sábado, 17 de maio de 2008

Aline (de Alma Welt)

Do livro publicado CONTOS DA ALMA, de Alma Welt


Sinto-me solitária. Não estou agüentando, preciso fazer alguma coisa a respeito... Estou começando a parecer uma solteirona inconformada.
Tento localizar Rodo, meu irmão caçula, que amo tanto. Penso em convidá-lo a morar comigo, apesar dos problemas que isso pode me acarretar. Mas não consigo localizá-lo. Está praticamente desaparecido. Conversando com minha irmã mais velha sobre isso, nada consegui saber sobre o seu paradeiro, e só obtive um sermão chatíssimo sobre o desperdício da minha vida (do seu ponto de vista), de que deveria procurar um marido que cuidasse de mim, enquanto é tempo, enquanto ainda sou jovem e bonita, porque depois...blá, blá, blá...Etc.etc.
Bato o telefone e ponho-me praticamente a gritar. Olho-me no espelho, o rosto riscado de lágrimas, congestionado. Assim, vou me acabar.
Tomo, afinal, uma decisão. Ligo para uma agência de modelos, famosa, que encontro na lista amarela. Falo com a atendente, e apresento-me como a artista plástica Alma Welt. Ela parece saber quem sou. Digo-lhe que preciso de uma modelo de ateliê, que seja linda, nada menos que isso, e que aceite se despir como “modelo vivo”, para uma pintora famosa, que sou eu. A funcionária achou muito natural, e consultou seu cadastro de modelos. Perguntou-me se não quero um rapaz, também. Eles os têm belíssimos e com boas referências. Digo que não, que prefiro uma modelo para nu artístico feminino. Ela percorre as fichas, e parece puxar uma, pela fotografia. Diz: “Tenho uma aqui que faz esse tipo de trabalho. Chama-se Aline.” Pergunto-lhe “Ela é bela?” Ela responde: “ Muito. É morena clara, de cabelos cacheados e olhos azuis. Uma beleza, e o corpo, então, perfeito.” Digo-lhe que me mande essa modelo. Ela me pede todos os meus dados, e o número do meu cartão de crédito. Diz-me o preço da hora dessa modelo, as condições, e tudo mais. Diz-me que me mandará um contrato para eu assinar. Concordo com o preço, com tudo. Quando afinal desligo, sinto-me aliviada.
Deito-me no meu sumiê, no espaço cercado pelas minhas telas. Ajeito um grande espelho antigo, de modista, que tenho para auto-retratos. Desnudo-me, e volto a deitar-me em pose de odalisca de Ingres. Sempre fui um tanto voyeuse de mim mesma. O que me resta, afinal? Preciso apreciar a minha beleza, enquanto ela existe, já que ela é tão elogiada pelas pessoas. Isso me deixa um tanto erotizada, e começo a exibir-me em todos os ângulos, alguns até mesmo um tanto pornográficos. Mas logo me canso da brincadeira, e caio de bruços, com a cara na almofada, soluçando. Adormeço ali mesmo, nua e descoberta.

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Na manhã seguinte, perto das 10 horas, toca o telefone. É Aline, a modelo. Notei-lhe a bela voz, doce, ao mesmo tempo direta e prática. Gostei do que ouvi. Ela combina vir ao meu ateliê às três da tarde, para começar as poses. Ao desligar, ponho-me a rodopiar pelo estúdio, como uma louca, apaixonada. Eu sou assim. Já estou predisposta a amar. Não quero saber se dará certo, se serei correspondida. Isso de amar, é antes de tudo uma questão de querer, de entregar-se, de predispor-se. Ainda penso assim. Somente sei, que, depois de disparado o processo, perdemos o controle. Ah! Como eu haveria de comprovar isso!...

