(Conto de Alma Welt)
Terminei meu primeiro auto-retrato, no qual trabalhei muitos meses. Estou tremendamente satisfeita com o resultado. Consegui captar a mim mesma por fora e por dentro e ainda saí lisonjeada com isso, surpreendentemente.
O mistério de um retrato pintado, quando ele é uma obra de arte, é a sua autonomia e, às vezes, crueldade. O espelho de vidro só nos devolve o que queremos, mas a pintura estará sempre diante de nós como um olhar, não como uma coisa olhada.
Acabo de pendurá-lo na galeria, a pedido do meu marchand. O quadro tem me rendido elogios rasgados, a começar pelos do próprio dono da galeria, e, com o seu entusiasmo, não será difícil conquistar clientes para novos retratos.
Passados alguns dias, recebo a visita de um homem que se diz colecionador e que viu o retrato na galeria, ficando muito impressionado.
Homem insinuante, de um charme vagamente suspeito, jovem, mas de têmporas brancas. Um homem belo, na verdade um tanto misterioso. Diz ter-se apaixonado pelo quadro e que quer adquiri-lo para sua coleção. Teve a franqueza de dizer-me não estar seguro de que a poderosa impressão que lhe ficou do quadro não se deva à beleza da modelo sobrepondo-se à da pintura.
Não apreciei o comentário e protestei em defesa da minha pintura em si, e declarei não estar interessada em vendê-lo e que o quadro estava exposto a instâncias do marchand para render eventuais encomendas.
O colecionador, que se chamava Aldo, desculpou-se prontamente, desdizendo-se. Disse estar arrependido do comentário, que sabia que os pintores são muito suscetíveis sobre sua arte. E que sua intenção fora fazer um despretensioso galanteio, uma pequena fraqueza diante de uma mulher bonita (ele insistia com aquilo...).
Revelou-se um homem hábil retirando-se rapidamente, a pretexto de compromisso urgente de trabalho. Plantara sua semente de tentação (devia pensar) e só lhe restava esperar. Era isso, deduzi.
Tentei não pensar mais nele. Era caso encerrado. Sua proposta não estava em linha de conta. Quanto a uma encomenda, ele não fizera nenhuma...
Retomo o meu trabalho e, sentindo a necessidade de desenhar, lanço sobre a prancheta na horizontal dois desenhos simultâneos, a pincel, com a técnica Zen, que venho desenvolvendo. Diante dos meus olhos surge um espantoso duplo retrato de alguém desconhecido. Um dos desenhos, o da esquerda, representa uma mulher bela, exótica, com seus olhos rasgados e ligeiramente prognata. Um rosto característico, marcante, desconhecido. Está seminua, no ato de tirar a roupa. O desenho da direita representa um fauno, com chifres enrolados na testa, e o peito peludo, mas com exatamente o mesmo rosto do primeiro desenho, só que em outro ângulo. Isto é surpreendente, pois ao nível da razão, este pincel, de cerda fina e comprida, manejado na vertical, é incontrolável. Ao nível dos reflexos, flui o inconsciente profundo, e os arquétipos se projetam sem bloqueio.
Dois dias depois, toca a campainha em meu ateliê e, abrindo a porta, deparo-me com um casal desconhecido. Ele, homem ainda jovem, com ar intelectual, declara-me que acaba de sair da galeria tão siderado com o meu retrato, que, pegando meu endereço com o marchand, veio direto ao meu ateliê com a intenção de encomendar-me o retrato de sua mulher.
Olhei-a, então, tive um arrepio, mas calmamente disse-lhe:
— Entrem, o retrato está pronto...
Confusos, sem entender, acompanharam-me ao ateliê, onde mostrei-lhes sobre a mesa o duplo retrato em desenho. Estávamos os três perplexos. A semelhança era absoluta e o fauno, no mínimo, a reforçava. Por uma fração de segundo, percebi no olhar do rapaz, que deslocou-se rapidamente de mim para sua mulher, uma instantânea suspeita que se desvaneceu.
Disse-lhes que não se chocassem, que isso era um fenômeno possível, embora raríssimo, quando se desenha assim, com a “mente em branco”, sob os reflexos da alma.
Acabei por presentear o casal com o par de desenhos, e eles saíram encantados. Um dia haveriam de ser meus amigos.
Mais alguns dias se passaram e Aldo voltou a procurar-me. Dizia não estar conseguindo dormir à noite, assombrado pelo meu retrato com o qual sonhava. Tinha de possuí-lo, dizia, ou acabaria definhando.
