quarta-feira, 26 de março de 2008

A aluna

Dos Contos Secretos, de Alma Welt

Recebo o telefonema de Luiza, moça de voz agradável, que diz admirar e acompanhar-me a carreira. Pede-me que lhe dê aulas de pintura. Reajo um pouco inicialmente, pois não estava nos meus planos ocupar-me de alunos, dedicar-me ao talento alheio ou à falta dele. Sei que isso é importante a certa altura da vida de um artista, mas ainda não estou preparada psicologicamente para esse desprendimento, esse tipo de doação. Ainda sinto que preciso todo meu tempo para dividir-me, como o faço, entre a literatura e a pintura. O fator de dispersão, em minha vida, advém de um insidioso sentimento de solidão, um tanto doloroso, que me faz procurar o amor, e freqüentemente sendo vítima da paixão. A embriagadora e desastrosa paixão.
Entretanto antes de declinar do pedido dessa moça, peço-lhe seu telefone para o caso de eu mudar de idéia. Bastou eu depositar o fone, para começar a considerar o assunto com mais condescendência. Sua bela voz ainda ressoava em meus ouvidos e aguçava minha curiosidade, instigando-me. Mas resolvi esperar uns dias para retornar-lhe o telefonema, para ter tempo de meditar no assunto e não me precipitar, sob o influxo de uma sugestão de caráter sensual, essa é que é a verdade. Todavia eu, já estava contaminada... e ansiava, depois de meia hora, por telefonar-lhe, e aceder ao seu pedido. Naturalmente com a expectativa de defrontar-me com uma jovem tão bela, pelo menos, quanto a sua voz. Foi o que fiz. Telefonei a ela, encontrando a sua alegria imediata, que me comoveu. Pareceu-me perceber, pelo telefone, as lágrimas nos seus olhos, em sua emoção. Ao desligar, caí num pranto copioso, constatando a minha profunda fraqueza, solidão... e a minha vulnerabilidade .
Após dois dias de expectativa, afinal o telefone toca, e é Luiza, avisando-me que está a caminho e que chegará dentro de poucos minutos, no horário combinado. Custo a controlar a minha ansiedade. Ao soar o interfone eu escancaro a porta de entrada, para receber esse novo raio de sol em minha vida.
Quando a porta do elevador se abre, tenho a mais doce visão, e o maior alívio de que me lembro. Luiza é bela! Não me enganei. Loura natural, olhos azuis claros, e pele quase tão branca quanto a minha, e um ar de menina, é recebida com o meu mais doce sorriso e o meu abraço carinhoso, talvez um tanto precipitado, eu penso. Assim vou espantar a guria... Ou ela não respeitará a sua mestra. Sim, porque eu estou, ao mesmo tempo, predisposta a levar a sério esse novo papel em minha vida e até faço planos de transmitir-lhe tudo que acumulei de conhecimentos, e se for possível, de experiência, em minha vida. E a ser uma dedicada preceptora artística, honrando a minha profissão. Não sou uma hipócrita, vocês sabem.
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Assim, esse ser encantador, entra em minha vida. Passo horas ensinando-a a preparar telas, a mexer com as tintas, enquanto entre pausas de silencio concentrado, transmito-lhe, aos poucos, conhecimentos sobre história da arte, vidas de pintores, técnicas e conceitos, insinuando em tudo o que digo a minha visão pessoal do mundo, que não se pretende, a priori, original , mas antes de tudo, sensível e profunda (perdoem-me a imodéstia).
Ah! Alma, não és hipócrita, mas incorrigível. Já estás apaixonada. A beleza te domina, e te seduz de uma maneira quase infantil, não é mesmo? Não! A verdade é a beleza, e a beleza,a verdade, dizia o poeta*. Não deves pois te envergonhares de ser tão suscetível a ela. E depois, e isso por si só já justificaria tudo, Luiza já está apaixonada por mim, talvez há mais tempo. Às vezes, quando toco sua mão para conduzi-la, na correção eventual de uma pincelada, sinto-a tremer ligeiramente, emocionada. Nesses momentos tenho de me controlar para não abraçá-la, em plena aula.
Hoje decido terminar a aula mais cedo, e convidá-la para um chá, para que compartilhemos um outro tipo de momento sensível, de “desconcentração”, próxima do zen, para podermos fruir a pura companhia uma da outra. Ela está encantada com o convite.
Coloco a minha mais bela toalha de bilro do Ceará, sobre a minha
prancheta de desenho depois de ajustá-la na perfeita horizontal, para transformá-la em mesa de chá, já que não tenho uma e a grande mesa de trabalho vive entupida, de tralha e materiais. Não se esqueçam que isto não é uma casa burguesa, é a oficina de uma artista, um ateliê, embora dentro de um condomínio. Digo isso, também para que tu, leitor, não me avalies por teus padrões convencionais, que não aceitarei. Mas, se aceitas o meu mundo, a ponto de te debruçares sobre ele, lendo o que escrevo, aqui nesta espécie de diário secreto, prepara-te , e se possível, não me julgues. Antes, seja o sensível voyeur que espero de ti.
Dito isso, convido–te, pois, a acompanhares o suave balé dos nossos gestos lentos, harmônicos, nesta espécie de cerimônia do chá.
Coloco sobre a mesa uma espécie pouco conhecida de cafeteira, um suporte que sustém uma esfera de cristal refratário, cheia d’água, aquecida por baixo por uma espiriteira de pavio, à álcool. Isso nos coloca, às duas, contemplativas do belíssimo fenômeno da lenta fervura, até a ebulição vaporosa. A esfera de cristal sobre a chama, produz lindos reflexos, com pontos alaranjados e azuis, além daquele cristalino, do vidro e da água. Faz-me pensar, num momento, num aparelho de alquimista ou na bola de consulta das ciganas, e julgo avistar por um segundo, o meu destino, insinuando-se sem que eu nada pergunte. Tenho um ligeiro estremecimento, e Luíza, pousa sua mão sobre a minha como para me tranqüilizar. Arrepio-me toda, prazerosamente, com este toque de sua linda mão. E tomo-a, para não mais soltá-la. A cerimônia do chá para mim está completa. Não precisamos prepará-lo, muito menos sorvê-lo. Para nós, tacitamente, ele consiste nesta contemplação da fervura, no seu milagre, em que reconhecemos uma delicada metáfora do nosso encontro, deste nosso momento. Agarramo-nos por sobre a mesa, perigosamente próximas da chama e do cristal, com os nossas bocas ávidas de nossos beijos, tão esperados. Circundamos a mesa improvisada, numa estranha dança, mágica, em que nossos lábios não se descolam, e rodopiando assim, seio contra seio, púbis contra púbis, em espiral cada vez mais aberta, em direção ao quarto, ao leito que irá ser nosso.
Dispo-a, lentamente, a ela e a mim, simultaneamente, revelando o seu lindo corpo branco, a delicada curva do ventre, e um minúsculo e ralo tufo de sedosos pelos louros. Deito-a, suavemente, enquanto percorro as suas formas com as palmas de minhas mãos, sentindo a extraordinária maciez de sua pele iluminada de juventude. Ao mesmo tempo eu sinto que essas minhas manobras são legítimas, por poder dizer as mesmas coisas do meu próprio corpo. Embora experiente, vivida, meu corpo ostenta a mesma juventude e beleza, e isso faz com que eu sinta a igualdade das nossas trocas, de nossas mútuas oferendas. Num momento sublime como este, eu queria fazer o tempo parar, mas não repetiria a exclamação perigosa de Fausto*, apenas para não perder a minha alma imortal. Ao mesmo tempo agradeço aos deuses...ou a Deus, pela beleza eterna do momento, e seu indizível prazer.