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Toca o interfone. O seu Ermírio anuncia Aline. Abro a porta do apartamento e deixo-a escancarada. Assim, ela sairá do elevador e eu a estarei esperando (como se estivesse de braços abertos). Aliás, os abro rapidamente, fechando-os pouco antes da porta do elevador abrir-se. A moça olha-me surpresa, enquanto abro o meu mais receptivo sorriso. Ela é bela, meu Deus! Mais do que eu imaginava.
Aline estende-me a mão, comprida, perfeita, como a minha. Eu reparo em tudo. Seguro-lhe a mão e não a solto, para conduzi-la para dentro do apartamento. Ela olha, curiosa, para mim, e logo lança os olhos ao redor. Desprende sua mão da minha e rodopia um pouco de braços abertos, com um lindo sorriso. E diz, parando e cruzando as pernas, de pé, graciosamente:
–Alma Welt, a pintora...Que lindo tudo aqui, a começar por você !
Adorei ela dizer isso, meu coração disparou mais ainda. Eu pensei:
“Ela já foi fisgada. Ou, pelo menos começou bem...”
–Obrigada, Aline, tu também és linda, e ...acho que vamos nos dar bem. Tu queres alguma coisa antes de começar-mos a trabalhar? Um café, por exemplo, ou um suco?
–Não, Alma, obrigada. Pode preparar seu material. Começamos assim que você quiser.
Coloquei uma grande tela quadrada, no cavalete. Não pintarei nenhuma “odalisca” na horizontal. Vou enquadrá-la numa composição contemporânea, que não sei ainda como será. Mas ela estará de pé, ou acocorada. Talvez no ato de despir-se.
Aline começa a tirar a roupa, muito simples: a camiseta sobre os seios que despontam, sem sutiã. Que belos! Senta-se no chão e tira o tênis, depois a calça jeans. Fica um instante de calcinha e olha em torno onde botar a roupa. Coloca-as sobre um banco, ergue os olhos, fita-me e abaixa a calcinha. Tira-a com infinita graça. Percebo que ela se esmera na graciosidade dos gestos. Isto é um bom sinal. De sua elegância natural, que eu já notara à sua entrada, ou de uma intenção inconsciente de sedução: melhor ainda...
Fica então imóvel, os braços caídos, esperando. Aproximo-me e toco seus braços. Ergo-lhe um e deixo-o em determinada posição, depois o outro. Em seguida ponho minhas mãos em seu rosto e viro-o suavemente para um lado. Noto que ela é uma profissional: tem prática. Fica imóvel, congelada, exatamente na posição em que a deixo. Afasto-me e olho-a inteira. Como é bela! Que corpo! Morena clara, formas suaves, esguias. Pernas longas e bem torneadas. Que pés! Que mãos! E o seu púbis! A maravilhosa curva suave do seu ventre encontrando um montículo de pelos que deixam descobertos a vulva perfeita, como uma concha rosada, nada para fora, como uma adolescente. Uma promessa de prazer. Sacudo a cabeça como para espantar um pensamento, e ela com o rabo dos olhos parece perceber esse meu gesto. Capto uma curva quase imperceptível nos cantos dos seus lábios. Ela está sorrindo por dentro. Safadinha! Ela sabe... ou ela quer provocar-me. Começo a manuseá-la profissionalmente, mas com muita delicadeza. Observo seus seios, seu peito que começa a ofegar. Isso ela não saberá disfarçar... Seu coração, sua respiração a trairá. Ela está excitada. Ou, de alguma forma, emocionada. Afasto-me, olho-a com atenção profissional, mas sempre com um laivo de doçura, que ela captará. Viro-me e vou procurar um CD. Fico de costas para ela por alguns segundos, escolhendo entre a pilha, e ao mesmo tempo saboreando o seu olhar pelas minhas costas, que adivinho. Que sinto, na verdade. Demoro-me quase um minuto antes de voltar-me subitamente para ela, a tempo de pegar os seus olhos voltados para mim, que então, quase assustados, se desviam! Essa garota é adorável. Fui maravilhosamente sorteada. Ela será o meu amor. Eu me prometo!

