordialmente , quase efusivamente. O senhor Robledo cheio de inexplicável entusiasmo e com a melhor das disposições retornou à sua residência, distante apenas uma quadra dali, afim de tratar da sua mudança, considerável bagagem de homem civilizado, razoavelmente livresco( uma pequena e eclética biblioteca, onde predominava a boa literatura do século XIX ).
A mudança do novo inquilino foi acompanhada por uma dezena de pares de olhos atentos, entrincheirados nas janelas da vizinhança, nas imediações do poste da esquina, e sobretudo nos bancos do boteco em frente. O sr. Robledo não era estranho a esses olhos, mas devia estar se aproximando considerável e inadvertidamente, com as entranhas de sua antiga residência à mostra , nessa
situação de terrível despudor em que uma mudança coloca as pessoas.
Dispostos o móveis em seus lugares, tarefa que tomou alguns dias ao sr. Robledo, que , por sinal, teve de despachar amavelmente alguns curiosos que sempre teimam nessas ocasiões em prestar uma mãosinha de ajuda, afim de pôr um pesinho dentro da nova moradia. Prestativos e bisbilhoteiros, olhares ávidos de tédio e curiosidade vã, vocês sabem, os bons vizinhos freqüentadores do boteco, a gorda e faladeira senhora da esquina; o inesperado anão provavelmente vendedor de bilhetes de loteria, o aposentado senhor de olhos empapuçados de alcoólatra, o moço espinhudo jogador de sinuca, talvez conhecido pelo apelido de Zé Galinha, a magérrima semi-louca da direita, em seu vestido de brim estilo sanatório, etc. Ah! Uma indefectível professora de música, outrora, segundo ela mesma, cantora lírica no Municipal. Pessoas amáveis e atenciosas, ligeiramente marginalizadas, é verdade, solitárias e solidárias a seu modo.
A porta trancada, o sr. Robledo, exausto, percorreu com o olhar cada centímetro quadrado do seu novo cenário, na verdade idêntico ao antigo, com as mesmas disposições e um restinho da velha poeira; os objetos metodicamente recolocados sobre as mesas e os consoles, e encerrou para si mesmo o assunto mudança, não sendo, afinal, um homem de demasiadas idiossincrasias, dessas que costumam assolar os solteirões.
Predispôs-se a dormir , não sem antes dar a primeira vista d’olhos no famoso sótão, objeto de sua crescente curiosidade, o que fez com ligeiro ar de displicência, de pijama, pensando sem querer num paninho de pó e na sua faxineira diarista. Não, não caberia a mais ninguém entrar naquele sótão tão íntimo, afinal, toda uma vida acumulada ali , nos seus visíveis recados, na sua linguagem cifrada de móveis, quadros e objetos, poltronas rotas e pó, provavelmente.
“É preciso ser sensível,” pensava ele, “à linguagem muda dessas coisas. Não, empregada jamais , talvez o esquecimento vigilante, isto sim, vejamos...”
Subiu o pequeno lance de escada e penetrou pela porta que ostentava
chave, e viu-se numa pequena alcova sob o telhado, entulhada de toda a sorte de móveis desmontados, comuns, bastante usados, vividos, sobre os quais pousavam quadrinhos empilhados e álbuns de fotografias de família. Com a ponta dos dedos, o sr. Robledo abriu um álbum, desinteressadamente, folheou timidamente outro mais adiante, retomou os ares de guardião zeloso e voltou-se para sair atritando os dedos empoeirados, quando seus olhos caíram sobre um instrumento pousado sobre uma cômoda bloqueada por todos os lados, displicentemente jogado, fora da caixa, sem cordas: um violino bastante belo, lhe pareceu, razoavelmente conservado, apesar de tudo. O sr, Robledo pegou-o com reverente cuidado, com as pontas dos dedos, examinou-o, com atenção e respeito. Admirou-lhe as formas barrocas que lhe pareceram perfeitas, advinhou-lhe as peças desaparecidas, que lhe completariam a harmonia: o cavalete e o suporte; intrigou-se com a queixeira negra que lhe pareceu abstrusa; percorreu com os dedos a voluta onde faltava uma chave, e em seguida espiou pelas frestas sinuosas e leu, inclinando adequadamente para a luz da pequena janela empoeirada: ANTONIUS STRADIVARIUS CREMONENSII – 1692.
Com um leve sobressalto íntimo, o sr. Robledo, pestanejando, depositou subitamente o instrumento, exatamente no espaço delineado pela sua forma na poeira da cômoda e tratou de afastar-se, num estado semi-sonhador, hipnagógico.
Trancou a porta com a chave e retirou-se, descendo até a sala, dirigiu-se até a sua estante, percorreu com os olhos as lombadas da sua Enciclopédia... “S”, retirou o volume, folheou-o, compulsou-o, até encontrar o verbete esperado: “Stradivari ( Antônio ), dito Stradivarius, de Cremona, Itália, célebre “maestro liutaio”( luterista ), discípulo de Amati, etc...”
O sr. Robledo soltou um gemido, enquanto seus pensamentos turbilhonavam sem forma, despontando aqui e ali uma censura em meio à surpresa: “Como puderam deixá-lo assim, abandonado, ali na poeira, mutilado, sem cordas, sem sua caixa, etc..? Tanto descaso... Um mistério. É preciso vigiá-lo, de algum modo...”

