segunda-feira, 7 de abril de 2008

O Fauno


O Fauno- Desenho de Guilherme de Faria

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Resolvi recomeçar as minhas sessões de análise. Não porque esteja propriamente sofrendo, mas por perceber que as minhas fantasias estão me levando, cada vez mais a situações insólitas, e talvez a correr riscos. A verdade é que tenho sido estuprada com uma freqüência alarmante em minha vida. Por quê digo isso? Creio sinceramente que às vezes me submeto ao desejo de homens e mulheres que não amo, que na verdade não poderia amar, mas pelo simples fato de me desejarem ardentemente, e com paixão. Par délicatesse*...
Mas, então (vocês podem insistir), por quê falo em estupro?
É porque desperto, talvez, algo nos homens... e mulheres que cruzam a minha vida : uma espécie de exaltação do desejo, talvez um entusiasmo, que acaba por descambar para a obsessão, a exasperação, e finalmente a violência, nessa ordem. E o pior (ou melhor) é que fruo um imenso prazer na dor, e isso, acreditem, me confunde e... me deixa perplexa. Serei eu uma masoquista, e portanto vítima de uma patologia? Não sinto assim, propriamente, Creio que tenho em mim todas as dores, todas as necessidades de dor, e de prazer; tenho a convicção da universalidade de cada desejo, de cada fantasia que me assalta, tenho em mim todas as mulheres e... alguns homens. Por quê só alguns? Porque só os mais sensíveis, certamente, embora se possa dizer isso das mulheres, igualmente. Há mulheres que não são sensíveis. As mulheres vulgares, por exemplo. Entretanto devo reconhecer que a vulgaridade, como a entendo, pode ser, à vezes, a máscara defensiva de uma alma tímida.
Entretanto, recentemente tive a contrapartida de uma dor causada pelo inverso, pela isenção, pela delicadeza suprema, que marca a alma de uma outra maneira, indelével.
Dito isso, vou revelar, a vocês meus leitores, o que eu nunca contaria para um confessor, mesmo que eu tivesse um, ou confiasse num padre encerrado num confessionário, e com voto de sigilo. Mas advirto-os de que não estou aqui para diverti-los, como uma escritora, ou uma espécie de “enterteiner”. Não se trata disso. Antes, eu diria, de uma necessidade de usá-los, meus leitores, com sua permissão, para a terapia que pretendo iniciar. Em troca oferecerei, como sempre... beleza. Comecemos, pois:
Recebi, há dias, uma carta de um fã, que afirmava sentir uma afinidade extrema, total, com meus poemas e contos. Esse fã, entretanto dizia em sua carta que queria compartilhar comigo um segredo vital para ele, e que para isso precisava ser recebido por mim, para fazê-lo pessoalmente. Como a carta era extremamente bem escrita e delicada, eu, talvez precipitadamente, resolvi fazê-lo.
No dia e hora combinados pela pequena correspondência que entabulamos, o interfone soou, e anunciado pelo porteiro, meu visitante subiu, enquanto eu o esperava olhando pelo olho mágico, para ter a alternativa, extrema, de não abrir a porta se algo me desagradasse em sua figura. Para isso serve também a correntinha. Podia, por exemplo, pretextar uma gripe, e desculpar-me por não recebê-lo.
A porta de ferro do elevador, entretanto, ao abrir-se revelou a mais graciosa figura que se pode imaginar, um ser maravilhoso, de uma androginia evidente, cativante, com os olhos de um pequeno fauno, mas esguio, flexível, elegante. Abri a porta imediatamente, antes mesmo que tocasse a campainha.
Linus era o seu nome, que imediatamente me remeteu à arcádica invenção da flauta, na Era de Ouro. Recebi-o de braços abertos em meu coração. Na verdade, abracei-o mesmo, bem à entrada, sob o batente da minha porta. Bem vindo, ser de exceção, bem vindo pequeno fauno!
Os lindos olhos cor de mel do meu hóspede (imediatamente pensei em retê-lo como tal) começaram logo a marejar ao nos fitarmos, e mais nos abraçamos. Certamente minha figura também o surpreendeu e agradou. Sentimo-nos “almas gêmeas” desde o começo, e agora eu o reconhecia... por conferir a sua maravilhosa figura.
Linus quis contar-me a sua vida, mas teve dificuldade em expressar-se, pois o nosso olhar nos trazia a esse presente radioso, do nosso encontro. Não havia mais necessidade de narrativas, entre nós.
Sentindo isso, segurávamos nossas mãos, comovidos, em silêncio.