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Continuo pintando desde cedinho, todos os dias. Mas enquanto Aline não chega, percebo que o meu trabalho tem o timbre da espera. Quando ela entra, ainda pela manhã, meu dia realmente começa. A vida começa... Caí na minha própria armadilha. Passo muito tempo esperando-a. Ela chega e me ilumina. Não terei então luz própria? Suspeito que não. Essa é a qualidade do amor... iluminar-se do amado. Preciso de Aline. Necessito Aline. Meu amor. Meu amor...Como é belo o seu nome, Aline, como é perfeito o seu som. Olho seus olhos, sua testa, seu narizinho, sua boca carnuda na medida certa. Seus cachos... como é bela, meu Deus! Queria engoli-la . Queria-a dentro de mim, para sempre. Mas ela... está fora de mim. Ela é um pouco rebelde. Ela se irrita, às vezes. Ela é brusca, em certos momentos. Ela percebe que eu a desejo... que eu a quero. Vai começar a tiranizar-me. Ai, meu Deus... Vou sofrer. Ela vai fazer-me sofrer. Ela já o faz... Ela joga charme. Ela se exibe ao posar. Ela se excita ao ver como a olho, como a desejo. Em certos momentos enquanto posa, percebo um ligeiro brilho na portinha de sua vulva, que ela não pode esconder. Ela fica molhada. Ela se trai. Ah! querida, tu já estás caindo na minha teia... ou eu na tua, não sei mais.
E os seus seios, meu Deus! Apontados para a frente, perfeitos, brotam na horizontal como se estivessem na vertical, como uma menina. Ainda não sentiram o peso da gravidade. Seu corpo é uma obra de arte, como o meu também é, essa é que é a verdade. Pintá-los é tão somente registrá-los, conservá-los assim para sempre. É um dever que sinto. Não, não seja hipócrita, Alma. É teu prazer, é tua luxúria. O gozo do espelho...

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Aline dorme ao meu lado nua, neste verão escaldante. Fico horas a olhá-la, a degustar a sua imagem, com as minhas retinas de “expert”. Não! Com o meu olhar amoroso, isto sim. Quantas vezes ponho-me a beijar cada centímetro de sua pele, e também de algumas mucosas mais acessíveis. Oh! Meu Deus, meu Deus. Estou ficando louca de amor. E de paixão. Já começo a sofrer por antecipação. Sofro de tanto amá-la, de tanto desejá-la. Serei eu uma doente? Carente? Não sei mais. Nada me faltou na infância. Fui tão amada... Mas, e minha mãe? Talvez esteja aí a razão dessa minha febre amorosa. Minha mãe não me amava do jeito que eu queria, pois não aceitava plenamente meu jeito de ser. Ela não me queria artista. Isso a assustava. Ela tinha medo disso: da artista. Ela não compreendia o meu excessivo amor pela beleza. Ela não aceitava ver-me chorar pelo belo, pela poesia. E muito menos pela alegria. Para ela isso era uma espécie de aberração... Uma heresia... no seu acinzentado mundo interior, cristão, igrejeiro. Ela tinha gerado uma pequena rebelde, pagã, dionisíaca, germânica por um lado, lusa nostálgica pelo outro; ambos os lados temidos e rejeitados por ela.
Ah! Como ela quis, sutilmente ou não, reprimir-me! O que foi pior: tentar reprimir-me com sutileza. Como me magoava, às vezes! Como me decepcionava, desapontava, ou me fazia envergonhar-me após um momento de euforia...
Mas, também ela me amava...à sua maneira. Um dia abraçou-me, dizendo: “Alma, Alma, o quanto vais sofrer, minha filha. O mundo não é belo com tu pensas. Estamos no vale de lágrimas, tu pareces não saber, minha filha. Mas tu verás. Tu perceberás que viemos a este mundo para sofrer pelos nossos pecados. Alma, Alma... A vida não é prazer, a vida não é uma festa, minha filha.”
Ah! Mamãe, tu nunca pudeste me convencer disso. Não, ainda não acredito em ti. Tenho pena de ti, mamãe. Tu não soubeste viver. Não soubeste amar, rir e gozar plenamente. Tu acreditaste num velho catecismo. Os padres...eles te enganaram, ou foram teus pais, meus avós portugueses, que o fizeram. Mamãe, mamãe, eu sinto tanto por ti! Talvez fosses muito infeliz com o Vati. Eu nunca soube direito, mas, talvez, ele não fosse o teu verdadeiro amor. Isso explicaria tudo. Essa tua amargura, esse teu estoicismo espartano, essa austeridade na casa compartilhada com Dioniso, o grande bode luxurioso que era o Vati. Só isso explicaria tanta contradição...
Quanto a mim, tomei o partido da alegria vital, e do prazer, representado por meu pai. Sinto muito, Mutti, nunca estive do teu lado. Talvez devesse ter ido mais fundo, para te compreender melhor. Mas agora é tarde, não te beijei o rosto em tua agonia, e não derramei muitas lágrimas ao pé do teu caixão, como o fiz, mais tarde, diante do caixão do velho. Eu sinto muito...

