sábado, 15 de março de 2008

Alma e o lobo


Alma e o lobo- óleo s/ tela de Guilherme de Faria, 150x150cm, coleção do pintor, São Paulo, Brasil


(dos Contos Pampianos de Alma Welt)


O Pampa sempre foi para mim uma caixa de surpresas. O elemento insólito está presente no meu cotidiano, embora essa impressão não seja compartilhada pelas pessoas que me cercam, a quem a monotonia do cotidiano é especialmente cara. A passagem muito lenta das horas e dos dias, e o vento constante, os embalam numa doce e aconchegante existência pressuposta, ou melhor, previsível, que lhes dá segurança, mesmo ao mais valente peão, macho, laçador, e contador de vantagens. Mas vou lhes contar, meus queridos leitores, a pequena aventura que tive aos dezessete anos, quando passeava sozinha pela minha amada pradaria, um tanto distante do nosso casarão.
O dia estava magnífico, era primavera e as florinhas do campo me atraíam para cada vez mais longe à medida que as colhia fazendo um farto buquê, pousado em meu braço esquerdo. Então, subitamente me veio aquela vontade de ficar nua, que vocês já conhecem e que aparece em mim sempre que me vejo só. Ultimamente me ocorreu que isso acontece justamente por causa de vocês, meus leitores. Devo ser uma exibicionista...
Uma vez despida, com meu vestido longo abandonado sobre a relva, eu continuei a caminhar com uma nova volúpia, que me era tão conhecida e que para mim sempre rimava com o ato de colher flores, e de coroar-me com elas, pensando talvez na deusa primavera do quadro de Boticelli, embora, no quadro do Ufizzi, ela esteja vestida de maneira diáfana. Foi então que aconteceu.
De repente, senti uma presença atrás de mim, e voltando-me topei com a maravilhosa figura de um lobo guará, fulvo, de longas pernas, rosto de raposa, e olhos quase doces, embora atentos. Fiquei imóvel, encantada, e por alguma razão, sem medo algum, estendi lentamente o braço para ele, girando mais lentamente ainda a palma da mão para cima num gesto de convite, que ele acompanhava atentamente, não sei se temeroso, ou simplesmente curioso. Então permaneci muito tempo nessa posição, imobilizada, com a respiração lenta e suave, que depois eu entendi, era o motivo da aproximação, da atração que eu despertara no animal. A ausência de medo em mim o atraíra, também sem medo, senão confiante. Minha beleza muito alva... não, não falarei nela. Seria ir longe demais nas conjeturas.
Foi então, que o mais surpreendente se deu. O guará se aproximou lentamente com o pescoço estendido, com passadas quase felinas, e ergueu o focinho para cheirar a minha mão, que eu supunha, recendia à flores. Meu coração acelerou-se ligeiramente, e meu seio palpitou, ofegante de emoção em que me vi, afinal, com aproximação de seu focinho negro e de sua boca, de minha alva e delicada mão. O belo animal, a farejou e, acreditem, deu-lhe uma única e doce lambida! Depois aproximou-se mais ainda, enquanto eu me curvava para ele e... auriu os meus seios! Minha emoção então atingiu o auge, mas numa alegria que me acompanharia por muito tempo. Ele se afastou, a seguir, dando-me as costas, e partindo num trote tranqüilo, enquanto eu o seguia com o olhar, muito tempo, até ele sumir no horizonte.
Procurei meu vestido e com uma sensação de plenitude, como... de uma noiva após as bodas, voltei ao casarão, para contar somente ao Rôdo, a minha aventura. Mas, no caminho, com um sorriso, me ocorreu que nem ele, o amado irmão de minha alma, acreditaria nela.
Ah! Pampa, pampa de minha vida! O quê, de mais belo, me reservarás?

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30/10/2005


E o lobo veio a mim

(continuação de Alma e o lobo)


Matilde foi a primeira a dar o alarme. Tinha um lobo guará rondando o nosso casarão, e havia sumido uma galinha. Logo foram encontradas suas penas e outros vestígios de devoramento. Imediatamente me pus em defesa do lobo. Devia ser o meu guará, eu o conhecia, sim, só podia ser ele. Quem leu a minha crônica (dos Contos Pampianos) “Alma e o lobo”, que coloquei há uns meses aqui no Recanto, sabe do que estou falando. Meu querido lobo, aquele que farejou a minha mão e... o meu seio nu. Ele era meu desde então! Que ninguém tocasse nele! Matilde abanou a cabeça, dizendo:

–Alma, Alma, agora essa! Atraíste o lobo para cá, não é? Com o teu cheirinho, princesa? Só tu mesma, guria. E agora como vamos fazer para proteger as galinhas?