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“Luiza, minha pequena Psiqué, como vou amar-te, como já te amo! Acordas do meu lado, e mostras, a preocupação no teu semblante. Eu sei, eu imagino, não avisaste os teus pais. Mas ainda é cedo, minha querida, não te preocupes, não passaste a noite aqui, passou-se apenas uma hora, em que velei teu lindo sono, contemplando o teu perfil. Agora vou ligar para teus pais, para avisá-los que amanhã sendo sábado, convido-te para dormires aqui hoje, na casa de tua mestra, que estamos pintando um grande painel e não podemos parar. Agora sorris, novamente, meu anjo... esta noite, volto a cobrir de beijos cada centímetro de teu corpo e tuas mucosas rosadas, como pétalas. Será a noite de nossa mútua fruição, da apoteose de nossa desejosa e pura juventude. Podes confiar, não preciso te dizer, já o fazes. Homens e mulheres me desejam, e eu, agora, só desejo a ti, minha pequena ninfa, reflexo materializado de minha própria anima.”
Levanto-me, tomo as prosaicas providências que interrompem o nosso devaneio. Seus pais já estão preocupados, alternam-se ao fone e crivam-me de perguntas, mas percebo que diante da minha voz suave, e ao mesmo tempo séria, infundindo credibilidade, parecem mais tranqüilizados. Chamam-na ao telefone, claro. E percebo que questionam e tentam mais uma vez dissuadi-la de passar a noite na casa dessa desconhecida para eles, apesar do tanto que Luiza vem falando de mim em sua casa. Afinal cedem, a contragosto, chamando-me uma vez mais ao telefone e fazendo recomendações sobre os cuidados à sua filhinha. Luiza, que tem dezenove anos, irrita-se com os pais, como boa adolescente. Desliga meio abruptamente, envergonhada de ser assim tratada diante de mim. Espero por uma nova ligação que sei que virá com algum pretexto, para conferirem a veracidade do local onde ela está, a ovelhinha que ameaça desgarrar-se. Este é o lado previsível da nossa história, paciência, há sempre um preço a pagar pelo amor, pelo prazer. Mas tenho certeza que conseguirei apaziguar estes pais, quando for visitá-los amanhã, para devolver-lhes Luiza.