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Os dias se passaram e o sr. Robledo permanecia com aquele olhar sonhador, que agora lhe assentava como a definição verdadeira da sua personalidade, de modo que não foi notado conscientemente nem mesmo pela sua faxineira, embora isso o deixasse mais vulnerável às tentativas de aproximação dos vizinhos, pois já não reagia às pequenas invasões do cotidiano do bairro, na verdade por não estar atento. Tinha agora um ar mais vago, doce, os gestos mais lentos.
Um dia fez uma viagem ao interior, Taubaté, e trouxe um violino tosco, uma rabeca popular comprada na feira da cidade. Daí pra diante as rabecas se multiplicariam no seu caminho com curiosa facilidade. Violinos de feira, de bric-a-brac, de criança, quebrados, empenados, mutilados, feitos a canivete, primitivos
uns, belos, outros nem tanto, violinos de fábrica, cópias de bela aparência. Proliferavam pela casa como coelhos. O sr. Robledo os tangia, passava-lhes o arco uma vez ao chegarem, e logo os pendurava. Sim, porque, estranhamente, ele não suportava pousá-los pelos móveis, achando que a trepidação da rua, pelo movimento dos carros e caminhões, os prejudicaria de alguma forma. Pendurava-os em varais que se estendiam pelos cômodos da casa, sempre acompanhados dos seus respectivos arcos, pendentes pelas volutas, como enforcados, acima das cabeças das visitas. Sim porque, vulnerável como estava o nosso sonhador, a casa agora era constantemente invadida pelos vizinhos: o Zé Galinha, a louca da esquina, dona Magda, a cantora, o anão de terno, o poeta Aragipe, queixoso e impublicado, o aposentado alcoólatra na ativa, e outros. Até mesmo essa sua criada aqui, que ele convidou amavelmente, ao encontrar-me eventualmente na padaria do nosso quarteirão. Pude testemunhar o espantoso entra-e-sai de sua casa devassada. Entravam a qualquer hora do dia e da noite, sentavam-se à mesa com seus baralhos, em longas partidas demenciais, entremeadas de cafezinhos que movimentavam simultaneamente a cozinha, em confidencias, tagarelices, gracejos, fofocas. Sobretudo fofocas.
Um dia, em meio a essa balbúrdia, o sr. Robledo, de repente bateu palmas e pediu atenção. Tinha um comunicado a fazer. Olhamo-no em silêncio, surpresos e curiosos.
—Senhores, senhoras, meus amigos, e você, Alma , sobretudo você, minha nova querida amiga! Tenho uma revelação a fazer. Uma grande descoberta! Mas, primeiro um convite. A todos vocês. Façamos um grande almoço. Conto, para isso, com a colaboração das senhoras. Quero todos presentes. Durante esse repasto, amanhã, farei a minha revelação. Compartilharei com vocês, meus amigos, a minha grande descoberta. Fundamental, eu creio, vocês verão! Conto com vocês. Até amanhã!
Na verdade, poucos deixaram a casa, e as mulheres puseram-se logo a fazer planos para o promissor almoço. Frango assado!, decidiram.
No dia seguinte, ainda cedo , começaram os preparativos. A cozinha movimentou-se, com as incursões ao boteco da esquina para comprar os frangos. Na verdade, pré assados na máquina giratória, já prontos, faltando somente os condimentos, guarnições, etc.
Ao meio dia em ponto a mesa estava aberta, crescida e posta com a toalha de renda, os talheres e baixelas desenterrados do passado nebuloso e neutro dos baús do nosso amável anfitrião. As mulheres atarefadas, traziam os frangos fumegantes da cozinha, acompanhados aos saltos pelo anão e o Zé Galinha, que se faziam de bufões. O poeta Aragipe fazia o menestrel, tangendo como um alaúde, um dos violinos arrancado ao varal que se estendia acima da mesa, de parede a parede. O sr. Robledo estava um pouco desconcertado e incomodado com a feição de Festim que o almoço tomava, eu percebi. Mas mantinha o olhar sonhador e vago, à espera do momento de compartilhar sua Revelação.
Todos sentados à mesa, o sr. Robledo à cabeceira, os convidados buliçosos faziam pirraças, arrulhavam feito pombas, grasnavam, latiam, batiam palmas e atacavam as entradas e aperitivos, atiravam azeitonas, casquinando.
De repente, ao entrarem os frangos, em meio ao vapor e aroma que se desprendiam, o sr. Robledo pôs-se de pé, hesitante, e pediu silêncio, batendo discretamente um garfo no cristal.
–Senhores, senhoras, um momento! Eu lhes peço. Quero dizer-lhes algo... que me parece sumamente importante. Assim, obrigado. Senhores, quero fazer-lhes uma revelação... Quero compartilhar a enorme alegria da minha descoberta, com vocês, meus amigos!...( o sr. Robledo balbuciava ). O Segredo... o segredo!
Fez-se um profundo silêncio. Desconcertado, o sr, Robledo hesitou mais um pouco, todos os olhos pousados nele, mas subitamente, num gesto rápido, agarrou pelo braço e arrancou ao varal o violino mais próximo de sua cabeça e com um golpe seco, espatifou-o contra a quina da mesa.
Diante da estupefação dos presentes, abriu o tampo e com dois dedos, pinçou um pequeno pino de madeira, uma espécie de suporte ou espinho, no ventre do instrumento e mostrando-o à malta, anunciou:
— Eis o Segredo, senhores. Eu descobri! Eu descobri! O segredo do maravilhoso som do Stradivarius! Senhores, está aqui, isto se chama Alma! Compreendem? Estão vendo? Tudo está aqui! Vejam!
Nesse momento, passada a surpresa, os convidados levantaram-se e agarraram os violinos que pendiam acima de suas cabeças, o varal despencou, os instrumentos foram disputados, estraçalhados, desmembrados. O anão subiu à mesa, e munido da tesoura de destrinchar, pôs-se a abrir os tampos, metendo as pontas pelas frisas. Volutas eram arrancadas e brandidas como coxinhas, enquanto o Zé galinha arrancava cravelhas e fingia palitar os dentes com elas. Dona Magda trinava a ária Libiamo! Libiamo!, da La Traviata, enquanto o poeta Aragipe com o dedinho enroscado num pesinho de cavalete, disputava com o senhor aposentado a sorte no rompimento do ossinho. E uivos, cacarejos, gargalhadas, enquanto cordas eram tangidas como nervos retesados, tampos eram destrinchados, volutas enfiadas nos molhos e lambidas em meio a gritos de: “Está na alma! O segredo está na alma! Passe o frango! Hi, hi,hi! Quá! Quá! Quá!
O sr. Robledo, recoberto pelos pinos que lhe atiravam, coberto de molho como sangue, subitamente revira os olhos e estende a mão para mim, horrorisada que estou, e paralisada a um canto da sala. Parecendo querer agarrar-se às lágrimas que divisou nos meus olhos, subitamente tem uma apoplexia, os olhos esbugalhados, e desfalece, derrubando a cadeira para trás e rolando aos pés da mesa.
O banquete acaba aqui. Também não vi mais nada. Não tenho mais detalhes dos acontecimentos depois disso. Tudo se desvanece...

