quinta-feira, 3 de abril de 2008

O Vizinho

(das Crônicas da Alma, de Alma Welt)

Tenho estado muito ativa, pintando o dia inteiro no ateliê, e ainda escrevendo nos intervalos de secagem ou de descanso. Poesias e contos. Sinto-me no auge das minhas forças criativas, e agradeço aos meus deuses por isso. Entretanto, falta-me alguma coisa, e aquela dorzinha, de solidão, insiste em se imiscuir na minha felicidade criativa. Preciso de um amor.

Foi tomar consciência disso, e a campainha do ateliê soar. Abro a porta, um tanto eufórica com a perspectiva de um contato humano, qualquer que seja e... me surpreendo com a agradável figura com que me deparo frente a minha porta escancarada. Ele sorri, percebendo logo a minha receptividade, estranha nesta cidade grande. Nesta São Paulo, desvairada e cruel.

Estendo a mão ao belo jovem que vem pedir-me uma tesoura emprestada, pois acabou de mudar-se para o apartamento ao lado que esteve vago muitos meses. Convido-o a entrar, e a sentar-se, de uma maneira talvez precipitada, pois afinal, trata-se de um completo desconhecido, apesar do belo e agradável semblante descontraído. Acreditei imediatamente numa surpreendente afinidade, num encontro providencial, ingênua ou boba que sou. Tenho o dom de iludir-me, embora nunca me arrependa por isso, dado o prazer que fruo com a minha própria imaginação, que essa sim, nunca me decepciona, pois me entrega os prazeres e as emoções, adiantado, de avanço, sem fiador. E como pretendo viver num perpétuo presente...

Entabulo uma conversação que se pretende natural, sobre a sua recente mudança e instalação, os percalços da adaptação ao novo espaço, etc. A atração que o rapaz (vou chamá-lo Tiago), exerce sobre mim, parece ser recíproca, embora eu saiba que da parte dos homens isso é comum, dada a minha beleza e natural, mas discreta, sensualidade (quero crer). “Por quê então (o leitor perguntaria), freqüentemente te encontras solitária, ó Alma?” Porque sou seletiva, apesar de tudo, e por isso não promíscua como já me acusaram alguns leitores.

Mas volto à minha visita, o jovem Tiago, que me devora docemente com os olhos enquanto vejo passar por seu semblante toda fantasia natural, do desejo que a minha figura desperta, evidentemente.


Decido, pois, subitamente: vou entregar-me a este jovem, sem mais delongas, se ele quiser e souber tomar-me. Incondicionalmente. Não perguntarei pela sua vida pregressa, pelos seus dons, talentos e mesmo profissão. Evitarei esses assuntos. Ou melhor, os proibirei na nossa relação. Sim, será mais interessante, mais misterioso.

De repente, ele fica confuso, hesita em meio a nossa conversa, como se um pensamento, uma interferência, ocorresse no fluxo de sua mente, nesse nosso agradável bate papo. Terá ele captado as minhas intenções subjacentes? Terei sido pouco sutil, ou ostensiva? Talvez ele tenha se assustado...

Tiago levanta-se, estende-me a mão e encaminha-se para a porta. Lembro-me da tesoura que ele parece ter esquecido totalmente, e com uma risadinha faço-lhe um sinal e corro a buscá-la no quarto. Volto numa corridinha e entrego-lhe, já meio constrangida com meu próprio comportamento atrapalhado e eufórico. Ele sai, sorrindo, meio encabulado, e eu fecho porta, rapidamente, como para me compor, ou redimir-me de tanta atrapalhação, como uma guria, adolescente, que na verdade ainda sou, em minha alma.

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Passaram-se dois dias, e eu tenho pensado constantemente em Tiago, esperando ardentemente que ele volte a bater em minha porta. Se ele não vier, acabarei por tomar esta iniciativa, “dar o troco”, ir buscar a tesoura, aliás, excelente pretexto: ele já devia ter-me devolvido aquela bendita. Sim, vou lá, ele que me espere, o furacão “La Welt” está na área, ele que se cuide!