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Desperto mais uma manhã ao lado de Aline. Espreguiçamo-nos como duas gatas preguiçosas, mas logo quero tocá-la, acariciá-la um pouco. Preciso certificar-me de que ela é real, e não um produto materializado da minha fantasia. Então, beijo-a e logo me levanto para preparar o café da manhã para nós. Quero sempre trazer-lhe o café na cama. Quero servi-la. Ela se admira um pouco disso, pois estava preparada para ser somente uma modelo, e portanto, de algum modo servir-me em troca de um salário, ou cachê. Mas não, ela ainda não sabe o quanto vou amá-la. O quanto, portanto já a amo. Preciso tomar cuidado para não assustá-la com a voracidade da minha paixão. Aline é ligeiramente arisca, não muito. Tive sorte. Se ela não se rebelou, e não rejeitou as minhas carícias logo de saída.... a coisa está bem encaminhada. Como é bela! E como é graciosa! Ai! meu Deus, preciso controlar-me para não desenvolver ciúmes dessa garota em relação àquele seu namorado, o tal de Pedro. Mas... precisamos traí-lo. Sim, nós mulheres temos esse direito. Não sei porquê, mas algo me diz que é o que nós mulheres deveríamos sempre fazer. Isso representaria uma certa rebelião em relação à nossa subserviência ancestral aos homens. Porquê não? Oh! meu Deus, tudo isso são justificativas. O que me impulsiona é o meu desejo. Somente isso. Sou uma faminta...
Por outro lado, meu desejo reveste-se das tintas do verdadeiro amor. Sim, eu tenho tanto amor para dar!. Preciso derramá-lo ou ele me consumirá. Esta moça, esta mulher, é como eu, mas pode ser mais que um espelho. Terei todo cuidado para diferenciá-la do meu reflexo. Ela merece toda a atenção. Ela é delicada, feminina como poucas. Por isso escolheu essa profissão. Ela sabe, adora ser olhada, devorada mesmo com os olhos. Não, isso não é apenas profissional. Tem a ver com a sua libido, sua pulsão exibicionista. Quer dizer, o seu desejo!