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É sábado, por volta das onze. Estou diante dos pais de Luiza, sérios, que camuflam sua simpatia, no papel de pais cuidadosos e severos. Percebo que movo-me em terreno perigoso, no meio deste casal burguês, e começo a me sentir ligeiramente discriminada diante de tantas perguntas, levemente marginalizada. Como flashes, intrometem-se em minha mente as imagens de nossa adorável noite de luxúria e de amor, mas entremeadas, penosamente, de outras, aquelas da minha infância: eu e Rôdo, nuzinhos, apanhados em flagrante de amor e inocente curiosidade, sob a nossa macieira, arrastados pelos pulsos por nossa mãe, anatematizados, expulsos do nosso paraíso infantil. Meus olhos, de súbito, enchem-se de lágrimas, e quase caio em prantos, desastrosamente, diante deste casal. Mas algo em mim os enternece, e já estão me tratando, afinal, como uma amiguinha de sua filha, graças a Deus.
Estamos salvas. Livres... por enquanto.

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Luiza, Luiza, temo perder-te, escapas-me entre os dedos, não por ti, mas pela tua juventude, e suas exigências. Não quero acompanhar–te a danceterias, a festas dos teus amigos. Sou jovem ainda, tenho trinta anos, mas sinto a antigüidade da minha alma, e não posso evitar as comparações, e esse deslocamento, a sensação de inadequação quando estou entre os teus amigos. Eu sei, eles me acham bonita, mas olham-me com curiosidade e estranheza e sinto-me um pouco ridícula, de estar ali, sendo, para todos os efeitos, tua professora. Além disso, ser encontrada por aí, contigo, deixa-me mais suspeita diante da tua família, eu o sinto. As más línguas...tu sabes. Já falam de nós. Tu não te conténs e pegas-me na mão e beijas-me nos lábios (eu também) a todo momento. Estamos dando na vista. Eu sei, estou parecendo uma reprimida. Temerosa. Mas sim, eu temo, minha querida, Vão reprimir-nos, vão descriminar-nos. Vamos sofrer, meu amor. Tu, em tua pureza, não imaginas o quanto podem fazer-nos sofrer. Sim, porque começarão por malbaratar o nosso amor, caluniar-nos, chamando-nos daqueles nomes horríveis. Ai, Luiza, minha pequena Luiza, queria arrebatar–te do mundo, levar-te comigo, para longe daqui, à minha estância, que recuperei com minhas forças, da maldade do mundo*.
Ali no Pampa infinito, quero estar contigo até minha alma dissipar-se no vento, no minuano, no pampeiro. Quero arrebatar-te numa cavalgada sem fim, onde o mundo não nos alcance, ele não merece a nossa beleza, não nos merece... não este mundo. Foge comigo, minha ninfa, voaremos no vento das pradarias do Sul, nos alimentaremos dos nossos beijos inesgotáveis, das nossas carícias, da eterna juventude de nossas almas. Ou então, quero morrer em teus braços, chamando-te “o meu amor!”
Eu sei, sou romântica, e até melodramática, mais ainda que tu, que és uma guria “moderna”, mas não posso evitar tais pensamentos... e queria viver assim, ou morrer. As vezes me sinto tão cansada! De carregar o fardo, a benção... ou a maldição de amar assim, tanto, e a tantos, através da minha vida de poeta, de incorrigível amorosa.

