sábado, 12 de abril de 2008

O Guerreiro

(Dos Contos Secretos de Alma Welt)

Preparo-me para pintar, ou, como costumo dizer, para atacar uma nova tela. É um momento de grande tensão, e confesso que tenho a tendência a procrastinar, fazendo “cera” por muitos minutos, antes de criar a coragem da primeira pincelada. Afinal, num impulso um tanto vertiginoso, semelhante ao apertar do gatilho numa “roleta russa” (imagino), lanço a primeira mancha, como quem corta as amarras de um navio lançado à aventura. Zarpar!
Quando me volto para a mesa, para buscar mais tinta, o telefone toca. Não sei se isso me causa alívio ou irritação: a sensação é dúbia. Atendo, deparando-me com uma voz máscula, grave, e bonita, que após apresentar-se me faz elogios, ao mesmo tempo que me pede para ser recebido num dia próximo, ou de preferência hoje mesmo, num horário de aceitação comum a ambos. Prefiro assim, não suporto expectativas prolongadas, e se tenho que receber alguém, que venha logo!
A verdade é que o tal telefonema abalou-me o dia, perturbou-me, no meu propósito de pintar. Mas, afinal, insisto, e acabo por deslanchar depois de um período penoso que me despende o resto da manhã. O quadro lançado, ao parar para observá-lo, pareceu-me ressentir-se desses sentimentos dúbios, dessa dispersão. E da insinuante expectativa com que esse desconhecido me contaminou. Medito uns minutos, sobre essa minha instabilidade, essa fragilidade do meu psiquismo. Ou será do psiquismo humano, em geral? Suspendo afinal o trabalho e vou tomar uma ducha, preparar-me para receber o estranho. Dedico-me a uma longa toillete, com especiais cuidados à minha beleza. Porque faço isso? Esse estranho, o merece? Bem, não importa, não devo pensar assim. É uma questão de princípio. Que é isso Alma, não seja hipócrita! Perscruta teu coração! És uma vaidosa, e amas a corte que te fazem, não importando muito o cortesão. Tens uma vocação de princesa, senão de rainha. Além disso, aquela linda voz máscula continua ressoando em teus ouvidos...
Afinal, estou pronta, toca o interfone, atendo. Depois a sineta oriental de minha porta, e o forasteiro, está diante de mim, maravilhoso. Sim, nada menos que isso, alto belo, maduro, e com um olhar de rapinante, logo abrandado, num esforço de doçura, se posso dizer assim. É essa a impressão que tenho, pertinente ou não. Este homem é um predador, disso estou certa, mas numa espécie de armistício com a presa potencial, a fêmea que sou, tão vulnerável... essa é que é a verdade!
Armando, esse o seu nome, se diz um admirador entusiasmado das minhas obras, que vem acompanhando nas galerias, desde a minha primeira exposição. Sentado à minha frente, com uma postura que me parece especialmente elegante, faz um discretíssimo charme de olhar. “Este homem sabe até sentar-se”, penso, sorrindo, por dentro, do meu próprio pensamento. Devo estar traindo-me pelo olhar, espelho de minha alma cândida, desejosa, inocente. Sim sou inocente, não carrego a culpa do meu enorme desejo do ser humano, da beleza, e da força graciosa! Sou mulher, com um orgulho ancestral... imemorial, tenho em mim uma rainha, sim, tenho certeza. Este homem me terá, se quiser. Notem que eu não digo “se eu quiser”...Serei resposta, não questão. Meio reino é aquele da receptividade, do aconchego, do “repouso do guerreiro”. Abro meus braços para o predador, que precisa descansar, pois não veio com o apetite da batalha, mas cansado, enternecido, lavar-se de tanto sangue, tanta guerra.

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A bela cabeça de Armando, repousa em meu seio. Sua respiração silenciosa, plácida, titila com uma leve brisa a auréola rosada que ele tanto beijou. Meus bicos, assim bafejados, continuam ligeiramente tesos, e eu me enterneço por nós, pelas nossas belezas, tão complementares. Trago em mim ainda o seu sumo, e queria guardá-lo para sempre. Este homem é agora o meu amor, e quando acordar, vou chamá-lo, com orgulho : “meu senhor”. “Dormistes bem, monseigneur?” Como o faziam as cortezãs de França ou mesmo suas rainhas. Vou entregar-me uma vez mais a ele, pois que os guerreiros acordam sempre com a lança em riste (dou uma pequena gargalhada, que procuro abafar com a mão, para não perturbar seu sono). Afinal, com o braço adormecido, preciso mudar de posição, e meu movimento, por mais cuidadoso... o acorda.
Ele abre os olhos lentamente, estranhando tudo, olhando-me como se não estivesse por um momento atinando com o lugar, a pessoa... a mulher. Um ligeiro aperto em meu coração antes dele afinal sorrir... e beijar-me. Então, olha embaixo do lençol, confere (os homens tem um secreto medo, eu sei) e tendo encontrado sua lança, tesa, fará mais uma vez uso dela, como eu previa. Ele vira-se sobre mim e me engolfa.

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O guerreiro deixou-me após o nosso banho vaporoso, que cobriu com uma suave bruma todo o meu espaço, fazendo-o partir como um cavaleiro na neblina da manhã, após beijos e mais beijos, que deixaram meus lábios dormentes de memória.
E ponho-me a girar no ateliê, a cantarolar, em minha alegria, a canção que brota do meu coração tocado pelo predador...que respeitou o ninho de seu descanso. Que ofereceu-me sua suavidade, sua força em repouso, fazendo doce a sua lança. E brando, muito mais brando, o seu olhar!

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