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Aline já está enredada na minha teia. Percebo que já a seduzi completamente. Ela revela uma disposição voluptuosa em dar-se, em ser amada, admirada, acarinhada sensualmente. Quando demoro em tocá-la ela se aproxima, como uma gata, ronronante, e toca seu rosto, começando por sua testa, em qualquer parte do meu corpo, arbitrariamente, de maneira insólita. Se estou muito ocupada, tira por exemplo a paleta das minha mão e pegando-a nas suas, passa-as no seu rosto, nos seu cabelos, com um olhar lânguido, irresistível. Então, largo os pincéis, largo tudo e a abraço, conduzindo-a numa dança exótica, meio tango, meio pas-de-deux, ao nosso leito. Fico então a beijá-la, a lambê-la dos pés à cabeça, por horas. Depois detenho-me sobre o seu púbis, ralo, cuja penugem negra, macia, tem um cheiro peculiar, um perfume adorável, e banho-a com a minha língua, demoradamente. Titilando o seu clitóris, que desponta com uma cabecinha, de um pênis minúsculo, mas túrgido em toda a sua possibilidade. Fico enternecida com esse pequeno membro que quer mostrar-se potente, pobrezinho, e medito por um segundo na sua natureza ancestral, do tempo em que éramos unos, homem e mulher. Lembro-me que sempre me espantei com os mamilos dos homens e reparava, ainda na infância, como eles se tornavam tesos, nos peões sem camisa, quando lidavam com as rêses. Eles nunca me enganaram. Quanto aos seus grandes membros, sim, eu reparava neles, bem disfarçados sob as folgadas bombachas. Bem que eles me chamavam “chinoquinha”, entre eles, eu ouvi, algumas vezes. Talvez percebessem a minha atenção, a minha sensualidade que aflorara tão cedo. Não foi à toa que ocorreu aquele incidente com meu irmãozinho Rodo. Não contarei por hora, esse segredo... da minha infância. Quero concentrar-me em Aline, minha doce Aline, que agora dança o mais belo balé do mundo em minhas mãos. Como nos amamos! Sim, porque ela me ama, eu percebo. E não mais conseguimos disfarçar em público, agarradas, abraçadas. De mãos dadas a todo minuto. Por outro lado, percebo uma certa condescendência nos estranhos, somente talvez porque somos jovens e belas. Não ousariam chamar-nos por aqueles nomes pejorativos, que não repetirei, frutos da vulgaridade das mentes banais.
Sim, o que sempre me chocou foi a vulgaridade do homem comum. Prometi a mim mesma, nunca mencioná-lo, nunca sequer descrever o homem vulgar, nos meus escritos, nos meus poemas. Ele não entra em linha de conta. É como se não existisse. A minha vingança, sutil, é omiti-lo completamente. “Você vive numa torre de marfim”... dirão alguns. Não, a vida somente é verdadeira em seus termos ideais, e o mito a perpassa cotidianamente, sem que esse homem comum sequer o perceba. Como poeta sempre vivi em sintonia com o mito, percebendo a alegoria riquíssima dos acontecimentos aparentemente simples da minha vida, nada banais, pois que na minha vida o banal não existe, já que o desvelo, ao seu sentido mais profundo, em cima mesmo do momento. Tenho pena das pessoas que não sabem ler as entrelinhas de suas vidas, o significado oculto de tudo que lhes acontece, sem perceberem que a vida é muito mais rica para todos, e o herói e a heroína estão dentro de nós, assim como todas as grandes aventuras, até mesmo as epopéias.