Após muita conversa, em que mostrou-se encantador, pois comentava os quadros que via à sua volta, com interesse e paixão, estava começando a amolecer-me. O que um pintor não suporta é a visita que não olha para as paredes, concentrando-se apenas na conversa com o dono da casa, no caso um artista que fala através dos seus quadros. É quase ofensivo, e o pintor certamente não abrirá mais a sua porta para um tipo assim. Mas Aldo revelou-se o contrário, atestando sua verdadeira paixão pela pintura. Comecei, pelo meu lado, a prestar mais atenção nele. Percebi-lhe um quê de menino grande, apesar do seu toque misterioso e das suas têmporas brancas. Na verdade, o processo de sedução começara sem eu perceber, ai de mim!...
Daí por diante, Aldo apareceria quase todos os dias. Sua intenção parecia ser acostumar-me com sua proximidade. De fato, às vezes passava rapidamente no horário do almoço, dizendo querer ver o que eu andava pintando. Era cuidadoso com as palavras, julgando-me ser mais melindrosa do que eu realmente era. Mas pequenas amabilidades me pegavam, como flores, cartões delicados, pequenos presentes sugestivos. Um dia convidou-me para ficar uma semana em seu sítio. Passaria dentro de uma hora para buscar-me. Como não perco oportunidades de curtir a natureza, estava pronta quando o interfone tocou. Lá fui eu com a minha sacola, passando pelo zelador invejoso que pareceu encolher-se ao ver o Jaguar de Aldo, azul como um cometa, e só teve tempo de estender-me o boleto do condomínio atrasado.
Chegamos, depois de uma agradável viagem no carrinho aberto, sob um céu maravilhoso, a um sítio encantador, um verdadeiro paraíso.
Ao entrar na bela casa térrea, espaçosa e de madeiramento à mostra, encantei-me com vê-la forrada de quadros primitivos, lindos, de alta qualidade: José Antonio da Silva, Poteiro, Agostinho, Dila etc. e um maravilhoso Miguel dos Santos, pintura e cerâmica. Aldo realmente estava me cativando. Levou-me até o seu quarto, que parecia esperar por mim, com as minhas cores preferidas nos lençóis e cortininhas das janelas, sem falar nas flores sobre a cômoda, um maravilhoso buquê de flores do campo.
Esqueci de dizer-me que Aldo era solteiro e que seu passado era um mistério, pois não se referia nunca a pai, mãe ou parentes. Tinha brotado da terra, brinquei com ele, sem que protestasse por essa expressão...
Passamos um dia agradabilíssimo, entre árvores e flores, e à beira da piscina. Ao vestir meu biquini, percebi-me intimidada, como se fosse ficar nua, coisa que me intrigou ao mesmo tempo. Por que será que tive estes escrúpulos? Meu corpo é tão belo que nunca antes tive esse receio. Será que é porque insisto em ser vista apenas como artista por este colecionador arguto? Mas aquelas flores e cartões? Não sei...
Como sou muito branca, evito queimar-me ao sol. Mergulho na piscina e logo ponho uma saída de banho e óculos escuros. Aldo observa-me com um olhar examinador. Logo a caseira chama-nos para o almoço. A comida é deliciosa e exatamente do meu gosto. Elogio a caseira, que se chama Mariana, mulher de uns quarenta anos, com um rosto forte, mas que se move como uma sombra, sem ruído. Ela olhou-me profundamente com um ligeiro sorriso e pareceu-me querer falar comigo mais tarde, eu percebi.
Quando Aldo, após o almoço e uma agradável palestra, pediu licença para uma sesta, aproveitei para procurar Mariana na cozinha. A sombra se revelou ponderada e sábia, mas tudo o que queria era sondar-me como uma possível noiva para o seu patrão, cuja solidão a preocupava. Ela o acompanhava há muito tempo, vinda de uma sua fazenda que nem sequer mencionara em suas conversas. Disse-me também que o seu patrão era um homem muito bom, mas realmente ninguém, nem ela mesma, conhecia a sua origem.
Mais intrigada que nunca, retirei-me para o meu quarto para ler e escrever o meu diário, amplamente desenhado. Escrevi: “Querido diário (resquício da infância...), estou embevecida, mas curiosa com esta minha estadia, neste sítio onde tudo é perfeito, e as flores parecem não murchar. Mariana move-se como uma sombra, diligente e hábil, mantendo tudo limpo sem que eu a veja trabalhar ou mesmo cozinhar. Este pequeno paraíso está me envolvendo e neste momento ouço as músicas de minha preferência, baixinho, vindo não sei de onde. Um piano tocando Satie suavemente... Agora a Pavane, opus 50 de Gabriel Fauré. Estou sendo seduzida, suspeito..
