terça-feira, 25 de março de 2008

O sedutor

(dos Contos Secretos de Alma Welt)

Rôdo convidou um amigo francês, que conheceu em Paris, que é um bom filósofo e escritor, inédito, segundo meu irmão. Para sobreviver, esse francês trabalha numa livraria como simples vendedor, embora seja um homem de grande cultura. Isso me fez pensar na diferença entre os nossos países, pois aqui os livreiros parecem não ler nada, tal como os editores.
Mathieu chegou à estância num fim de tarde, tendo Rôdo e eu ido buscá-lo na estação. É um homem interessante, com rosto tipicamente francês, com um grande e belo nariz, e testa ampla. Um tipo de intelectual, com um olhar inteligente, que não se encontra facilmente por aqui.
O francês botou esse olhar agudo sobre mim, logo de saída, como um estudioso, ou teórico da beleza feminina, e pôs-se logo a filosofar sobre o tema. Ah! O mistério da beleza, dizia ele, “o eterno feminino” goetheano, era a motivação maior de toda a literatura, a seu ver. Apenas dez por cento dos livros editados tratavam de outros temas, como política, violência, guerra, crime e auto-ajuda. É claro, ele exagerava, e percebia-se sua tendenciosidade com vias a lisonjear-me, como um plano de sedução, indireto, paciente, em seu primeiro estágio. Os franceses são mestres da sedução, tradicionalmente. Lembrei-me das “Liaisons dangereux”, de Choderlos de Laclos, e resolvi deixá-lo tentar me conquistar, sem sabotá-lo, mas avaliando cuidadosamente seus passos, suas palavras.
Entretanto, devo reconhecer que no verdadeiro processo de sedução, não há esse recurso, essa prerrogativa. A arte consiste em minar as defesas, sutilmente, da vítima ou alvo desses esforços, que logo se vê à mercê, como uma ovelhinha diante do lobo, ou a mosca diante da aranha, sem falar da rã diante do olhar mesmérico da serpente.
Pois foi o que começou a acontecer, comigo, apesar de estar tão prevenida. Mas quem, na verdade, não quer ser seduzido nesta vida? Ah! A volúpia de ser enredada, envolvida, e finalmente tomada, invadida, possuída! Eu pagaria para ver-me assim.
Mas logo, e ainda nos primeiros dias de sua estadia, o francês mostrou-se estranhamente desinteressado, tranqüilo, como se tivesse perdido o interesse por minha pessoa. Eu fiquei inquieta. De novo, entretanto, ele recomeçou o seu cerco, displicente, esse era o seu charme, como se estivesse muito acostumado a encontrar moças com o meu “tipo”. Comecei a ficar insegura, depois indignada. Voltava ao meu quarto, desabafando, falando sozinha ao espelho, contra aquele blasé, que me insultava com sua negligência, como se eu fosse uma mulher comum, igual às outras. Então esse machista não percebia que sou uma artista, e uma “musa”? Eu ria também, às vezes.
Mas eu era continuamente obrigada a reconhecer a inteligência, a sagacidade, e mesmo a originalidade da maioria de suas observações. Elas eram indescritíveis, por isso não vou reproduzi-las aqui. Ou eu já estaria sob o efeito de sua sedução, que me fazia perder o critério? Eis aí uma questão...
Então, ele finalmente atraiu-me ao galpão, meu próprio galpão de feno, ferramentas e arreios. E ali, ele não precisava mais de palavras, eu estava à sua mercê. Diante dele, no silêncio daquela vetusta construção de madeira, invadida pelas réstias de luz, com sua poeira dançarina, deixei cair meu vestido, e eu já estava previamente livre da calcinha, que não vestira prevendo este momento. E permaneci extática em sua frente, de pé, tangida pelos fachos de luz como numa gaiola baconiana”*, mas que contivesse uma odalisca de Ingres, nua, de pé.
Mathieu, parado, sem pestanejar, olhou-me longamente, depois abaixou-se, pegou o meu vestido e entregou-me, pondo-o na minha mão, que pegou delicadamente. Disse apenas:
—As deusas e as ninfas não são para serem tocadas. A verdadeira beleza é intangível, pois sagrada. Eu u te reverencio, Alma, mas não sou digno de tua beleza. Prefiro levá-la assim, na minha memória para sempre, com esta suave dor do impossível.
E afastou-se, enquanto o meu coração, confuso, se apertava, com a consciência súbita de minha solidão, de minha trágica condição de mulher inatingível no cerne de sua beleza, fugaz e eterna como o pó que dançava na luz.
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Nota*: “gaiola baconiana – Alma assim designa aqueles enquadramentos cúbicos de traços luminosos sobre as figuras do grande pintor irlandês Francis Bacon.

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