FIM


01/10/2002


Stradivarius no Sótão (de Alma Welt)

Um vizinho no bairro de Pinheiros
A quem deu a mania de comprar
Violinos e rabecas sem parar
Que lhe levavam falsos companheiros

De um carteado fútil, sem sentido,
Vilipendiado em sua inocência
Em seu lar doce lar mais que invadido,
Já estava à beira da demência...

E me convidando especialmente
Com a presença dos falsários
No meio de um jantar beneficente

Destrincharam violinos como frangos
E até o seu falso Stradivarius,
A pinçar-me-lhes a alma ao som de tangos...


Nota
Este soneto inédito que acabo de descobrir na Arca da Alma, sintetisa de maneira prodigiosa o conto inteiro entitulado Stradivarius no Sótão, dos Contos da Alma, de Alma Welt, livro publicado em 2004 (o qual ainda se encontra à venda), com contos que correspondem ao período em que Alma morou em São Paulo nos Jardins, e em Pinheiros, para onde mudou seu ateliê para uma casa, para ampliá-lo. (Lucia Welt)

domingo, 22 de junho de 2008


Alma e Aline- Esta pintura de 100x100cm, óleo s/ tela de autoria de Guilherme de Faria está exposta e à venda na Exposição temática coletiva NUS, na Jo Slaviero & Guedes Galeria, na rua Gabriel Monteiro da Silva 2074, Jd. Paulistano, SP Tel 3061 9856, até dia 28 de junho de 2008.

sábado, 17 de maio de 2008

Aline (de Alma Welt)

Do livro publicado CONTOS DA ALMA, de Alma Welt


Sinto-me solitária. Não estou agüentando, preciso fazer alguma coisa a respeito... Estou começando a parecer uma solteirona inconformada.
Tento localizar Rodo, meu irmão caçula, que amo tanto. Penso em convidá-lo a morar comigo, apesar dos problemas que isso pode me acarretar. Mas não consigo localizá-lo. Está praticamente desaparecido. Conversando com minha irmã mais velha sobre isso, nada consegui saber sobre o seu paradeiro, e só obtive um sermão chatíssimo sobre o desperdício da minha vida (do seu ponto de vista), de que deveria procurar um marido que cuidasse de mim, enquanto é tempo, enquanto ainda sou jovem e bonita, porque depois...blá, blá, blá...Etc.etc.
Bato o telefone e ponho-me praticamente a gritar. Olho-me no espelho, o rosto riscado de lágrimas, congestionado. Assim, vou me acabar.
Tomo, afinal, uma decisão. Ligo para uma agência de modelos, famosa, que encontro na lista amarela. Falo com a atendente, e apresento-me como a artista plástica Alma Welt. Ela parece saber quem sou. Digo-lhe que preciso de uma modelo de ateliê, que seja linda, nada menos que isso, e que aceite se despir como “modelo vivo”, para uma pintora famosa, que sou eu. A funcionária achou muito natural, e consultou seu cadastro de modelos. Perguntou-me se não quero um rapaz, também. Eles os têm belíssimos e com boas referências. Digo que não, que prefiro uma modelo para nu artístico feminino. Ela percorre as fichas, e parece puxar uma, pela fotografia. Diz: “Tenho uma aqui que faz esse tipo de trabalho. Chama-se Aline.” Pergunto-lhe “Ela é bela?” Ela responde: “ Muito. É morena clara, de cabelos cacheados e olhos azuis. Uma beleza, e o corpo, então, perfeito.” Digo-lhe que me mande essa modelo. Ela me pede todos os meus dados, e o número do meu cartão de crédito. Diz-me o preço da hora dessa modelo, as condições, e tudo mais. Diz-me que me mandará um contrato para eu assinar. Concordo com o preço, com tudo. Quando afinal desligo, sinto-me aliviada.
Deito-me no meu sumiê, no espaço cercado pelas minhas telas. Ajeito um grande espelho antigo, de modista, que tenho para auto-retratos. Desnudo-me, e volto a deitar-me em pose de odalisca de Ingres. Sempre fui um tanto voyeuse de mim mesma. O que me resta, afinal? Preciso apreciar a minha beleza, enquanto ela existe, já que ela é tão elogiada pelas pessoas. Isso me deixa um tanto erotizada, e começo a exibir-me em todos os ângulos, alguns até mesmo um tanto pornográficos. Mas logo me canso da brincadeira, e caio de bruços, com a cara na almofada, soluçando. Adormeço ali mesmo, nua e descoberta.

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Na manhã seguinte, perto das 10 horas, toca o telefone. É Aline, a modelo. Notei-lhe a bela voz, doce, ao mesmo tempo direta e prática. Gostei do que ouvi. Ela combina vir ao meu ateliê às três da tarde, para começar as poses. Ao desligar, ponho-me a rodopiar pelo estúdio, como uma louca, apaixonada. Eu sou assim. Já estou predisposta a amar. Não quero saber se dará certo, se serei correspondida. Isso de amar, é antes de tudo uma questão de querer, de entregar-se, de predispor-se. Ainda penso assim. Somente sei, que, depois de disparado o processo, perdemos o controle. Ah! Como eu haveria de comprovar isso!...