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Aline revelou-me hoje, que continua seu namoro com Pedro, o que não chegou a me surpreender. Eu já previa isso. Eles tem se encontrado em dias alternados entre os dela comigo. Na verdade, houve dias em que esteve com ele... e comigo em seguida. Ela confessou-me que isso a erotisa duplamente. Deixar-se manipular por mim, após ter sido possuída por Pedro, menos de uma hora antes... Bem que eu percebia o cheiro e os resquícios do macho. Mas, eu também me erotisava com isso. Agora ela se abre e conta tudo. Ela costuma descrever para ele o seu idílio comigo e nossas ardentes tardes ou noites. Ele se excita e exige dela detalhes, de preferência obcenos. Está participando à distância, de uma espécie de ménage-a-trois imaginária. Agora quer me conhecer pessoalmente, já que faço parte, sem querer, de suas fantasias. Quer que nos encontremos, os três, num barzinho, que escolheu, para conhecer-me. Garante, disse ela, que não será invasivo, e que me respeitará. Manda dizer que me admira como artista e que tem imensa curiosidade em conhecer-me, pelo que Aline tem revelado, e pela felicidade crescente dela, que não lhe passou despercebida, e sobretudo não os afastou, e sim uniu-os ainda mais. Assim, dissera ele.
Aceito, intrigada. Como será esse Pedro? Aline mal o mencionava, essa é que é a verdade. E essa discrição de sua parte, em relação a ele, faz-me supor uma enorme cumplicidade entre eles. Como não pensei nisso antes? Bem, vamos lá. Aceito o encontro, e ainda pego-me arrumando-me e enfeitando-me com esmero, para esse evento.
No dia e hora combinados, encaminho-me para o tal barzinho, e ali encontro-os já instalados numa mesa, de mãos dadas. Ruborizo imediatamente contra minha vontade, ao vê-los assim. Pedro levanta-se e puxa gentilmente a cadeira para mim. Reparo que é um belo homem de seus trinta e poucos anos, de cabelos pretos anelados e barba espessa, curta, cerrada. Um rosto, assim... de fotógrafo. Ou de voyeur ? Esse pensamento arrepiou-me. Senti-me imediatamente observada, medida, eu diria mesmo devassada pelo seu olhar observador. Ele sabia tanto de minha intimidade, pelos relatos de Aline, desde o seu primeiro dia de pose, das impressões de Aline sobre a minha pessoa, naquele primeiro encontro, do qual ela fizera para ele um relato completo que o intrigara, que isso me deixava agora, ali, terrivelmente exposta. Sua imaginação já percorrera o meu corpo todo, e agora, ele ali, naquela mesa conferia-me sob as minhas roupas, eu percebia. Sentia-me nua, e instintivamente apertava meus braços contra os meus seios, os cotovelos sobre a mesa e as mãos tocando o meu longo pescoço. Que bobagem! Sou uma adulta, preciso me lembrar disso, e não um adolescente. Ele, o macho, não me intimidará. Eu sei como eles são, os homens... Ah! Aline, porque você fez isso com a gente? Porque aceitei, também, esse encontro, que me coloca numa situação tão vulnerável? Esse rapaz já conhece tanto sobre mim, e eu quase nada sobre ele. Que sei eu do seu caráter? É verdade que seu aspecto não me desagradou, muito menos o seu olhar, em que vislumbrei uma certa doçura, e muita inteligência. Mas...o que quererá ele?
Após a apresentação e as primeiras palavras de conversação gratuita, canhestra a princípio, Pedro começou logo o seu jogo. Um jogo de provocações, na verdade. Perguntou-me pelo meu namorado, ou marido, e ouviu a revelação da minha viuvez precoce. “Ah!” exclamou ele. “E depois?’- “Depois o quê?” repliquei eu. “Não houve outros homens?” “Ah! sim, houve, alguns”, eu respondi com um ar casual.
Pedro pediu bebidas. Parecia acreditar que o álcool o ajudaria a arrancar-me a verdade que procura Mas, o que procura? Ele é esperto. Faz pausas desinteressadas para disfarçar o caráter de interrogatório que essa conversa pode tomar. Logo mudou o jogo, e começou a exercitar o seu charme, tornando-se galante comigo, ao mesmo tempo que intensificava as carícias em Aline. Percebo o seu jogo. Ele quer excitar-me, ou provocar o meu ciúme. Sim, ele tem a fantasia tão comum nos homens, da ménage-a-trois, e já percebo o seu desejo sobre mim. Ele me achou bonita, claro, e gostaria de ver-me na sua cama, juntamente com Aline. Nós mulheres somos alimento, somos iguarias para o homem. Essa é que é a verdade. Como disse André Breton: “A mulher é o alimento corporal mais elevado”. Sim, é preciso aceitar isso, até mesmo com orgulho. E com volúpia. Aquela situação começava real mente a instigar-me. E eu não rejeitaria a idéia dessa relação a três, se de repente, Pedro não começasse a revelar o seu machismo, e a afirmar sua posse sobre Aline. Começou a agir assim, logo que percebeu que eu era uma mulher inteligente, talvez mais inteligente que ele. Ah! Isso ele não podia suportar...
Estabeleceu-se afinal uma situação de antagonismo. Pedro, percebendo que eu não seria manipulável, uma mulher-objeto, e que meu amor por Aline tinha ultrapassado o ponto aceitável (para ele), isto é, era perigoso por ser muito mais que simples desejo, passei a ser uma espécie de ameaça realmente, a rival que ele, no início, não temera. A guerra estava declarada.
Levantei-me na primeira oportunidade, antes que começassem as hostilidades. Suas últimas palavras, contudo, ressoariam mais tarde, dolorosamente, em meu espírito: “ Alma, você precisa de um homem que a dome, ou você perderá logo logo a sua beleza.”

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Aline encontra-me no ateliê, algumas horas depois. Está estranha, olha-me meio de esguelha. Quer saber se estou magoada, se Pedro machucou-me muito com suas agressões veladas. Está em cima do muro. Não quer perder-me, nem a ele também. Agarro-a subitamente e prenso-a contra a parede, num gesto decidido, mas nem por isso viril. Beijo-a ardentemente, e agarro-lhe os seios com força. Ela geme, assustada. Eu grito-lhe:
-“Tu também pensas, Aline, que eu sou menos mulher porque te desejo? Não vês que eu te desejo assim, porque te amo? Quem é aquele homem, para me julgar? Que sabe ele do meu amor, do nosso amor? Ai! Aline, eu sofro. Eu sofro de te amar tanto assim...e nada poder. Não poder ser completa para ti. De ter que dividir-te com aquele idiota. Ah! Quase fiz o seu jogo!... e pensar que acreditei, por momentos, que poderia dividir-te com ele... na mesma cama!. Não, não é possível. Quero-te inteira, Aline, e ouso pedir-te agora que o deixe. Venha, venha, Aline, vamos para o nosso leito. Eu te possuirei, de algum modo! Eu te possuirei!