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Linus agora mora comigo, no meu ateliê. Poucas vezes na vida eu me senti tão segura e... tão à vontade com uma companhia masculina. Masculina? Bem... não é bem o caso. Este pequeno fauno, como gosto de chamá-lo, não é propriamente viril, e sua androginia é o que, na verdade me cativou. Um ser delicado, gracioso, na exata fronteira da estética e dos maneirismos dos dois sexos, produzindo um terceiro. Mas não exagerado e caricatural como estamos acostumados a ver por aí. Ele me comove, com a sua elegância sutil, com seus gestos suaves, que combinam com os meus. E, sobretudo com a sua doçura.
Botei-o para dormir na sala, isto é, no ateliê. Mas o cheiro de tinta me preocupa. Todas as noites, acordo de madrugada e venho observá-lo dormindo, acompanhando a sua respiração, suave, contemplando a sua beleza. Cubro-o quase maternalmente... às vezes descubro-o também, nas noites quentes deste verão, para observar seu corpo semi-nu, procurando descobrir o seu segredo. Sim, porque, por alguma razão, ele ainda não me deu essa intimidade, e estou cada vez mais intrigada. Ele é um companheiro maravilhoso para dividirmos o cotidiano, e estou feliz com a minha decisão. Mas, na verdade, há muito mais por trás do instinto que me fez aproximá-lo de mim, de recebê-lo em meu lar, portanto em minha intimidade. Trata-se de uma enorme atração, anímica e física ao mesmo tempo, que pertence a uma espécie de ancestralidade em minha alma, eu desconfio... Será tudo isso um eufemismo para a palavra amor? É bem possível, sim, eu creio que já amo o meu pequeno hóspede, e isso me faz sentir quase plena, feliz. Por quê digo quase? Porque falta algo, que não consegui realizar. Não consegui transpor uma pequena última barreira que ele interpõe entre nós, talvez deliberadamente. Ainda não o vi completamente nu, e à noite, quando o descubro, é isso, claro, o que estou procurando, tentando advinhá-lo sob a apertada cuequinha que ele não tira para dormir. Talvez ele se sinta inseguro...
Passei, já alguns dias, a desnudar-me, casualmente em sua frente, primeiro os seios, para trocar de blusa ou passar um desodorante, depois totalmente, para entrar no banho enquanto prosseguimos com nossas agradáveis conversas. Logo estava eu a andar nua pela casa toda e a pintar, assim , como sempre fiz, quando estou só. Ele parece encarar isso com uma enorme naturalidade, mas tem a maravilhosa delicadeza de ao mesmo tempo não disfarçar a sua admiração, manifestando-a com belos elogios ao meu corpo, à minha beleza.. Talvez um tanto técnicos, pois não percebi ainda a nota de desejo neles, que eu gostaria, no fundo, de encontrar. Linus se tornou um enigma para mim, e isso suscita minha curiosidade, de uma maneira perigosa, pois tende a se tornar uma obsessão.. Porque esse fauninho não se despe igualmente em minha frente, nem para entrar no banho, fazendo-o somente quando já está no box, fechado. E para dormir, então? Costuma ficar longamente sentado ao meu lado na minha cama, freqüentemente estirando-se, nas nossas conversas deliciosas, e então, sonolentos, ele me beija a testa, ou a face, cobre-me maternalmente, desejando-me bons sonhos, e retira-se para o ateliê para deitar-se. Fico então muito tempo insone, imaginando-o despir-se, e planejando a qualquer momento surpreendê-lo com um pretexto qualquer. Mas... se já sei que ele não se despe! Que devo fazer?
Essa curiosidade, unida, é claro, a uma certa frustração, já está produzindo uma pequena dor, fininha , que tende a crescer.