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Toca o interfone. O seu Ermírio anuncia Aline. Abro a porta do apartamento e deixo-a escancarada. Assim, ela sairá do elevador e eu a estarei esperando (como se estivesse de braços abertos). Aliás, os abro rapidamente, fechando-os pouco antes da porta do elevador abrir-se. A moça olha-me surpresa, enquanto abro o meu mais receptivo sorriso. Ela é bela, meu Deus! Mais do que eu imaginava.
Aline estende-me a mão, comprida, perfeita, como a minha. Eu reparo em tudo. Seguro-lhe a mão e não a solto, para conduzi-la para dentro do apartamento. Ela olha, curiosa, para mim, e logo lança os olhos ao redor. Desprende sua mão da minha e rodopia um pouco de braços abertos, com um lindo sorriso. E diz, parando e cruzando as pernas, de pé, graciosamente:
–Alma Welt, a pintora...Que lindo tudo aqui, a começar por você !
Adorei ela dizer isso, meu coração disparou mais ainda. Eu pensei:
“Ela já foi fisgada. Ou, pelo menos começou bem...”
–Obrigada, Aline, tu também és linda, e ...acho que vamos nos dar bem. Tu queres alguma coisa antes de começar-mos a trabalhar? Um café, por exemplo, ou um suco?
–Não, Alma, obrigada. Pode preparar seu material. Começamos assim que você quiser.
Coloquei uma grande tela quadrada, no cavalete. Não pintarei nenhuma “odalisca” na horizontal. Vou enquadrá-la numa composição contemporânea, que não sei ainda como será. Mas ela estará de pé, ou acocorada. Talvez no ato de despir-se.
Aline começa a tirar a roupa, muito simples: a camiseta sobre os seios que despontam, sem sutiã. Que belos! Senta-se no chão e tira o tênis, depois a calça jeans. Fica um instante de calcinha e olha em torno onde botar a roupa. Coloca-as sobre um banco, ergue os olhos, fita-me e abaixa a calcinha. Tira-a com infinita graça. Percebo que ela se esmera na graciosidade dos gestos. Isto é um bom sinal. De sua elegância natural, que eu já notara à sua entrada, ou de uma intenção inconsciente de sedução: melhor ainda...
Fica então imóvel, os braços caídos, esperando. Aproximo-me e toco seus braços. Ergo-lhe um e deixo-o em determinada posição, depois o outro. Em seguida ponho minhas mãos em seu rosto e viro-o suavemente para um lado. Noto que ela é uma profissional: tem prática. Fica imóvel, congelada, exatamente na posição em que a deixo. Afasto-me e olho-a inteira. Como é bela! Que corpo! Morena clara, formas suaves, esguias. Pernas longas e bem torneadas. Que pés! Que mãos! E o seu púbis! A maravilhosa curva suave do seu ventre encontrando um montículo de pelos que deixam descobertos a vulva perfeita, como uma concha rosada, nada para fora, como uma adolescente. Uma promessa de prazer. Sacudo a cabeça como para espantar um pensamento, e ela com o rabo dos olhos parece perceber esse meu gesto. Capto uma curva quase imperceptível nos cantos dos seus lábios. Ela está sorrindo por dentro. Safadinha! Ela sabe... ou ela quer provocar-me. Começo a manuseá-la profissionalmente, mas com muita delicadeza. Observo seus seios, seu peito que começa a ofegar. Isso ela não saberá disfarçar... Seu coração, sua respiração a trairá. Ela está excitada. Ou, de alguma forma, emocionada. Afasto-me, olho-a com atenção profissional, mas sempre com um laivo de doçura, que ela captará. Viro-me e vou procurar um CD. Fico de costas para ela por alguns segundos, escolhendo entre a pilha, e ao mesmo tempo saboreando o seu olhar pelas minhas costas, que adivinho. Que sinto, na verdade. Demoro-me quase um minuto antes de voltar-me subitamente para ela, a tempo de pegar os seus olhos voltados para mim, que então, quase assustados, se desviam! Essa garota é adorável. Fui maravilhosamente sorteada. Ela será o meu amor. Eu me prometo!

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Continuo pintando desde cedinho, todos os dias. Mas enquanto Aline não chega, percebo que o meu trabalho tem o timbre da espera. Quando ela entra, ainda pela manhã, meu dia realmente começa. A vida começa... Caí na minha própria armadilha. Passo muito tempo esperando-a. Ela chega e me ilumina. Não terei então luz própria? Suspeito que não. Essa é a qualidade do amor... iluminar-se do amado. Preciso de Aline. Necessito Aline. Meu amor. Meu amor...Como é belo o seu nome, Aline, como é perfeito o seu som. Olho seus olhos, sua testa, seu narizinho, sua boca carnuda na medida certa. Seus cachos... como é bela, meu Deus! Queria engoli-la . Queria-a dentro de mim, para sempre. Mas ela... está fora de mim. Ela é um pouco rebelde. Ela se irrita, às vezes. Ela é brusca, em certos momentos. Ela percebe que eu a desejo... que eu a quero. Vai começar a tiranizar-me. Ai, meu Deus... Vou sofrer. Ela vai fazer-me sofrer. Ela já o faz... Ela joga charme. Ela se exibe ao posar. Ela se excita ao ver como a olho, como a desejo. Em certos momentos enquanto posa, percebo um ligeiro brilho na portinha de sua vulva, que ela não pode esconder. Ela fica molhada. Ela se trai. Ah! querida, tu já estás caindo na minha teia... ou eu na tua, não sei mais.
E os seus seios, meu Deus! Apontados para a frente, perfeitos, brotam na horizontal como se estivessem na vertical, como uma menina. Ainda não sentiram o peso da gravidade. Seu corpo é uma obra de arte, como o meu também é, essa é que é a verdade. Pintá-los é tão somente registrá-los, conservá-los assim para sempre. É um dever que sinto. Não, não seja hipócrita, Alma. É teu prazer, é tua luxúria. O gozo do espelho...