Eu disse: –Matilde, nem que o lobo comesse o galinheiro inteiro! Ele é intocável, não sabes? Ele é um animal magnífico, raro e defendido pelo Ibama. Já ouviste falar disso, cumadre? (eu chamo Matilde de “cumadre’, quando quero censurá-la).

–“Ibama ou não Ibama, afasta o lobo da tua cama”, diz o povo, sabias? (Matilde era rápida e sempre admirei o seu dom de improviso. Desta vez foi admirável, pois era evidente que ela inventou aquilo na hora, e eu caí na gargalhada, abraçando-a ).

Matilde sentiu inconscientemente a alegoria daquele lobo rondando a Alma aqui, desde que contei a ela, há meses, o episódio a que me referi. Eu agora devia afastar o lobo ou domesticá-lo. Isso! Seria possível? O guará é tímido demais, e tido, por isso, como animal covarde, arisco, que nunca se aproxima dos humanos. Pobre animal. Ainda assim responsabilizado como predador de ovelhas e galinhas foi quase dizimado e está em vias de extinção. Galdério e uns peões já falavam em caçar o bicho e eu percebi a animação dos “machos” quando se trata de caçar um “predador”. De igual para igual... E eu tinha, pois, que salvá-lo. Eu declarei:

–Que ninguém ouse matar esse animal. Vai ter que se haver comigo. Ele é meu! Veio me procurar e só comeu uma galinha porque está com fome e ela estava no seu caminho. Vocês vão ver: esta noite eu o esperarei na pradaria, no limite do jardim. Vou fazer serão ali, vou fazer fogo, levarei chaleira, bomba, cuia e mate, e ficarei sob o meu pala, se esfriar. Ninguém se aproxime... vou conversar a sós com o meu guará .

Matilde só abanou a cabeça, e Galdério tocou a aba do chapéu, como quem acata uma ordem. Tudo certo.

Naquela noite eu fiz o meu “fogo de bivaque” e tomei meu chimarrão, esperando meu lobo. E, como eu acreditava, ele veio.

Aproximou-se lentamente, os olhos brilhando tão intensamente no escuro, que a princípio tive medo, pensando tratar-se de um outro, feroz, lobo-mau mesmo. Mas a curta distância, quando eu estava prestes a vergonhosamente correr (ó mulher de pouca fé) eu o reconheci. Em lágrimas de alegria estendi os dois braços para ele, que ficou muito tempo parado, me pareceu, depois se achegou lentamente e deixou-me tocá-lo. Eu acariciei sua cabeça, seu pescoço, seu lombo. Ele deixou, imóvel. Então eu o abracei, sua cabeça junto ao meu seio. Ele fechou os olhos profundamente e eu... tive uma imensa alegria, mista de ternura, um êxtase tal que se confundiu com um orgasmo... da alma.

Depois eu beijei o seu focinho, ele lambeu meu rosto como um cão fiel e amoroso. Eu tinha ganho a minha noite, o meu dia, o meu mês. Que digo? Meu lobo me consagrara no seu Pampa, príncipe das pradarias que ele é, apesar da injusta fama de covarde e ladrão de galinhas. Ele era o meu príncipe. Ai de quem ousasse fazer-lhe mal!

Não foi preciso dizer isso quando voltei para dentro da casa, com todos me esperando. Meu olhar, meu corpo, meu aspecto diziam tudo. Nunca mais tocariam no assunto de caçar um lobo.

E as espingardas não saíram das paredes.

Um comentário:

Unknown disse...

obrigado por sua visita e por seu comentario no Experimentando versos. Voce tem inumeros blogs e eu visitarei cada um deles. para mim é um prazer e uma honra te-la como leitora de minhas obras. Estarei voltando, lendo e, se possivel, comentando as publicações de seus blogs. Como voce sabe, será sempre bem-vinda ao Experimentando Versos.

um abraço,