quinta-feira, 3 de abril de 2008

A Professora belga

(dos “Contos Secretos” de Alma Welt)



Meus leitores escolhidos, compartilhem comigo a nova aventura que ocorreu recentemente em minha vida, a partir deste ateliê paulista, que parece conter uma fonte de inquietação, que precipita acontecimentos incontroláveis desde que nele me instalei, recém chegada do meu Pampa. Vocês sabem, eu não procuro, eles vêm até mim, esses admiradores e admiradoras, freqüentemente fogosos, e até... perigosos, no seu ardor que a minha pessoa parece despertar, feliz ou infelizmente, ainda não sei, ao certo. O fato é que por uma determinada peculiaridade do meu caráter, não consigo e nem mesmo pretendo deter o fluxo dos eventos, mesmo quando eles se anunciam ameaçadores, em minha vida, pondo-me freqüentemente em perigo.

Dito isso, passo a narrar os fatos ocorridos na minha relação inesperada com uma dessas personalidades cativantes que cruzaram minha existência: uma nova professora, que contratei para treinar o meu francês, com vistas a uma viagem de exposição, desta vez na Bélgica. Elle s’apelle Chantal. Mademoiselle Chantal.

Uma mulher de trinta e poucos anos... bela, de uma maneira aristocrática, como afinal também se caracteriza minha própria beleza, segundo dizem, apesar de eu descender de agricultores pelos dois lados, o alemão e o açoriano. Mas, Chantal, assim que pôs os pés na grande sala do apê que é o meu estúdio, saturada de telas e livros, pareceu iluminar-se. Sua querida Europa, sua Bélgica, afinal, não lhe pareceram mais tão distantes, ela me confidenciaria em seguida.

Rodando no meio do ateliê, com a mão no seio, emocionada, ela deu um imenso suspiro e agarrou as minhas mãos colocando-as sobre o seu seio palpitante (ah! mademoiselle, por quê fizeste isso?) dizendo, trêmula, quase em lágrimas:

— Alma, Alma! Isto tudo, as suas cores, me lembram a paleta flamenga de Ostende, do nosso James Ensor, nacarada, sob a suave luz de Flandres. Mesmo abstrata, a sua pintura contém aquele mistério, aquela magia um pouco soturna, das máscaras de Ensor, do nosso “Mardi-Gras”, um tanto “diabolique”.

Espantei-me dela dizer isso, pois eu pensava ser uma pintora tropical, contra todas as expectativas, na verdade, dadas as minhas ascendências européias, e a minha própria pele, de uma alvura que costumava produzir espanto, por aqui, nas ruas desta paulicéia, que contém de tudo.

Nada comentei, todavia, e apenas me comovi com a sua emoção, e as batidas aceleradas do seu coração sob a palma das minhas mãos.

Tive uma súbita vontade de beijar os lábios perfeitos daquela européia. Ela pareceu perceber isso e adiantou-se a mim nesse impulso, e nossos lábios se encontraram mais perto de mim, eu percebi. Desta vez, por fração de segundo, não fora minha a iniciativa da sedução, mas o que importa é que a seguir estávamos abraçadas, rodando no centro do ateliê, mas numa espiral centrífuga, que nos conduzia para o meu quarto, onde nos esperava o grande leito de tantas estórias, de tantas paixões.

Despimo-nos avidamente, e Mademoiselle (vou continuar a chamá-la assim) revelou o mais belo corpo que eu pudera ver em muitos anos. Muito alva também, ostentava pêlos pubianos ruivos, que deixavam descobertos os grandes lábios, muito vermelhos, um tanto salientes, carnudos, apetitosos. Ela os ofereceu, de saída, percebendo a minha atenção, e eu mergulhei ali com todo o meu entusiasmo e digamos, a minha gula, porque não? Eu iria voar com aquela feiticeira belga, na vassoura fálica que não tínhamos, mas que contínhamos no nosso impulso, na nossa vontade que não excluía o Animus, o masculino em nós, determinado, eu senti, pelo espectro de Ensor e suas máscaras, que invadiram meu quarto naquele momento, onde podíamos ouvir o sapateado da moira*, toda de negro, nas imensas, infinitas planícies desoladas do inverno de Flandres.

