quarta-feira, 12 de março de 2008

Safira, eu e os ciganos

(crônica de Alma Welt)


Na minha pré-adolescência, na estância, ganhei de presente de meu pai, uma vaquinha, a Safira, que ordenhada todas as manhãs, fornecia o leite para o nosso café, compartilhado com meus irmãos, naturalmente.
Nessa época, eu já estava empenhada em aperfeiçoar-me no desenho, quer dizer, nas artes plásticas, e passava horas desenhando, principalmente retratos a lápis, para os quais posavam meus irmãos(com exceção da Solange) e outras pessoas da casa. Eu ficava horas esboçando, apagando com borracha e retocando, a fim de atingir a semelhança perfeita com o modelo. Para isso eu era incentivada, como sempre, pelo Vati.
Aconteceu que passou pela estância um povo de ciganos, que fez acampamento próximo ao bosque, com permissão de meu pai, que de um modo geral aceitava a entrada de alguns estranhos, lastreado na sagrada lei da hospitalidade, cujo critério e regras eram para mim, ainda, um mistério. Custei a perceber que eram
simplesmente baseadas na sua intuição de homem experiente, vivido e sábio.
Curiosa e fascinada por esse povo, do qual só sabia alguma coisa pelos livros, como, por exemplo, o “Notre Dame de Paris”, de Victor Hugo ( romance conhecido popularmente como “O Corcunda de Notre Dame”) que continha a maravilhosa figura da cigana Esmeralda e sua cabrinha, eu resolvi ir ao acampamento para observá-los de perto, para conhecê-los melhor. Sendo uma guria aventureira e destemida até certo ponto, dirigi-me sozinha, uma manhã, com um lápis, borracha e uma folha de papel, para o acampamento cigano.
Fui recebida entre as tendas e os carroções, logo de saída, por várias gurias, de diferentes idades, que me pareceram muito “guapas” embora um pouco sujas, eu percebi. Elas sorriam muito e logo agarraram minhas mãos para lê-las, estendendo as suas para cobrar, simultaneamente, numa espécie de confusão.
Entre elas havia uma, de extraordinária beleza morena, misteriosa, que sorria
de maneira enigmática, um pouco irônica, me pareceu. Fascinada, pedi-lhe que posasse para mim, para um retrato que eu faria ali mesmo, na hora, no papel, com o lápis que empunhava. Ela aceitou, sempre sorrindo, com um simples movimento de cabeça, e isso motivou uma verdadeira festa momentânea, atraindo a atenção de muitos que estavam por ali e que me rodearam, sentada num tamborete que me ofereceram, para observar o nascimento do retrato.
Eu me senti inspirada e desenhei mais rapidamente que o normal, embora apagando e retocando alguns traços. O resultado me pareceu magnífico, a folha de papel me foi retirada e circulou de mão em mão, ente exclamações, risadas e sinais de aprovação. A seguir voltou às mãos da retratada, que levantou-se de sua banqueta, e com a folha nas mãos aproximou-se de uma mesa que estava ali perto, ao ar livre, e colocando uma espécie de salsichão sobre ela, com uma grande faca afiada, começou a fatiar, engordurando o papel que imediatamente ficou cheio de cortes e nódoas, sobre o meu lindo retrato, minha “obra-prima”. Eu estava horrorizada, e comecei a protestar. A cigana (eu a chamarei Rafisa), sempre sorrindo, respondeu-me simplesmente:
–“Tu já fizeste o desenho, agora o papel serve para outras coisas.”
Os ciganos já circulavam e dispersavam-se, desinteressados. Saí dali, meio desnorteada, e voltei para o casarão, meditando muito, embora ainda chocada.
Vocês devem estar pensando: o que tem a haver a vaquinha que ganhei com essa estória, não é mesmo? Bem, apesar do meu choque e confusão com a experiência do meu primeiro contato com os ciganos, eu resolvi voltar ao acampamento para conhecê-los melhor. E na segunda visita, sempre escondida de minha mãe, claro, eu percebi que algumas crianças estavam muito desnutridas e com manchas esbranquiçadas na pele. Elas me olhavam com grandes olhos que me pereceram tristes, e, condoída eu tomei uma decisão. Fui até o nosso estábulo e voltei
puxando a minha vaquinha por uma corda em seu pescoço e a presenteei à mãe da crianças para que fornecesse leite para elas todas as manhãs.
Era um final de tarde e permaneci por ali, percebendo a festa que se armava, com rabecas e um “fole” ou gaita que se reuniam, e vestidos coloridos mais vistosos, com muitas “jóias” nos pescoços, orelhas, testas, pulsos e tornozelos das gurias.
Começaram as danças, e eu me senti inebriada pelas evoluções ondulantes das dançarinas ao som de rabecas tocadas de maneira pirotécnica, virtuosística..
Então (ai de mim!) puxada pelas mãos e instada a dançar com elas, eu me percebi arrastada em farândola, até próxima a uma grande fogueira sobre a qual de repente percebi, à contra-luz, em silhueta negra, horizontal, girando num espeto, algo que me pareceu um novilho, ou coisa parecida. Um arrepio entretanto me tomou, e um pressentimento. Apontei e perguntei, quase gritando: “O quê é isso?”
E alguém me respondeu: “Bueno, é uma vaca, ora, vamos churrasquear, é festa de Santa Sara Kali.”
Dei um grito e desmaiei.
Acordei em minha cama e desatei imediatamente em pranto, inconsolável, cheia de remorso, dor, confusão. Minha mãe aproximou-se do leito e com ar severo (ela já sabia de tudo pelo Galdério que me vigiava sempre à distancia, e que me trouxera nos braços) e ralhou:
–Já sei, já sei, querias o bem daquelas crianças, não é? Mas já te disse muitas vezes: “de boas intenções o Inferno anda cheio!”
Caí num pranto maior ainda. E quereria morrer naquele momento, se não fosse o medo de ir para o Inferno. Afinal, adormeci soluçando, e tive um sonho em que realmente estava no meio do fogo, com a Safira, as duas, dançando e chorando nas chamas, ela girando na horizontal e eu, bem... rodopiando dolorosamente pela eternidade.
Ao amanhecer fui despertada pelo Vati, que afagava meu rosto segurando a minha mão, e com aquele jeito manso disse-me, pausadamente:
–Alma, tu cometeste um erro de avaliação, deste uma criatura viva que te era cara, e que acabou vítima, eu sei. Mas consola-te, não leve em consideração o que tua mãe disse, pois na hora da pesagem, o teu grande coração pesará como um rebanho na balança de Deus. Não te atormentes mais.
Meu coração distendeu-se e eu sorri grata ao meu Vati, virei-me de lado e novamente adormeci.

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