No segundo dia, a procissão de prazeres se sucedeu novamente. Aldo resplandecia cada vez mais bonito, logo ao amanhecer de traje de montaria, chibata na mão convidando-me para cavalgar. Disse-lhe que não tinha um traje de montaria, à sua altura. Ele então levou-me até um armário e tirou um belo culote feminino, botas de montaria e até um bonezinho inglês. Disse que nunca tinham sido usados, e que ele os comprara pensando apenas numa hóspede especial. Vesti-os (eles me serviram como uma luva) e saímos para montar nos belos cavalos puro-sangue. Enfim, tudo muito perfeito, a ponto de me inquietar.
No meio de um bosque, cheio de cogumelos, samambaias, flores e tantas maravilhas que não me admiraria de avistar um unicórnio, apeou e, colhendo uma magnífica orquídea, colocou-a no meu cabelo. Ficamos nos olhando um pouco, quando subitamente meu cavalo assustou-se com o gesto de Aldo, de tirar os óculos escuros, e saiu galopando comigo, de volta à casa. Ele nos alcançou e, segurando a rédea do meu cavalo que queria empinar, domou-o e retirou-me da sela com uma força e destreza impressionantes. Permaneceu segurando-me a cintura por um momento, como se estivéssemos num filme americano dos anos 40. Desvencilhei-me com delicadeza e fui acariciar o focinho do meu cavalo para acalmarmo-nos.
Daí por diante, todos os dias algum incidente inquietante interpunha-se aos arroubos do meu hospedeiro. Ele começou a ficar impaciente e armou um estratagema para capturar-me pela curiosidade. Disse-me que o procurasse no escritório do chalé contíguo à casa, à meia-noite, que me mostraria algo que me interessaria muito. O segredo da sua origem me seria revelado, em confiança. Não pude sossegar até a hora aprazada. Perto da meia-noite, entre o ruído dos grilos e o coaxar dos sapos, atravessei o jardim com um candeeiro na mão e penetrei no chalé, que estava estranhamente às escuras.
Apenas a lareira crepitava na sala, com sua luz bruxuleando nas sombras. Percebi ser um chalé de caça, coisa que me desagradava. Não suporto ver uma cabeça empalhada de animal. Parece-me uma desumanidade. Ou se trata de humanidade mesmo? A perfeição se quebrava ali. A escuridão e o silêncio do chalé também me atemorizavam. O que Aldo pretendia, assustar-me? Tateando, apesar da lanterna, encontrei um quarto contíguo, tive medo de transpor a porta, temia ser agarrada por alguém. Mas a luz da lanterna caiu sobre um leito e lá estava ele, Aldo, dormindo, nu, extraordinário em sua beleza corporal, que eu não tinha percebido totalmente até então. Suas formas eram tão perfeitas, sua pele tão clara e homogênea que não se viam pêlos, manchas ou uma pinta sequer. O semblante sereno, seus cabelos encaracolados levemente brancos nas têmporas, brilhavam sob a luz do meu lampião. Não era musculoso demais, como sua força me fizera imaginar. A harmonia que irradiava dele inebriou-me e, aurindo seu perfume de homem, desequilibrei-me e caí sobre o seu peito, tocando o vidro quente do lampião em seu ombro. Ele deu um pulo e um grito, assustado, e agarrou-me no escuro. Em menos de um segundo, sua boca estava colada à minha e, virando-se por cima de mim, jogou-me na cama quente, cobriu-me com seu corpo e engolfou-me toda. Não custou a desvencilhar-me do peignoir leve, e penetrou-me até o êxtase. Durante uma eternidade de prazer fui imortal em seus braços ou então morri neles, não sei. Ao alvorecer, acordei sozinha no leito e, vestindo o peignoir, saí para procurar Aldo. Esperava encontrá-lo na cozinha pelo menos, ou catando flores para mim, como seria de seu feitio, mas não o encontrei em lugar nenhum. A casa estava vazia. Encontrei Mariana, a sombra, que interpelada disse-me que não me estava entendendo, que eu viera sozinha para este sítio. Há uma semana seu patrão lhe tinha telefonado de São Paulo, recomendando-lhe cuidar, “como se fosse sagrada”, da hóspede solitária que chegaria. E que quando eu quisesse ir-me, me acompanhasse até a aldeia e me pusesse no ônibus.
Fiquei absolutamente perplexa, confusa, revoltada. Uma angústia apertou-me o peito como uma saudade! E Aldo, onde estava ele? Mariana não respondeu, preparando o café. Disse então:
— Dona Alma, a senhora devia estar acostumada. As coisas com a senhora se passam assim... Há coisas que não convêm sondar demais... A senhora não gostou da estadia?
domingo, 23 de março de 2008
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