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Aline dorme ao meu lado nua, neste verão escaldante. Fico horas a olhá-la, a degustar a sua imagem, com as minhas retinas de “expert”. Não! Com o meu olhar amoroso, isto sim. Quantas vezes ponho-me a beijar cada centímetro de sua pele, e também de algumas mucosas mais acessíveis. Oh! Meu Deus, meu Deus. Estou ficando louca de amor. E de paixão. Já começo a sofrer por antecipação. Sofro de tanto amá-la, de tanto desejá-la. Serei eu uma doente? Carente? Não sei mais. Nada me faltou na infância. Fui tão amada... Mas, e minha mãe? Talvez esteja aí a razão dessa minha febre amorosa. Minha mãe não me amava do jeito que eu queria, pois não aceitava plenamente meu jeito de ser. Ela não me queria artista. Isso a assustava. Ela tinha medo disso: da artista. Ela não compreendia o meu excessivo amor pela beleza. Ela não aceitava ver-me chorar pelo belo, pela poesia. E muito menos pela alegria. Para ela isso era uma espécie de aberração... Uma heresia... no seu acinzentado mundo interior, cristão, igrejeiro. Ela tinha gerado uma pequena rebelde, pagã, dionisíaca, germânica por um lado, lusa nostálgica pelo outro; ambos os lados temidos e rejeitados por ela.
Ah! Como ela quis, sutilmente ou não, reprimir-me! O que foi pior: tentar reprimir-me com sutileza. Como me magoava, às vezes! Como me decepcionava, desapontava, ou me fazia envergonhar-me após um momento de euforia...
Mas, também ela me amava...à sua maneira. Um dia abraçou-me, dizendo: “Alma, Alma, o quanto vais sofrer, minha filha. O mundo não é belo com tu pensas. Estamos no vale de lágrimas, tu pareces não saber, minha filha. Mas tu verás. Tu perceberás que viemos a este mundo para sofrer pelos nossos pecados. Alma, Alma... A vida não é prazer, a vida não é uma festa, minha filha.”
Ah! Mamãe, tu nunca pudeste me convencer disso. Não, ainda não acredito em ti. Tenho pena de ti, mamãe. Tu não soubeste viver. Não soubeste amar, rir e gozar plenamente. Tu acreditaste num velho catecismo. Os padres...eles te enganaram, ou foram teus pais, meus avós portugueses, que o fizeram. Mamãe, mamãe, eu sinto tanto por ti! Talvez fosses muito infeliz com o Vati. Eu nunca soube direito, mas, talvez, ele não fosse o teu verdadeiro amor. Isso explicaria tudo. Essa tua amargura, esse teu estoicismo espartano, essa austeridade na casa compartilhada com Dioniso, o grande bode luxurioso que era o Vati. Só isso explicaria tanta contradição...
Quanto a mim, tomei o partido da alegria vital, e do prazer, representado por meu pai. Sinto muito, Mutti, nunca estive do teu lado. Talvez devesse ter ido mais fundo, para te compreender melhor. Mas agora é tarde, não te beijei o rosto em tua agonia, e não derramei muitas lágrimas ao pé do teu caixão, como o fiz, mais tarde, diante do caixão do velho. Eu sinto muito...

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Desperto mais uma manhã ao lado de Aline. Espreguiçamo-nos como duas gatas preguiçosas, mas logo quero tocá-la, acariciá-la um pouco. Preciso certificar-me de que ela é real, e não um produto materializado da minha fantasia. Então, beijo-a e logo me levanto para preparar o café da manhã para nós. Quero sempre trazer-lhe o café na cama. Quero servi-la. Ela se admira um pouco disso, pois estava preparada para ser somente uma modelo, e portanto, de algum modo servir-me em troca de um salário, ou cachê. Mas não, ela ainda não sabe o quanto vou amá-la. O quanto, portanto já a amo. Preciso tomar cuidado para não assustá-la com a voracidade da minha paixão. Aline é ligeiramente arisca, não muito. Tive sorte. Se ela não se rebelou, e não rejeitou as minhas carícias logo de saída.... a coisa está bem encaminhada. Como é bela! E como é graciosa! Ai! meu Deus, preciso controlar-me para não desenvolver ciúmes dessa garota em relação àquele seu namorado, o tal de Pedro. Mas... precisamos traí-lo. Sim, nós mulheres temos esse direito. Não sei porquê, mas algo me diz que é o que nós mulheres deveríamos sempre fazer. Isso representaria uma certa rebelião em relação à nossa subserviência ancestral aos homens. Porquê não? Oh! meu Deus, tudo isso são justificativas. O que me impulsiona é o meu desejo. Somente isso. Sou uma faminta...
Por outro lado, meu desejo reveste-se das tintas do verdadeiro amor. Sim, eu tenho tanto amor para dar!. Preciso derramá-lo ou ele me consumirá. Esta moça, esta mulher, é como eu, mas pode ser mais que um espelho. Terei todo cuidado para diferenciá-la do meu reflexo. Ela merece toda a atenção. Ela é delicada, feminina como poucas. Por isso escolheu essa profissão. Ela sabe, adora ser olhada, devorada mesmo com os olhos. Não, isso não é apenas profissional. Tem a ver com a sua libido, sua pulsão exibicionista. Quer dizer, o seu desejo!

