sábado, 12 de abril de 2008

O fazendeiro

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Chegamos à fazenda quase ao anoitecer, mas pude perceber a monumentalidade e os vestígios de um apego desmesurado à tradição, já naquela entrada ladeada de grandes palmeiras. Avistei também um imenso baobá, insólito, raríssimo. Parecendo o abantesma de uma árvore exótica, africana, ali plantada no século retrasado, remeteu minha memória à única referência dela em minha infância: a do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-Éxupery. No entanto o tom geral era de decadência, e eu imediatamente pensei na noite que iríamos enfrentar, com seus possíveis fantasmas, naquele casarão que se pretendia hospitaleiro.

À entrada, no alto da dupla escadaria que fazia o acesso à porta principal do solar, no centro de uma extensa varanda que o circundava, estava o nosso hospedeiro, metido em grandes botas, e um chapéu de abas largas, meio caídas, na cabeça. Entretanto, à medida que subia os degraus em sua direção, meu coração acelerou-se, discreta mas perceptivelmente. Ele estendeu-me a mão enorme, como quem oferece apoio, ao aparar uma amazona ao descer do cavalo, por exemplo, e não como alguém que atinge um patamar, como era o meu caso, ali, no alto daquela escada, em que imediatamente, sob aquele olhar viril, vislumbrei minha perdição.

Estevão, nosso anfitrião, conduziu-me pela mão, de uma maneira galante e um tanto antiquada, saudando minha amiga apenas com um rápido erguer do chapelão. Felizmente Flávia tem bom temperamento e não pareceu ofender-se, disposta que estava desde o princípio a fazer o papel de dama de companhia, já que estamos mergulhando numa atmosfera um tanto arcaica, ou no mínimo demodée.

Adentramos o casarão, que me pareceu escuro, mas ao mesmo tempo iluminado com um farol apenas pelo olhar de Estevão, que brilhava de uma maneira intensa. Eu já estava sob a influência inebriante da paixão nascente, ao por os pés ali, naquela casa maldita. A excessiva virilidade daquele homem, me dominara, paralisando a minha razão. Eu me conhecia... e previa até certo ponto o que viria. Entretanto era preciso nada precipitar, e submeter-me à ordem natural, mais lenta, dos acontecimentos.

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Como eu previra, durante a ceia um tanto silenciosa e constrangedora, fui devorada pelo olhar de Estevão, atrapalhando-me com os copos e talheres, como uma menina, a ponto de engasgar-me com um gole de água, tendo o nosso anfitrião que levantar-se e bater-me às costas. Após o oferecimento de um cafezinho, que recusamos como arremate da ceia, para não perturbar o nosso sono já suficientemente em perigo, despedimo-nos de Estevão, que beijou-me a mão à antiga, mais uma vez tocando o chapelão para Flávia, já que este voltara à sua cabeça imediatamente após a ceia. Fomos conduzidas até o nosso quarto de hóspedes, escolhido por ele, e preparado de antemão. Perguntou à Flávia, com um certo propósito, se ela preferia um quarto só para ela. Flávia, esperta, recusou, percebendo a possível armadilha que nos poria a ambas em perigo, uma vez que é tão bela e desejável quanto eu. Mas ao deitarmos, comentou esse detalhe, afirmando que sua única preocupação naquele momento fora comigo. A dedicação de Flávia sempre me comove.
Esta guria se declara disposta a seguir-me até o fim do mundo, e me lisonjeia uma servidão voluntária assim, vinda de criatura tão bela. Para ser sincera, devo dizer que percebo o timbre apaixonado, do seu amor por mim, que, no entanto nada pede, senão prazer de servir-me e estar sempre ao meu lado. Tenho de tomar cuidado para não feri-la, a este ser delicado, esta alma de elite, com que meu destino excepcional me contemplou.

Logo após nossa breve conversa, exaustas, apagamos a luz, mas minha amiga, passados cinco minutos, para mim previsíveis, pediu para passar para o meu leito, pois que tinha medo... disse, imediatamente metendo-se sob minha coberta e abraçando-me por trás como sempre faz, enquanto enterneço-me e mais a aconchego junto a mim.

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De madrugada, com a sinfonia dos galos, ainda antes do sol aparecer, acordo, e retirando com cuidado o braço de Flávia do meu ventre, levanto cuidadosamente para não acordá-la, e pé-ante-pé, dirijo-me para a porta, abro-a, ela range, e eu penetro no corredor mais escuro ainda, e percorro alguns metros tentando alcançar a cozinha. Tenho sede. Ma de repente, enxergo uma fresta iluminada sob uma porta. Vou passar por ela. Lentamente... mas de súbito ela se abre e... sou agarrada, puxada para dentro com uma grande mão abafando meu grito. Sou arrastada para a grande cama de dossel, só pude reparar nisso, e já o tenho sobre mim com todo o seu peso. Ele abre-me o peignoir com violência, e agarra-me um seio, pequenino sob sua mão, antes que possa entrar em pânico, sinto-o penetrar-me, enorme, tão dolorosamente, que me cala, como quem vai rasgar-se ao meio! Estou sendo estuprada... Eu sabia, eu sabia, desde o primeiro momento, que isto ocorreria, ainda antes de chegar aqui, nesta fazenda, desde lá em São Paulo, naquele restaurante em que ouvi o seu convite! Eu sabia, eu sabia.. só que não esperava que seria assim tão doloroso! Este homem, de cujo rosto nem assimilei os traços, somente o cheiro, os fluidos invisíveis de sua masculinidade brutal! Não sei sequer se este homem é belo, se me mereceria em outras circunstâncias. Quem é ele? Quem é? Agora é tarde: o invasor já está dentro de mim, e derrama seu sumo dentro do meu ventre em chamas. Grito, afinal, grito alto e longamente, para acordar Flávia, para acordar o mundo. E acordo.

Flávia está sobre mim, apavorada, com sua mão apertando meu púbis. Ela quer defender-me... do mundo.

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