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Sim, deve tratar-se de um jogo. Linus conseguiu, estou apaixonada pelo meu pequeno fauno, e isso, longe de facilitar as coisas, deixou-me mais inibida para uma abordagem explícita. Nossa linda amizade, que, acredito, realmente existe, coloca mais uma barreira à mudança de timbre que pretendo em nossas relações. Por quê será que o fauninho não me deseja, a mim, ninfa que também me sei deliciosa? (perdoem-me a imodéstia).
Estou ficando exasperada, espero não cair na falta de sutileza da irritabilidade, do ciúme, do despeito, tipicamente femininos. Jurei a mim mesma que jamais cobrarei nada dele, que não o pressionarei, que não me atirarei sobre ele. Mas, ah! Isto está difícil. Esta noite, mais uma vez levantei-me e fui descobri-lo, na esperança de surpreendê-lo finalmente nu. Em vão. Julguei vislumbrar em seus lábios, num relance, sob o feixe de luz da minha pequena lanterna, um suave sorriso de Gioconda, um tanto feminino. Mas não estou certa. Meu desejo já está me pregando peças.
Planejo, então, uma maneira de ver o meu pequeno hóspede nuzinho. Ponho todas as suas cuecas para lavar na máquina, alegando que elas estavam encardidas (confesso que as cheirei, e...), que gosto de zelar pelas nossas roupas e programar as lavagens, etc. Ele fica confuso, um pouco perturbado, tanto mais que dou a ele para dormir esta noite um pijama meu, largo, feminino, muito fácil de despir com seus botõezinhos dos lados. E para a manhã, uma calcinha minha, provisória. Ele parece inseguro, desconfiado, mas não tenho certeza. Esta noite eu o pego.

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Sonhando com a incursão noturna que planejo, esperei por ele, na sua volta do trabalho, que, na verdade, nem sei no que consiste. O que ele faz? No que trabalha, ele, o pequeno fauno? Por incrível que pareça, nunca até agora ocorreu-me estas perguntas. Realmente não devo ser uma guria normal. Bem... nunca quis ser.
Linus chegou, surpreendentemente triste. Atirou sua mochila num canto e abraçou-me com lágrimas nos olhos:
—Alma, minha amiga. Minha doce e querida amiga, devo partir. Amanhã cedo devo ir embora, talvez por muito tempo. Não sei quando a verei novamente. Minha família deu-me um ultimato (ele jamais me falara antes de sua família) e preciso enfrentá-los, para me livrar deles. Eles descobriram onde estou morando, e se eu permanecer aqui, vão incomodá-la, Alma. E isso, eu não poderia suportar, minha amiga. Uma intrusão assim... Quero que você se lembre sempre de mim com agrado, pela nossa linda convivência nestes dias inesquecíveis, os mais felizes da minha vida.
Fiquei desesperada. Soltei um gemido, quase um grito. Agarrei sua linda cabeça, olhando bem dentro dos seus olhos amendoados, e exclamei:
—Linus, não me deixa! Eu te amo, não vês? Eu te amo desde a primeira mensagem, desde o primeiro encontro! Eu não posso mais viver sem ti, meu querido, meu amor! (beijei-o sofregamente na boca, pela primeira vez)—. Quero-te, não percebes? Fica comigo... para sempre!
Surpreso, perturbado, Linus recuou com a mão estendida, como se para evitar que eu o tocasse ainda mais, como se lhe doesse, e disse:
—Alma, Alma, não me peça isso, estou sofrendo demais, você não sabe de nada! Eu... também a amo, eu a adoro. Mas Alma... não podemos, não posso explicar. Não posso explicar!
Linus fez um movimento como se quisesse voltar-se para a porta, fugir. Agarrei-o segurando-o firmemente pela camisa. Gritei-lhe:
—Tu não podes, estás entendendo, é entrar assim na minha vida e deixar-me agora, que estou... a teus pés! (escorreguei pelo seu peito, ajoelhando-me, dramaticamente. Aqui não cabia mais vergonha alguma, eu já lhe dera quase tudo, a visão cotidiana da minha nudez, o meu carinho, o meu desejo insatisfeito... o meu amor. Eu não aceitava perdê-lo!) —Linus fomos tão felizes, apesar de nunca... de não nos tocarmos, meu pequeno fauno! Por quê? Por quê, eu não entendo!
Linus, então, os olhos cheios d’água, levantou-me pelos ombros, pegou-me a mão e puxou-me lenta e solenemente, conduzindo-me ao meu quarto. Colocou-se diante da minha cama, e de pé, pôs-se a despir-se diante de mim, pela primeira vez. Eu o olhava deslumbrada. Ele tirou a camisa, depois a calça, atirando-a para o lado, e afinal, enquanto eu o olhava, fascinada, abaixou a calcinha que eu lhe dera, em substituição. E então... eu vi!
Eu estava diante do Hermafrodita perfeito. Afinal!

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