quinta-feira, 1 de maio de 2008

Memória de meu pai morto


Crepúsculo- óleo s/ tela de 30x40cm, de Guilherme de Faria, paradeiro desconhecido.


02/09/2006

Trecho do romance "O sangue da terra", de Alma Welt

Quando há cinco anos atrás iniciou-se a doença de meu pai eu senti que estes céus que nos cobriam escureceram-se, perderam o brilho. Recolhido ao seu leito, com as janelas sempre cerradas pelas cortinas numa semi penumbra, a tristeza que o devorava parecia vir de fora para dentro e por sua própria vontade. Ele deixara de querer viver. O que o corroía? Tenho uma vaga suspeita. Um amor que ele não realizara, e que não era o de minha mãe. Meu pai, herdeiro do romantismo alemão, tardio embora, acabara sendo vítima de um amor perdido, irrealizável? Eu me pergunto ainda hoje. Quem tocava como ele Chopin e Schumann, com tal delicadeza...e tristeza, deveria certamente saber do que estava tocando. Eu sempre suspeitara disso em minha infância, e minha ternura por ele fazia-me, às vezes imaginar-me como uma amante, adulta, acariciando-o apaixonadamente, beijando seus lábios. Hoje sei que esse devaneio é comum nas meninas, embora profundamente recalcado. Não era à toa que minha mãe irritava-se quando me via sentada em seu colo. Ela temia, ela suspeitava da natureza profunda, carnal e anímica da nossa relação. E no entanto essa mulher não conseguia ser para ele a ninfa, a musa, a deusa, que ele merecia, sendo somente a mãe de sus filhos. Um caso, afinal, comum. Mas ele não. Ele não era comum. Seus dotes eram excepcionais, e um homem assim merecia a numinosa figura de mulher que nunca pudemos descobrir, e que habitou os seus sonhos até o fim. Ainda hoje imagino que a descubro, encontro o seu paradeiro e peregrino até ela, linda mulher madura, que me recebe quase maternalmente. Sim, maternalmente, me abraçando e dizendo: “-Alma, leva o meu abraço ao Werner, que se lembrará dele. Leva o meu beijo em teus lábios, e pousa-o sobre os dele. Eu ficarei afinal com ele, através de ti.” Ai! Quero morrer quando lembro disso, tenho até vergonha, eu que não tenho mais vergonha de nada. Tenho pudor de tanto amor que nutri pelo Vati sem nada poder, sem nada saber, tudo imaginando, tudo projetando... e absorvendo o seu maravilhoso mundo mental e anímico. Sou sua herdeira, incuravelmente romântica, e me orgulho disso. Mas as feridas abertas por tanto amor, na finíssima pele da alma, que esbarram nas arestas do cotidiano, não se fecham, não cicatrizam mais... e eu sangro. Eu sangro. Vati, eu fugi daqui, desta estância, do nosso salão com teu caixão entre quatro tocheiros, como de um cavaleiro morto, como um grão-mestre de uma ordem teutônica, cuja solenidade na morte me acachapou. Senti, então, que não podia arcar com o peso da tua herança, e fugi daqui, correndo, a esmo, e fui parar naqueles Jardins anódinos para mim, daquela cidade imensa de São Paulo, a “Paulicéia desvairada”, que pouco ou nada tem a haver comigo. Mas ali, afinal, encontrei o meu amor, atraí-o para o belo ateliê que montei, apesar de tudo, de toda a dor. Ali, Aline veio ao meu encontro, e hoje eu a trago para ti, para apresentá-la a ti, que a desfrutarás através do meu amor. Ela não pode saber disso. Ou já sabe? Ela não se ofenderia... Ela sabe que cultuo os meus deuses, e que és o maior deles, logo abaixo de Deus. Ela é dócil nas minhas mãos, e eu mais a amo por isso, adorável pequena ninfa, que sabe, apesar de tudo, da pureza do meu coração. Nada disso faz de mim uma manipuladora. Tenho direito aos meus amores, e os junto a todos em minha alma: Rôdo e Aline, e a ti, Vati. Acrescentarei Patrícia, minha criança sublime. E até mesmo Vânia, que me amou tanto, quase virilmente. Mas também os gêmeos Hans e Christian, e Pedrinho, meus sobrinhos. Matilde e Gaudério, todos os que me amam ou amaram, são dignos de mim. Alex e Irma, o Duo trágico. Josué, no sertão, levando-me para encontrar o Pavão Misterioso; Jean Baptiste em Paris e Corinne, que me exorcisaram Adèle D’Affry, a Pítia em mim. Todavia quando penso nesta última, vejo que a pitonisa ainda está dentro de mim, e é ela, talvez, que me faz acender piras diante da minha ara. Vati, deposito Aline aos teus pés. Abençoa-a, Vati, de onde estiveres. Quero ser feliz, como talvez não foste nunca. Serei feliz por ti, com o meu amor. Por nós, por nós!

02/09/2006

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