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Despertamos nuas, após a nossa noite flamenga, e voltamos a nos beijar, embevecidas e maravilhadas com a harmonia do nosso encontro todo ele de suaves tons quentes, de um impressionismo nórdico, que regia a nossa relação, que ela assim insinuara com as suas metáforas pictóricas inusitadas, que acolhi prontamente, e incorporei. Mas estaria eu à altura daquela aristocrática criatura banida do seu Norte, como eu, do meu sul? Podíamos realmente nos encontrar? Isso realmente estava acontecendo? Nossa carne embevecida, desperta, dizia que sim, e eu me inclinei mais uma vez para alcançar com os lábios suas aréolas rosadas que se tornavam quase rubras como os seus lábios dos dois extremos, pela excitação encantada de nossas mucosas em flor. Eu iria desfrutar desta suave maçã do norte, e entregaria a ela tudo o que quisesse do meu corpo jovem, insaciável, cheio da saudável gula da paixão. Assim, em seguida, virei-me, lentamente, empinando minhas nádegas muito brancas em direção ao seu rosto, oferecendo-me sem pejo, mais uma vez, enquanto ela mergulhava por sua vez num crepúsculo ardente, contido naquela manhã de inverno.

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Chantal telefona-me, em lágrimas. Ela tem que viajar, pra buscar uma pequena herança de uma tia, em Ostende. Mas, ela me diz, está conflitada, pois teme que ao se afastar tão cedo de mim , eu escaparei da espécie de sortilégio que se criou entre nós, graças às felizes metáforas que a atração ditou a ela no nosso encontro. Ela está apaixonada, como eu. Não quer se separar de mim, tão cedo, teme perder-me, e eu a ela. Contudo, com o coração apertado, insisto em que viaje, garantindo-lhe que não a esquecerei, e que meu amor esperará por ela.

Não é preciso dizer que tudo isso era falado em francês entre nós, pelo menos para justificarmos nossa aproximação de aluna e mestra, e como mulheres sérias, e não duas adolescentes, como na verdade, nos sentíamos.

Chantal partiu. Fui levá-la ao aeroporto e lá conheci o casal de velhos belgas, seus pais, muito calados, que me olharam com curiosidade, e fizeram um discreto elogio à minha beleza. Mas eu não queria maiores aproximações, eu estava insegura. Temia comprometer minha nova amiga, e assim tive de puxá-la para o toilette, comigo, para poder despedir-me dela condignamente, com um grande beijo em sua boca. Saímos daquele banheiro de aeroporto, com os olhos ligeiramente inchados, sem contudo despeitar suspeitas dos seus pais. Para todos os efeitos eu era a aluna predileta de sua filha, e uma nova amiga. Voltei de carona com eles, falando amenidades em francês, embora intimamente perturbada e comovida. Pelo menos fiquei sabendo que Chantal tinha uma irmã pouco mais nova, chamada Stéfanie, que poderia eventualmente substituir Chantal nas aulas. Eles pediriam para ela me telefonar e combinar os dias e horas para as lições.

Ao ser deixada frente ao meu prédio, eu já estava decidida a conhecer a irmã de Chantal, e ao entrar no estúdio fui direto ao telefone, que soava. Estranhamente era ela, que já falara ao celular com os pais pegando o meu número. Tudo tão rápido nesta cidade, tão diferente do tempo do meu Pampa.


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Stéfanie entrou no meu ateliê, e eu tive imediata sensação de recorrência, como de um sonho. Havia muitas semelhanças entre elas, mas o que mais me impressionou foi a predisposição de Stéfanie , que parecia estar ali para substituir a irmã ... também, ou principalmente, no meu leito. Ligeiramente conflitada, não deixei de desfrutar deste novo tesouro que se me oferecia. Ela correspondeu aos meus beijos com imediata paixão, a curiosidade me mordeu, e indaguei-lhe:

—Stéfanie, querida, eu amo a tua irmã, e espero por ela. No entanto tu pareces aceitar e até mesmo fazer um papel de substituta temporária. Estarei enganada?

—Não, Alma—ela respondeu—Estou agindo de acordo com Chantal. Ela é que me recomendou vir até você, muito antes de eu lhe telefonar. Em pequenas, fizemos um pacto, de compartilharmos todas as experiências de nossas vidas e também nossos amores. Ela me cedeu você. E a você. E me recomendou ao partir: “Stéfanie, quero que você ame e seja amada por Alma. Assim não a perderei. Ela não é propriamente volúvel, mas sua personalidade de poeta, faz que não se permita deixar passar nada em vão em sua vida e nem se furtar a nenhuma experiência nova: ama e deixa-se amar com uma ninfa. Por isso fique com ela e preserve-a para mim... para nós, se você não quiser abrir mão dela ao meu retorno, o que é bem provável, pois sua pele, seu perfume entram sob a nossa e não podemos mais deixá-la, como um vício, como um ópio”.— Sim, Alma estou vendo que minha irmã tem razão, e agora eu lhe quero tanto quanto ela lhe quer. E quero estar, um dia, no seu leito junto com ela, se vocês permitirem. Para sempre.”