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Ai, Rodo, como me lembro de ti. Nestes dias de depressão, transporto-me em espírito para a nossa estância, para o nosso pomar. Ali, sob aquela macieira onde fomos flagrados, nuzinhos, tão crianças. Eu tinha a mão sobre o teu pequeno membro... teu pintinho, como dizíamos. E a tua mão sobre a minha conchinha, eu a sinto ainda hoje. Se tivéssemos tido tempo, consumaríamos o nosso maravilhoso pequeno incesto. Teria sido uma solução? Às vezes penso que sim. Eu não me sentiria para sempre assim carente, incompleta. Eu não amaria assim mulheres, tanto quanto a homens, e minha vida seria, talvez, mais fácil. A minha vida amorosa, pelo menos.
Bem, não posso me queixar. O Vati defendeu-nos, filosoficamente, e com o seu maravilhoso senso de humor minimizou os danos. Neutralizou o drama que a Mutti fez do caso, depois de traumatizar-nos tanto com aquele flagrante humilhante. Nunca esquecerei que fomos arrastados pela mão, os dois, peladinhos e chorando, obrigados a cobrirmo-nos com a outra mão, pequenos Adão e Eva, expulsos do paraíso, afastados da nossa macieira querida, que ostentava o nosso coração e iniciais ingenuamente gravados.

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Aline está dividida. Perdeu sua espontaneidade comigo. Parece sentir-se culpada agora, na nossa relação. O Pedro conseguiu envenenar o seu espírito. È o seu recurso, sua arma desleal, para arrastá-la para si. Eu sei: “no amor e na guerra, vale tudo”, diziam os antigos. Mas, ai, não posso lutar com armas assim. Vou perder-te, Aline. Estou te vendo escorrer entre os meus dedos, e sinto o vazio instalar-se no meu peito.
E o meu amor? Ele não deveria bastar-me? Ah! Não, isso não existe. É ideal demais. Quero-te inteira, Aline, quero teu corpo, tua beleza, tuas carícias. Teu cheiro Aline, teu perfume! Vou morrer à mingua, meu corpo sofre, como a minha alma!

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Enfeito o ateliê com flores. Aline vem encontrar-me. Sei que vai despedir-se. Ela chorou muito ao telefone. Diz que precisa ver-me uma vez mais. Eu sei que me ama, e a espero com as flores que o meu amor merece.
Ao tocar a sineta, abro imediatamente a porta e ela cai-me nos braços, aos prantos. Agarramo-nos desesperadamente, como se mãos invisíveis tentassem nos separar. Nossos beijos são ávidos, nossas línguas se enroscam, nossas lágrimas se misturam. Jogamo-nos no chão, arrancando nossas roupas, no centro do ateliê, em meio às telas, num ardoroso sessenta e nove. Queremos entrar uma dentro da outra. Ah! Porquê querem nos separar?
Não deixaremos. Não deixaremos! Entraremos uma na outra. Seremos uma só! Ai!

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Estou no fundo, em meio às trevas. Meu corpo está pesado como meu espírito. Movo-me lentamente nas sombras, no subterrâneo da alma.
Volto à estância, em pleno inverno dentro de mim. Aqui sopra o minuano frio que corre no Pampa, com a minha chegada. Sinto que trago o pampeiro comigo. Ele me segue. Arrasto-me em meio às brumas, entre as árvores do meu pomar. Procuro a minha macieira. Preciso chorar, meu rosto colado ao seu tronco, sentindo com meus dedos a cicatriz do coração com os as nossas iniciais gravadas. Rodo e Alma.
Nosso casarão está deserto, a sala vazia, o piano mudo. Perambulo à noite pela nossa biblioteca, olhando as lombadas das obras outrora tão queridas. Um instinto me faz erguer a mão em direção a um grande tomo, e puxá-lo, pesadíssimo: “AS AVENTURAS DO BARÃO DE MÜNCHAUSEN”, ilustrado por Doré, e abri-lo a esmo, justamente numa página ilustrada: o barão, alçado no ar, de um poço de areia movediça, com seu cavalo abarcado pelas suas pernas, pela força do seu braço que o puxa pelo rabicho de sua nuca. Ó visão inspiradora! Ó emulação salvadora! Sinto que vou puxar-me igualmente pelo cabelos, também para cima, para cima!