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Aline já está enredada na minha teia. Percebo que já a seduzi completamente. Ela revela uma disposição voluptuosa em dar-se, em ser amada, admirada, acarinhada sensualmente. Quando demoro em tocá-la ela se aproxima, como uma gata, ronronante, e toca seu rosto, começando por sua testa, em qualquer parte do meu corpo, arbitrariamente, de maneira insólita. Se estou muito ocupada, tira por exemplo a paleta das minha mão e pegando-a nas suas, passa-as no seu rosto, nos seu cabelos, com um olhar lânguido, irresistível. Então, largo os pincéis, largo tudo e a abraço, conduzindo-a numa dança exótica, meio tango, meio pas-de-deux, ao nosso leito. Fico então a beijá-la, a lambê-la dos pés à cabeça, por horas. Depois detenho-me sobre o seu púbis, ralo, cuja penugem negra, macia, tem um cheiro peculiar, um perfume adorável, e banho-a com a minha língua, demoradamente. Titilando o seu clitóris, que desponta com uma cabecinha, de um pênis minúsculo, mas túrgido em toda a sua possibilidade. Fico enternecida com esse pequeno membro que quer mostrar-se potente, pobrezinho, e medito por um segundo na sua natureza ancestral, do tempo em que éramos unos, homem e mulher. Lembro-me que sempre me espantei com os mamilos dos homens e reparava, ainda na infância, como eles se tornavam tesos, nos peões sem camisa, quando lidavam com as rêses. Eles nunca me enganaram. Quanto aos seus grandes membros, sim, eu reparava neles, bem disfarçados sob as folgadas bombachas. Bem que eles me chamavam “chinoquinha”, entre eles, eu ouvi, algumas vezes. Talvez percebessem a minha atenção, a minha sensualidade que aflorara tão cedo. Não foi à toa que ocorreu aquele incidente com meu irmãozinho Rodo. Não contarei por hora, esse segredo... da minha infância. Quero concentrar-me em Aline, minha doce Aline, que agora dança o mais belo balé do mundo em minhas mãos. Como nos amamos! Sim, porque ela me ama, eu percebo. E não mais conseguimos disfarçar em público, agarradas, abraçadas. De mãos dadas a todo minuto. Por outro lado, percebo uma certa condescendência nos estranhos, somente talvez porque somos jovens e belas. Não ousariam chamar-nos por aqueles nomes pejorativos, que não repetirei, frutos da vulgaridade das mentes banais.
Sim, o que sempre me chocou foi a vulgaridade do homem comum. Prometi a mim mesma, nunca mencioná-lo, nunca sequer descrever o homem vulgar, nos meus escritos, nos meus poemas. Ele não entra em linha de conta. É como se não existisse. A minha vingança, sutil, é omiti-lo completamente. “Você vive numa torre de marfim”... dirão alguns. Não, a vida somente é verdadeira em seus termos ideais, e o mito a perpassa cotidianamente, sem que esse homem comum sequer o perceba. Como poeta sempre vivi em sintonia com o mito, percebendo a alegoria riquíssima dos acontecimentos aparentemente simples da minha vida, nada banais, pois que na minha vida o banal não existe, já que o desvelo, ao seu sentido mais profundo, em cima mesmo do momento. Tenho pena das pessoas que não sabem ler as entrelinhas de suas vidas, o significado oculto de tudo que lhes acontece, sem perceberem que a vida é muito mais rica para todos, e o herói e a heroína estão dentro de nós, assim como todas as grandes aventuras, até mesmo as epopéias.

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Aline revelou-me hoje, que continua seu namoro com Pedro, o que não chegou a me surpreender. Eu já previa isso. Eles tem se encontrado em dias alternados entre os dela comigo. Na verdade, houve dias em que esteve com ele... e comigo em seguida. Ela confessou-me que isso a erotisa duplamente. Deixar-se manipular por mim, após ter sido possuída por Pedro, menos de uma hora antes... Bem que eu percebia o cheiro e os resquícios do macho. Mas, eu também me erotisava com isso. Agora ela se abre e conta tudo. Ela costuma descrever para ele o seu idílio comigo e nossas ardentes tardes ou noites. Ele se excita e exige dela detalhes, de preferência obcenos. Está participando à distância, de uma espécie de ménage-a-trois imaginária. Agora quer me conhecer pessoalmente, já que faço parte, sem querer, de suas fantasias. Quer que nos encontremos, os três, num barzinho, que escolheu, para conhecer-me. Garante, disse ela, que não será invasivo, e que me respeitará. Manda dizer que me admira como artista e que tem imensa curiosidade em conhecer-me, pelo que Aline tem revelado, e pela felicidade crescente dela, que não lhe passou despercebida, e sobretudo não os afastou, e sim uniu-os ainda mais. Assim, dissera ele.
Aceito, intrigada. Como será esse Pedro? Aline mal o mencionava, essa é que é a verdade. E essa discrição de sua parte, em relação a ele, faz-me supor uma enorme cumplicidade entre eles. Como não pensei nisso antes? Bem, vamos lá. Aceito o encontro, e ainda pego-me arrumando-me e enfeitando-me com esmero, para esse evento.
No dia e hora combinados, encaminho-me para o tal barzinho, e ali encontro-os já instalados numa mesa, de mãos dadas. Ruborizo imediatamente contra minha vontade, ao vê-los assim. Pedro levanta-se e puxa gentilmente a cadeira para mim. Reparo que é um belo homem de seus trinta e poucos anos, de cabelos pretos anelados e barba espessa, curta, cerrada. Um rosto, assim... de fotógrafo. Ou de voyeur ? Esse pensamento arrepiou-me. Senti-me imediatamente observada, medida, eu diria mesmo devassada pelo seu olhar observador. Ele sabia tanto de minha intimidade, pelos relatos de Aline, desde o seu primeiro dia de pose, das impressões de Aline sobre a minha pessoa, naquele primeiro encontro, do qual ela fizera para ele um relato completo que o intrigara, que isso me deixava agora, ali, terrivelmente exposta. Sua imaginação já percorrera o meu corpo todo, e agora, ele ali, naquela mesa conferia-me sob as minhas roupas, eu percebia. Sentia-me nua, e instintivamente apertava meus braços contra os meus seios, os cotovelos sobre a mesa e as mãos tocando o meu longo pescoço. Que bobagem! Sou uma adulta, preciso me lembrar disso, e não um adolescente. Ele, o macho, não me intimidará. Eu sei como eles são, os homens... Ah! Aline, porque você fez isso com a gente? Porque aceitei, também, esse encontro, que me coloca numa situação tão vulnerável? Esse rapaz já conhece tanto sobre mim, e eu quase nada sobre ele. Que sei eu do seu caráter? É verdade que seu aspecto não me desagradou, muito menos o seu olhar, em que vislumbrei uma certa doçura, e muita inteligência. Mas...o que quererá ele?
Após a apresentação e as primeiras palavras de conversação gratuita, canhestra a princípio, Pedro começou logo o seu jogo. Um jogo de provocações, na verdade. Perguntou-me pelo meu namorado, ou marido, e ouviu a revelação da minha viuvez precoce. “Ah!” exclamou ele. “E depois?’- “Depois o quê?” repliquei eu. “Não houve outros homens?” “Ah! sim, houve, alguns”, eu respondi com um ar casual.
Pedro pediu bebidas. Parecia acreditar que o álcool o ajudaria a arrancar-me a verdade que procura Mas, o que procura? Ele é esperto. Faz pausas desinteressadas para disfarçar o caráter de interrogatório que essa conversa pode tomar. Logo mudou o jogo, e começou a exercitar o seu charme, tornando-se galante comigo, ao mesmo tempo que intensificava as carícias em Aline. Percebo o seu jogo. Ele quer excitar-me, ou provocar o meu ciúme. Sim, ele tem a fantasia tão comum nos homens, da ménage-a-trois, e já percebo o seu desejo sobre mim. Ele me achou bonita, claro, e gostaria de ver-me na sua cama, juntamente com Aline. Nós mulheres somos alimento, somos iguarias para o homem. Essa é que é a verdade. Como disse André Breton: “A mulher é o alimento corporal mais elevado”. Sim, é preciso aceitar isso, até mesmo com orgulho. E com volúpia. Aquela situação começava real mente a instigar-me. E eu não rejeitaria a idéia dessa relação a três, se de repente, Pedro não começasse a revelar o seu machismo, e a afirmar sua posse sobre Aline. Começou a agir assim, logo que percebeu que eu era uma mulher inteligente, talvez mais inteligente que ele. Ah! Isso ele não podia suportar...
Estabeleceu-se afinal uma situação de antagonismo. Pedro, percebendo que eu não seria manipulável, uma mulher-objeto, e que meu amor por Aline tinha ultrapassado o ponto aceitável (para ele), isto é, era perigoso por ser muito mais que simples desejo, passei a ser uma espécie de ameaça realmente, a rival que ele, no início, não temera. A guerra estava declarada.
Levantei-me na primeira oportunidade, antes que começassem as hostilidades. Suas últimas palavras, contudo, ressoariam mais tarde, dolorosamente, em meu espírito: “ Alma, você precisa de um homem que a dome, ou você perderá logo logo a sua beleza.”