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Abro a porta para a mãe de Luiza, que entra severa, majestosa. Olha em torno, rapidamente, e, por um segundo, eu espero que tanta beleza a comova. Mas, ela está sentada agora, a meu convite, e depois de sintomaticamente recusar um café ( e ainda um chimarrão, que a fez dar uma careta), começa o discurso que eu temia:
—Senhorita Alma, vou ser franca. Não gosto dessa relação de vocês. Isso está, no mínimo, dispersando Luiza, de seus estudos. Ela está faltando à faculdade. Suas notas caíram. É verdade que algumas subiram, mas são as daquelas matérias que não dão o pão a ninguém. Mas, naturalmente, isso não é o que mais me preocupa. É a sua beleza, a sua, senhorita Alma, ela é que me preocupa. Ela dá demasiado na vista, as pessoas falam, é... quase...escandalosa. Sim, é escandalosa. Não se justifica minha filha andar com uma moça mais velha, e assim tão bela, me desculpe. Você vê, eu própria estranhei, desde o primeiro dia em que nos vimos, lá em casa. Meu marido, também. Ele ficou indignado. Disse: “aí tem coisa!” porquê uma moça assim, perderia tanto tempo com uma menina? A senhorita nem sequer é formada, como professora, digo. Enfim, as pessoas falam, começam a dizer coisas maldosas. Você compreende. A reputação de Luiza está em jogo. Enfim, resumindo, vim pedir-lhe que afaste-se de minha filha.
Senti uma punhalada no peito. Minha respiração ficou opressa. Faltava-me o ar. Uma memória ancestral, muito antiga, me tirava o fôlego. Roubavam-me o alento. Roubavam-me o meu amor! Quis reagir. Mas antes que falasse alguma coisa, a mãe de Luiza, vendo o meu estado, acudiu-me temendo que eu desmaiasse. Amparou-me, um pouco perplexa. Eu lhe disse:
-–Dona Maria, farei o que a senhora quiser, serei mais discreta. Não sairei com Luiza, mas deixe-a continuar com as aulas de pintura. Ela está aproveitando tanto. Ela tem tanto talento! A senhora sabe o quanto isso é importante para ela, deixe-a continuar...com as aulas.
—Minha querida, –ela disse— esse não é o ponto. Isto... essa relação está comprometendo o futuro de minha filha. Ela teve um noivo, você sabia? . Foi antes dela lhe conhecer, mas eu esperava, meu marido também, que eles se reconciliassem. Agora vejo isso cada vez mais difícil. Luiza está muito mudada. Aquele ar sonhador. A senhorita enche-lhe talvez a cabeça de sonhos absurdos. O mundo não é assim, o mundo não é isso! Não, isso tem que parar. Quero que Luiza se case, tenha filhos, e que tenha também uma carreira profissional, séria. A senhorita me entende. Se gosta dela, afaste-se, eu lhe peço. Não a prejudique.
Explodi em lágrimas comprometedoras, finalmente. Eu desabara Sentia uma forte dor no peito e a dor na alma era maior ainda.
—Dona Maria. Não me peça isso. Não me peça. Isso vai me matar. A senhora não sabe... não conhece... os artistas. Nós, sofremos, de um outro jeito, por outras razões, ou, mais fortemente. Que estou dizendo? Não é isso, que quero dizer. A senhora não sabe o que é pedir-me isso (eu soluçava).
Dona Maria olhou-me profundamente, e eu vi que ela enxergou o meu coração, ela pareceu apiedar-se, e com um semblante grave, triste, mas humano, disse:
—Minha querida, agora vejo, claramente, que ama a minha filha, e que ela a ama. Quanto a isso nada posso fazer, o estrago já está feito. Mas insisto, que se afastem... se a amas faça isso. Você sabe que isso é o que deve ser feito. E sei, também, que o fará. Eu lhe serei eternamente grata.
Ela afastou-se lentamente, eu não a acompanhei até a porta, e ela saiu, como uma sombra, deixando-a aberta.
Eu soluçava alto. Creio que também gritei.

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Notas:
*“a verdade é a beleza...”- fragmento dos últimos versos do
famoso poema de poeta romântico inglês John Keats,
“Ode a uma urna grega”.

*No Fausto de Goethe,
aquele diria, afinal, ao minuto que passa:
“ Pára, és tão belo!”, e sua alma estaria perdida para sempre,
sendo esta a senha pactuada com Mefistófeles.

* Alma se refere ao seu romance autobiográfico “A Herança”,
a sair pela Editora Palavras & Gestos.

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