sábado, 12 de abril de 2008

Nossa verdadeira vida

(das Crônicas da Alma, de Alma Welt)

Acaba de ocorrer-me que a nossa vida compõe-se de extratos superpostos, com maior ou menor representatividade, sendo que o plano sexual, representa a parcela mais sugestiva, o extrato superior, o mais significativo de nossa existência. Bem, nós sabemos que Freud já dizia isso com outras palavras. Mas parece que essa evidência continua a ser negada ou abafada até hoje, nesse começo de milênio, como se a sexualidade fosse uma potencialidade menor, ou obscura, que deve permanecer escondida, marginalizada em nossa vida. E nisso consiste a maior hipocrisia do ser humano.
O poderoso instinto de procriar se manifesta acompanhado da pulsão do prazer, um profundo prazer, cuja permanente lembrança se sobrepõe a tudo, por isso há quem tenha o sexo como uma idéia fixa, subjacente a tudo, durante todos os dias de sua vida. Isso, na maioria das pessoas, a julgar pelos estudos modernos sobre a sexualidade. No entanto, há quem negue essa verdadeira hegemonia do sexo, em nossas vidas, em nome de uma suposta “espiritualidade”.
Vocês, meus queridos leitores, já notaram a importância que atribuo ao sexo, como ponto de partida de todas as minhas experiências relevantes. O desejo. Motivação e porto de chegada de tudo, e tema básico ou residual de todas as minhas narrativas e poemas. Não preciso, evidentemente, justificar-me, a essa altura da minha obra, tão natural e espontânea em mim. Entretanto, acabo de ouvir algo desagradável, da parte de uma senhora de idade, bastante culta, que, não por acaso, e surpreendentemente, leu alguns dos meus contos. Ela disse: “A Alma tem, o que, no meu tempo, chamávamos de “furor uterino”. Trata-se de uma ninfomaníaca”. Fiquei, a princípio, chocada com essa observação, sentindo-me, no mínimo injustiçada ou incompreendida. Mas, a seguir, olhando bem nos olhos da tal senhora, não vi maldade nela, ou censura. Mas, sim, um risinho maroto. Percebi, então, que o meu texto levanta, talvez, nas mulheres principalmente, sentimentos ambíguos, contraditórios, despertando-as para a sua própria sexualidade, para os seus próprios “segredos”, tão recalcados. .
Aqui, no meu ateliê paulistano, que nos últimos anos eu sinto como uma base, de onde a minha imaginação parte, na poesia, no conto e... nas minhas memórias amorosas, muito pouco do que narro vem da pura imaginação. Por incrível que pareça, sou uma cronista de mim mesma, do meu próprio cotidiano. Se a tônica dos meus textos é a narrativa amorosa e... erótica, é porque esse é o verdadeiro território da minha alma: a procura incessante do amor, e do prazer. Dito isso, passo a narrar a minha última aventura.
Espero a visita de uma senhora, que telefonou marcando hora para hoje, a partir das três. Ela se diz uma grande admiradora de meus poemas, e quer conhecer-me. É um fato inusitado, raro mesmo. Em geral sou procurada em meu ateliê por conta de minhas pinturas. Todavia, lembro-me agora do desastrado encontro do poeta Umberto, sonetista daquela malfadada “Confraria dos Poetas do Soneto Triste”, da qual contei a patética estória no conto homônimo, dos meus “Contos da Alma”, já publicado em livro.
A doutora Lídia foi tão simpática e reverente ao telefone, que aceitei recebê-la, embora um tanto receosa de me aborrecer, por conta de mal-entendidos. Será que essa senhora leu realmente a minha obra poética, tão confessional que me faz evitar palestras e reuniões sociais, onde posso ser confrontada pelos leitores com perguntas indiscretas no plano pessoal, quando feitas diretamente, pessoalmente? Sempre me refiro aos meus “fiéis leitores sem rosto”, que quero manter assim, anódinos, como sombras servidoras do meu ego, um tanto narcisista, reconheço. Essa maneira de me colocar, sem peias, de maneira total e desabrida, no papel, funciona como uma análise permanente, senão uma terapia. Repasso os meus amores, e meus prazeres, minhas delícias mesmo, que incluem detalhes escabrosos para alguns moralistas. Ali, confesso até mesmo a nota de masoquismo de minha personalidade sexual, que assim assumo e administro, para que não me tome completamente e... me destrua, como ocorreu, por exemplo com aquelas personagens do magnífico filme japonês “ O Império dos Sentidos”.