Deslumbrada, eu me sentia no paraíso, com as promessas daquele amor duplicado. Sim, porque para mim elas eram uma só, ou a continuidade uma da outra. Entreguei-me à Stefanie com redobrada paixão, após suas alentadoras palavras, e já ansiava por aquele maravilhoso prognóstico, de tê-las as duas ao mesmo tempo no meu leito, num deslumbrante “ménage-a-trois”.

Assim transcorriam os dias da minha espera, que eu não mais sentia, pois Chantal continuava de certo modo no meu leito. Seus cheiros, seus perfumes eram iguais, e as semelhanças não paravam por aí. Ela gemia e chorava de amor, como Chantal, e eu entregava-me a ela, também, com o mesmo ardor, gozando em sua boca igualmente ávida, de lábios tão perfeitos quanto os de Chantal. E eu derramava meus fluidos sobre essa boca maravilhosa junto com as lágrimas da minha felicidade duplicada. Então...

Um dia, Chantal telefonou, finalmente. Estava de volta. Eu gritei de alegria. Eu iria buscá-la no aeroporto, com Stéfanie. Ao desligar, perguntei a Stéfanie, comovida, ao meu lado, a ponto de nem sequer querer falar ao telefone com a irmã, se podíamos ir buscá-la juntamente com seus velhos pais, no carro deles. Stéfanie ficou subitamente sombria e disse :

—Não, Alma, não podemos, isso não será assim.— E calou-se, ficando, estranhamente silenciosa, o resto do dia. Passou a noite comigo, onde se entregou, mas com um timbre de tristeza que não me passou despercebida. Ela derramou lágrimas a noite toda, durante o nosso amor e eu percebi que apesar de suas palavras anteriores, ela sentia estar se despedindo. E eu chorava com ela, ansiando por Chantal. Ansiando pelas duas. Pelo meu duplo amor, um dia reunido.

Acordei no meu leito vazio. Estranhamente, Stéfanie não me acordara e partira. Não deixara sequer um bilhete. Perturbada, instintivamente decidi ir sozinha buscar Chantal, sem nem sequer telefonar para seus pais, já que Stéfanie pusera aquela ressalva, obstáculo obscuro, incompreensível, mas que eu senti que devia respeitar, tanto mais que me sentia um pouco culpada, não sei porquê, diante daquele amável casal de velhos.

Fui, pois, sozinha, de rádio-táxi, para o aeroporto. No caminho, ao som da suave Pavane opus 50, de Fauré que o chauffer sintonizou amavelmente no rádio, os acontecimentos do último mês desfilavam ante meus olhos como um filme, ou como um sonho, culminando com a estranha noite anterior, e não pude deixar de pensar que eu fora de alguma forma abandonada, embora estivesse indo ao encontro do meu amor.

Quando ela apareceu no saguão, linda, com um chapéu negro, bem europeu, e sua roupa também preta, tive um sobressalto, meu coração apertou-se ligeiramente dentro da alegria daquele reencontro. Abraçadas e chorando eu disse:

—Chantal, Chantal... meu amor, você voltou, afinal. Só não morri, porquê você me deixou a Stéfanie, que me fez companhia. Sua irmã é um doce, é maravilhosa, quase como você ( eu pensava estar preparando o terreno). E seus pais, então, que velhinhos lindos, tão gentis e amorosos. Ainda não os encontrei aqui no aeroporto, devem estar chegando, não? Que família tu tens, hem, guria?

Chantal empalideceu. Ficou sombria, trêmula, mas pegando minhas mãos, juntou-as ao seu seio palpitante, dizendo;

—Alma que estás dizendo, minha amiga? Não tenho mais família no Brasil. Meus pais morreram na Bélgica no ano passado, estavam muito idosos. E . minha irmã suicidou-se, a seguir, por amor desenganado, por um noivo que nos abandonou, às duas. Éramos muito unidas. Mas... o quê estás dizendo? Falas como se tivesses conhecido a Moira. Era o seu nome, não Stéfanie, como Roland, meu noivo, arbitrariamente costumava chamá-la, pois não gostava do seu nome.

Fiquei estarrecida. A vista se me turvou, uma cortina negra caiu sobre meus olhos e quase desfaleci nos braços de Chantal. A doce irmã me visitara, eu estivera com a Moira em meus braços, e não poderia mais esquecê-la. Ela estaria sempre entre nós.

A branca e suave Moira, que me apertara com paixão em seus braços, sussurrando aos meus ouvidos nossos nomes:

“ Chantal... Alma...”


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Notas da editora

*Moira : A morte em sua configuração feminina. Uma das naturezas de Ananke, a deusa da Nescessidade, ou do Destino, entre os antigos órficos gregos.


27/04/2006

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