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Aline encontra-me no ateliê, algumas horas depois. Está estranha, olha-me meio de esguelha. Quer saber se estou magoada, se Pedro machucou-me muito com suas agressões veladas. Está em cima do muro. Não quer perder-me, nem a ele também. Agarro-a subitamente e prenso-a contra a parede, num gesto decidido, mas nem por isso viril. Beijo-a ardentemente, e agarro-lhe os seios com força. Ela geme, assustada. Eu grito-lhe:
-“Tu também pensas, Aline, que eu sou menos mulher porque te desejo? Não vês que eu te desejo assim, porque te amo? Quem é aquele homem, para me julgar? Que sabe ele do meu amor, do nosso amor? Ai! Aline, eu sofro. Eu sofro de te amar tanto assim...e nada poder. Não poder ser completa para ti. De ter que dividir-te com aquele idiota. Ah! Quase fiz o seu jogo!... e pensar que acreditei, por momentos, que poderia dividir-te com ele... na mesma cama!. Não, não é possível. Quero-te inteira, Aline, e ouso pedir-te agora que o deixe. Venha, venha, Aline, vamos para o nosso leito. Eu te possuirei, de algum modo! Eu te possuirei!

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Ai, Rodo, como me lembro de ti. Nestes dias de depressão, transporto-me em espírito para a nossa estância, para o nosso pomar. Ali, sob aquela macieira onde fomos flagrados, nuzinhos, tão crianças. Eu tinha a mão sobre o teu pequeno membro... teu pintinho, como dizíamos. E a tua mão sobre a minha conchinha, eu a sinto ainda hoje. Se tivéssemos tido tempo, consumaríamos o nosso maravilhoso pequeno incesto. Teria sido uma solução? Às vezes penso que sim. Eu não me sentiria para sempre assim carente, incompleta. Eu não amaria assim mulheres, tanto quanto a homens, e minha vida seria, talvez, mais fácil. A minha vida amorosa, pelo menos.
Bem, não posso me queixar. O Vati defendeu-nos, filosoficamente, e com o seu maravilhoso senso de humor minimizou os danos. Neutralizou o drama que a Mutti fez do caso, depois de traumatizar-nos tanto com aquele flagrante humilhante. Nunca esquecerei que fomos arrastados pela mão, os dois, peladinhos e chorando, obrigados a cobrirmo-nos com a outra mão, pequenos Adão e Eva, expulsos do paraíso, afastados da nossa macieira querida, que ostentava o nosso coração e iniciais ingenuamente gravados.

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Aline está dividida. Perdeu sua espontaneidade comigo. Parece sentir-se culpada agora, na nossa relação. O Pedro conseguiu envenenar o seu espírito. È o seu recurso, sua arma desleal, para arrastá-la para si. Eu sei: “no amor e na guerra, vale tudo”, diziam os antigos. Mas, ai, não posso lutar com armas assim. Vou perder-te, Aline. Estou te vendo escorrer entre os meus dedos, e sinto o vazio instalar-se no meu peito.
E o meu amor? Ele não deveria bastar-me? Ah! Não, isso não existe. É ideal demais. Quero-te inteira, Aline, quero teu corpo, tua beleza, tuas carícias. Teu cheiro Aline, teu perfume! Vou morrer à mingua, meu corpo sofre, como a minha alma!