Toco-lhe a campainha. Nada. Insisto, mas realmente não tem ninguém no apê. Volto e ligo o interfone para a portaria, e pergunto ao seu Ermírio pelo meu vizinho. Este me diz que o rapaz sofreu um acidente e está hospitalizado. Meu coração apertou-se, fiquei muda por uns segundos, chocada, e então perguntei o nome do hospital. Seu Ermírio revelou-o, mas adiantou que não era preciso mais visitas, pois o rapaz já teve alta e está vindo hoje à tarde, daqui a pouco, para casa, isto é, o seu apartamento. Agradeço e desligo, pensativa... e aliviada. Ele parece ser tão sozinho! Sua família é do interior, vou cuidar dele. Vou mimá-lo na sua recuperação. Ele precisará de mim, sua vizinha benevolente, dedicada, desvelada, que serei.
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Esperei muitas horas. Afinal a campainha tocou. Corri a abrir, e topei com a figura consternadora de Tiago, desfigurado, com uma grande atadura no nariz e os olhos roxos, inchados, um deles completamente fechado, hematomas por todo o lado. Assustei-me, dei um gritinho e levei a mão à boca, mas, em seguida, puxei-o para dentro pela mão, e fi-lo sentar-se.

Tiago me conta como foi atropelado ao atravessar a rua fora da faixa, entre os carros parados, e foi colhido por uma moto que vinha em velocidade, singrando os corredores formados pelos veículos.Foi atirado longe, e acordou no hospital com o nariz quebrado, suspeita de concussão cerebral, mas nenhum outro osso quebrado, surpreendentemente, tendo alta depois de dois dias de observação.

Fiquei ali parada em sua frente, condoída, desolada, e depois lhe ofereci um chá que ele recusou, aceitando então um café. Queria logo ir para sua casa, para trabalhar no computador, pois estava com o serviço atrasado. Deixei-o ir. Não havia muito a fazer, apenas reiterei os meus préstimos. Nem perguntei da tesoura.

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No dia seguinte, tendo esperado que ele tivesse dormido bastante, lá pelas onze horas, voltei a tocar sua campainha. Nada, ele vai dormir até tarde, pensei. Não devo incomodá-lo. Mas, voltando, vou direto ao interfone para perguntar pelo meu vizinho. O porteiro me revela que Tiago, bem cedo, esta manhã, saiu com uma mala, dizendo viajar para a casa dos seus pais no interior. Suspirei, de algum modo aliviada. Pobre rapaz! Pelo menos terá uma mãe para cuidar dele, já que não quis os meus préstimos, meu carinho.

Ponho-me a pintar, depois de um longo suspiro.
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Passaram-se mais três dias. Não deixei de pensar no meu desastrado vizinho, o amor que não aconteceu, entre nós. Aquilo que podia ter sido. Esses pensamentos me levaram a filosofar um pouco, sobre a desconcertante autonomia que o destino parece ter, às vezes, em contradição com a teoria da auto-determinação, do livre arbítrio, etc. Essa oposição de dois conceitos que permeiam nossa vida e constroem nosso roteiro, nem só escolhido, nem só aleatório, é um dos mistérios da existência humana. Qual o verdadeiro mecanismo do Destino? A Ironia sagrada de Deus? Dos deuses?

Afinal, impacientei-me, e mais uma vez interfono ao meu porteiro:

—Bom dia, Seu Ermírio. O senhor tem notícias do Tiago, meu vizinho?

— Ah! Dona Alma, eu ia mesmo levar-lhe a notícia. Parece que o rapaz morreu, lá na terra dele. Um parente ligou, dizendo que o rapaz se sentiu mal, e morreu subitamente. O enterro vai ser lá mesmo, claro. Mas ele mandou avisar o condomínio e convidar todos para a missa de sétimo dia.

Deixei cair o fone, a vista escureceu-me por um segundo, tive de apoiar-me na pia da cozinha. Depois uma dor, uma dor aguda no peito, uma angústia me tomou. Sentei no chão da cozinha, em estado de choque por muito tempo.

Então explodi, e chorei, chorei, meu patético amor perdido, meu menino da tesoura, meu malfadado amor... aquele que nunca tive.

07/06/2006

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