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Volto a São Paulo, ao meu ateliê nos Jardins, ainda muito lenta, como em começo de convalescença. Ao entrar, a visão dos meus quadros, das muitas telas, prontas ou inacabadas, me consola. Como amo este ateliê! Este pequeno universo que construí sozinha (se é que isso é possível). Na verdade, ele é fruto da minha bagagem de infância, de sonhos, e de meu ideal de arte e beleza, herdados do Vati, sonhador como eu, mas que tinha, talvez, os pés mais firmes no chão da nossa estância. Ah! Vati, tu voavas era na música, ao teu piano que dedilhavas tão bem! Ainda ouço as sonatas, Vati, e os prelúdios, mas não mais as sinfonias cuja marcialidade agora me repugnam....
Torno a colocar os meus CDs preferidos no aparelho, escolhendo primeiramente o Trio em mi bemol maior, Opus 100, de Schubert. Ouvindo novamente essa obra-prima, começo a compreender algo inexprimível dentro de mim mesma, algo que atribui sentido à minha paixão perdida, e me reconcilia comigo mesma, nesta espécie de fracasso que senti em minha vida, com essa experiência à primeira vista desastrosa. Sei que vou desfiar em seguida uma série de obras musicais queridas, chegando afinal àquela “Ária da Campainha”, da Lakmé de Léo Delibes, que produz em mim uma estranha identificação com a estória da pequena jovem pária da Índia, que atravessa a floresta fazendo soar o seu sininho. Esta ária cantada pela personagem Lakmé, na interpretação superlativa da soprano chinesa Ondine Diu Ber, me deixa como que purificada, limpa espiritualmente, talvez pela pura ação da beleza, em meu espírito. Somente a grande música é capaz de agir assim, despojando-nos de nossas paixões talvez supérfluas, pela ação catártica daquelas já sublimadas pela Arte. Para finalizar coloco no aparelho uma versão para piano e grande orquestra sinfônica, do Feitiço da Vila, de Noel Rosa. Isso acaba de me fazer querer viver novamente, sorrir, desabrochar... Pressinto que, em menos de um mês, na certa, voltarei a amar .

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Lanço um quadro novo, uma imensa tela cuja superfície imaculadamente branca me sugeriu uma espécie de virgindade selvagem, se posso assim dizer. Estou novamente lançada à uma aventura que nunca me decepcionou. Tudo é possível no espaço ideal de uma tela, onde o espírito se funde com o acaso para permitir todos os vôos. Neste estado de exaltação, altamente prazerosa, passo a achar tudo o mais, fútil, menor, mesmo as minhas mais dolorosas e recentes paixões. Mas... não renego nada. Posso amar Aline agora já sem dor. Posso amar tudo e todos, bastando que me mantenha fiel à minha arte, nunca a renegue ou me afaste perigosamente dela, ou de mim mesma como o fiz. Reconcilio-me com o imenso privilégio de ser artista, esse ser caro aos deuses, a ponto deles, amiúde o atormentarem, para testarem seu amor... e sua coragem. Sim, coragem é a suprema virtude exigida do artista, para criar e para viver, eu sei. E ai daqueles que cospem e blasfemam sobre o dom supremo de criar, espelho da divindade. Esses sim, não escapam ao seu próprio Hades interior. Esse é o segredo da vida, e da Alegria, nessa nossa passagem... Mas, chega de filosofar. Quero viver, viver, amar e gozar novamente, usufruindo os dons com que fui cumulada .Ah! alegria criadora, volto para ti!
Após algumas bravas pinceladas, sou obrigada a interromper o trabalho: o interfone toca insistentemente.


FIM


04/06/2004

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