O interfone soou, Lídia afinal chegou, subiu, tocou a campainha, abri, e me encantou. Deixei de lado imediatamente o “doutora”, como vocês perceberam, diante da encantadora figura à minha porta. Uma moça madura, de quarenta e poucos anos, de rosto interessantíssimo, talvez não bonita, mas atraente e com expressão muito inteligente. Abriu os braços, emocionada, e me abraçou, como se fôssemos velhas amigas, que há muito não nos víssemos. Segurou-me muito tempo, apertada a si, a ponto de eu estranhar, ainda ali na soleira, sob a porta. Então peguei-a pela mão e introduzi-a na grande sala-ateliê enquanto reparava no seu olhar deslumbrado, brilhante de emoção. Seu seio arfava, comovida e grata por estar ali, e de ter-me abraçado, de estar com sua mão na minha. Por minha vez, comovi-me também e abracei-a mais uma vez. Depois fi-la sentar-se, e olhos nos olhos, ela me contou sua estória:
“Alma, você não imagina o que foi a descoberta de sua obra poética, em minha vida. Sou professora de literatura e vivi sempre para os estudos, cultuando os autores clássicos e dedicada à orientação do gosto dos meus alunos na Faculdade de Letras, da USP. Mas ao descobrir na Livraria da Vila, o seu Kit de poemas, aquela graciosa caixinha recheada de maravilhas, com aqueles desenhos lindos do Guilherme de Faria, do qual, por sinal, eu tenho em minha parede, há muitos anos, uma litografia, eu comecei a folhear ali mesmo os livrinhos, e percebi estar diante de uma poetisa lírica de grande estro, e que evita metáforas e imagens artificiais, usando uma linguagem quase coloquial, embora culta, que me encantou. Lembrei-me do estilo de Withman, embora o seu universo seja diferente do dele. Você é talvez mais romântica, e ao mesmo tempo, erótica, o que me parece uma conjunção rara. Mas o timbre de sua expressão poética bateu-me na alma, como se fosse eu mesma, que dissesse aquelas coisas. Decidi imediatamente, ali mesmo, que devia conhecê-la, e me tornar sua amiga e divulgadora, já que você está sendo publicada de uma forma artesanal, encantadora, mas muito rarefeita em termos de público, me parece.”
Ela falou tudo isso muito depressa, devido à sua excitação, segurando a minha mão nas suas e devorando-me com seus grandes olhos cor de mel. Percebi que seu olhar ia dos meus olhos... para os meus lábios. De repente ela parou, arfando, e disse:
—Ah! meu Deus! Ainda por cima, você uma mulher linda! Eu não esperava isso, confesso. Pensava em você de uma maneira, digamos, mais abstrata. Como a poetisa maior, que eu descobrira, por acaso. Coisa raríssima, pois não entendo por quê não saiu ainda nenhum artigo sobre a sua literatura. Mas chega de falar disso, não é? É você que eu preciso ouvir, você, mulher linda e que tem tanto a dizer! Perdoe-me, estou impressionada, não consigo parar de olhá-la. Você...é um bálsamo para os olhos! ( ela não se conteve e tocou a palma de sua mão no meu rosto, num carinho que me surpreendeu).
Eu estava comovida, e lisonjeada. Jamais recebera elogios que fundiam ao mesmo tempo minha figura e minha poesia, e com essa autoridade, de uma professora da USP. Eu estava tão encantada quanto ela. De repente senti o perigo... em mim mesma! Devia eu aproveitar-me, acabar de seduzi-la, fisicamente? Mas o “fisicamente” não é sempre uma extensão do espírito, e por isso uma decorrência natural do processo de sedução mútua, que é o que sempre acontece no encontro amoroso? Vejam, meus leitores, eu já estava pensando em termos dessa palavra! Sou realmente incorrigível! Mas como não pensar nisso, se um encontro assim tão raro, de almas, impõem-se, e estende-se naturalmente aos corpos? Tudo o mais: reservas, prudência, soavam falsos, a partir do seu toque em meu rosto e de suas palavras.
Então aproximei meus lábios, lentamente, dos seus, e beijei-os profundamente. Dei-me conta, ao mesmo tempo, no meio de nossa profunda comoção, que eu não abrira a boca, desde a sua chegada. Eu não dissera uma palavra sequer. Tudo já tinha sido dito antes, nos meus poemas, e ela percebera.

Ela fora seduzida, e eu... consagrada como poeta!


15/06/2006

Um comentário:

Graciela Leães Alvares da Cunha disse...

Querida Lucia
Recebi teu comentário no meu blog...amei...eu "nadica escrevo"..sou amante de poesias...e as da Tua irmã são apaixonates...Apareça mais vezes...
Abraços Fraternos
Graciela