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Enfeito o ateliê com flores. Aline vem encontrar-me. Sei que vai despedir-se. Ela chorou muito ao telefone. Diz que precisa ver-me uma vez mais. Eu sei que me ama, e a espero com as flores que o meu amor merece.
Ao tocar a sineta, abro imediatamente a porta e ela cai-me nos braços, aos prantos. Agarramo-nos desesperadamente, como se mãos invisíveis tentassem nos separar. Nossos beijos são ávidos, nossas línguas se enroscam, nossas lágrimas se misturam. Jogamo-nos no chão, arrancando nossas roupas, no centro do ateliê, em meio às telas, num ardoroso sessenta e nove. Queremos entrar uma dentro da outra. Ah! Porquê querem nos separar?
Não deixaremos. Não deixaremos! Entraremos uma na outra. Seremos uma só! Ai!

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Estou no fundo, em meio às trevas. Meu corpo está pesado como meu espírito. Movo-me lentamente nas sombras, no subterrâneo da alma.
Volto à estância, em pleno inverno dentro de mim. Aqui sopra o minuano frio que corre no Pampa, com a minha chegada. Sinto que trago o pampeiro comigo. Ele me segue. Arrasto-me em meio às brumas, entre as árvores do meu pomar. Procuro a minha macieira. Preciso chorar, meu rosto colado ao seu tronco, sentindo com meus dedos a cicatriz do coração com os as nossas iniciais gravadas. Rodo e Alma.
Nosso casarão está deserto, a sala vazia, o piano mudo. Perambulo à noite pela nossa biblioteca, olhando as lombadas das obras outrora tão queridas. Um instinto me faz erguer a mão em direção a um grande tomo, e puxá-lo, pesadíssimo: “AS AVENTURAS DO BARÃO DE MÜNCHAUSEN”, ilustrado por Doré, e abri-lo a esmo, justamente numa página ilustrada: o barão, alçado no ar, de um poço de areia movediça, com seu cavalo abarcado pelas suas pernas, pela força do seu braço que o puxa pelo rabicho de sua nuca. Ó visão inspiradora! Ó emulação salvadora! Sinto que vou puxar-me igualmente pelo cabelos, também para cima, para cima!

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Volto a São Paulo, ao meu ateliê nos Jardins, ainda muito lenta, como em começo de convalescença. Ao entrar, a visão dos meus quadros, das muitas telas, prontas ou inacabadas, me consola. Como amo este ateliê! Este pequeno universo que construí sozinha (se é que isso é possível). Na verdade, ele é fruto da minha bagagem de infância, de sonhos, e de meu ideal de arte e beleza, herdados do Vati, sonhador como eu, mas que tinha, talvez, os pés mais firmes no chão da nossa estância. Ah! Vati, tu voavas era na música, ao teu piano que dedilhavas tão bem! Ainda ouço as sonatas, Vati, e os prelúdios, mas não mais as sinfonias cuja marcialidade agora me repugnam....
Torno a colocar os meus CDs preferidos no aparelho, escolhendo primeiramente o Trio em mi bemol maior, Opus 100, de Schubert. Ouvindo novamente essa obra-prima, começo a compreender algo inexprimível dentro de mim mesma, algo que atribui sentido à minha paixão perdida, e me reconcilia comigo mesma, nesta espécie de fracasso que senti em minha vida, com essa experiência à primeira vista desastrosa. Sei que vou desfiar em seguida uma série de obras musicais queridas, chegando afinal àquela “Ária da Campainha”, da Lakmé de Léo Delibes, que produz em mim uma estranha identificação com a estória da pequena jovem pária da Índia, que atravessa a floresta fazendo soar o seu sininho. Esta ária cantada pela personagem Lakmé, na interpretação superlativa da soprano chinesa Ondine Diu Ber, me deixa como que purificada, limpa espiritualmente, talvez pela pura ação da beleza, em meu espírito. Somente a grande música é capaz de agir assim, despojando-nos de nossas paixões talvez supérfluas, pela ação catártica daquelas já sublimadas pela Arte. Para finalizar coloco no aparelho uma versão para piano e grande orquestra sinfônica, do Feitiço da Vila, de Noel Rosa. Isso acaba de me fazer querer viver novamente, sorrir, desabrochar... Pressinto que, em menos de um mês, na certa, voltarei a amar .

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Lanço um quadro novo, uma imensa tela cuja superfície imaculadamente branca me sugeriu uma espécie de virgindade selvagem, se posso assim dizer. Estou novamente lançada à uma aventura que nunca me decepcionou. Tudo é possível no espaço ideal de uma tela, onde o espírito se funde com o acaso para permitir todos os vôos. Neste estado de exaltação, altamente prazerosa, passo a achar tudo o mais, fútil, menor, mesmo as minhas mais dolorosas e recentes paixões. Mas... não renego nada. Posso amar Aline agora já sem dor. Posso amar tudo e todos, bastando que me mantenha fiel à minha arte, nunca a renegue ou me afaste perigosamente dela, ou de mim mesma como o fiz. Reconcilio-me com o imenso privilégio de ser artista, esse ser caro aos deuses, a ponto deles, amiúde o atormentarem, para testarem seu amor... e sua coragem. Sim, coragem é a suprema virtude exigida do artista, para criar e para viver, eu sei. E ai daqueles que cospem e blasfemam sobre o dom supremo de criar, espelho da divindade. Esses sim, não escapam ao seu próprio Hades interior. Esse é o segredo da vida, e da Alegria, nessa nossa passagem... Mas, chega de filosofar. Quero viver, viver, amar e gozar novamente, usufruindo os dons com que fui cumulada .Ah! alegria criadora, volto para ti!
Após algumas bravas pinceladas, sou obrigada a interromper o trabalho: o interfone toca insistentemente.


FIM


04/06/2004