terça-feira, 25 de março de 2008

A marchande

(dos Contos secretos de Alma Welt)

Recebo um telefonema inesperado: minha amiga Giulia chegou dos States e tem urgência em me ver.
Arrumo o ateliê com aquela bagunça organizada típica. Tiro algumas manchas de tinta do assoalho e dos móveis e deixo outras. Escondo algumas telas inacabadas e deixo as mais bem resolvidas bem à mostra, estrategicamente. Tudo isso é de praxe entre pintores e suas visitas... Mas algo me diz que alguma mudança chegará em minha vida, para alterar a rotina de trabalho e criação (se é que há alguma rotina na criação...) em que vivo nos últimos meses. Estou cansada, desmazelada e maltratada, fisicamente. Tenho manchas de tinta nas mãos, nos braços, no rosto e até nos meus cabelos loiros, que estão esverdeados. Olho no espelho. Estou horrível. Nada que um bom banho não melhore. Afinal, thank God, sou uma mulher bonita e disso não abro mão. Esqueço-me disso por longas temporadas de trabalho árduo na pintura. Mas basta que me liguem ou pretendam me visitar e a vaidade volta como uma segunda natureza. Felizmente não é a primeira, pois me levo muito a sério como pintora. Não estou brincando em serviço, nem vim ao mundo a passeio, como dizem alguns sobre si mesmos. Arre, hoje estou cheia de lugares-comuns!
Agora, banhada, penteada e “linda” permaneço em repouso esperando minha amiga.
Afinal toca a campainha, um suave toque de sinos chineses bem natureba, resquício de uma fase new age já superada (agora voltei à música clássica, com pausas para ouvir Elomar, o grande menestrel do sertão brasileiro). Mas falamos disso depois...
Corro a abrir a porta e minha amiga cai-me nos braços, apertando-me e beijando-me loucamente, aos gritinhos as duas. Depois de mãos dadas afasta-se para olhar-me o rosto e o corpo. (Por que nós mulheres fazemos sempre isso?). Põe o dedo em minhas olheiras e depois brande-o em censura frente ao meu rosto. É sempre assim. Estou farta.
— Minha amiga, ela diz, isto não é vida para você! Se tivesse ido comigo para os States (o tanto que insisti) estaria rica agora, cheia de dólares! Os americanos são loucos pelas suas gravuras. Vendi-as todas, caríssimas. Mas afinal eu as tinha comprado de você e precisava de dinheiro para instalar-me e tudo mais. O começo é sempre duro no estrangeiro. Mas você!... Estaria agora numa mansão com piscina ou num imenso loft em New York”. Patati patatá...
Estou enfadada ao mesmo tempo que contente por vê-la, a minha amiga Giulia. Louca pela Audrey Hepburn, sua “ídala”, como ela diz. Também gosto da Audrey, mas engraçado, isso não me aproxima de Giulia, tão fútil, coitadinha.
Agora ela faz uma pausa e um olhar de suspense e diz:
— Tenho uma surpresa para você. Um presente. Uma pessoa. Vou lhe dar uma pessoa de presente. É o melhor que posso fazer para retribuir-lhe a sorte que o seu trabalho, a sua arte me proporcionou. Você é uma grande artista (já não a achei tão fútil...). Vamos buscar essa pessoa no aeroporto amanhã às 18h.
Giulia estendeu-se mais em detalhes periféricos, afinal, pois não pode parar de falar. No entanto noto que sutilmente esconde pormenores e dados justamente sobre o “presente”, “a pessoa”, como ela diz. Haverá alguma intenção nisso? Mero acaso ou decorrência daquela mesma futilidade que vislumbro em sua personalidade?
Esperemos. Ela se despede. O silêncio volta a reinar no ateliê. Como amo minha solidão! Já não me pesa mais, como em outros tempos. Fui muito amada, saciada. Meu corpo e minha alma agora estão em recesso. Hesito em conhecer novas pessoas, elas me solicitam e eu acabo me entregando muito. Sou salva sempre pela fidelidade suprema a minha própria arte. E disso me orgulho.
Entretanto, continuo sonhando com um grande amor, como uma menina-moça. À noite meus sonhos são terrivelmente eróticos e não posso nem contá-los para ninguém. Mas acordada sou romântica, como uma donzela, esta que é a verdade.
Passo a noite sob a influência daquelas palavras: “Uma pessoa! Vou lhe dar uma pessoa de presente!” Porque minha amiga colocou as coisas assim, nestes termos? Estranho... Há algum mistério nisso. Não esperava algo assim de Giulia, afinal, sempre tão previsível... Mas isto?... Será apenas mais uma leviandade dela? Não sei, não faz parte do seu estilo.
No dia seguinte acordo bem cedo e tento me concentrar no trabalho. Até o consigo por algumas horas. Mas o pensamento plantado por Giulia em minha cabeça insiste em instalar-se, incompleto, tomando aos poucos a feição perigosa de uma obsessão.
Jogo os pincéis sobre a mesa, lavo as mãos em solvente antes do sabonete (minhas pobres mãos tão belas e ressecadas por tanta química...).
Deito-me no divã e sonho de olhos abertos diante das minhas telas. Elas sempre me fazem sonhar. É assim que elas voltam a mim desde o seu esboço, quando captadas de algum plano astral, se insinuam, exigem e se mostram. Não faço mais do que obedecê-las.
Afinal, perto da hora combinada, o interfone toca, o porteiro me avisa para descer, que o carro de minha amiga me espera frente ao prédio. Desço, agradeço ao porteiro bisbilhoteiro, que me olha de maneira acintosa sempre que passo na portaria. Esse homem odioso olha-me o traseiro de uma maneira que devia ser proibida. Pelo menos à gente de sua estirpe...
Entro no carro de Giulia, beijamo-nos e “toca para o aeroporto”. No caminho, Giulia, em silêncio, olha-me de vez em quando, fazendo suspense. De repente diz:
— Amiga, quero preveni-la sobre essa pessoa que vamos buscar. Ela vem especialmente para isso, para lhe conhecer. Falei maravilhas a seu respeito, como artista. Mas fiz também um certo mistério sobre a sua pessoa. Afinal, você também será um presente para ela. Sabe por que? Por isso, minha amiga: Mariliese é a mulher mais bela do mundo! E é uma marchand de mão cheia. Quer conhecer o seu trabalho e talvez levá-la para a Europa, com uma exposição sua, sei lá... Se tudo der certo, como espero. Mas quis prevenir você para que o impacto da beleza de Mariliese não lhe paralise ou tire o seu savoir-faire, se isso for possível. Porque, você vai ver, a reação que ela causa, você poderá observar logo no aeroporto, ao redor. É algo incrível!...
Mais curiosa ainda, e com o coração ligeiramente acelerado por essas palavras, dispus-me a observar. Ia colocar-me na minha posição preferida, de observadora da vida, que sempre me poupa uma parte das emoções dolorosas que a minha sensibilidade tende a me oferecer. (Talvez isso seja desculpa para um certo medo da vida, o que não me impede de meter-me em encrencas, já que a minha curiosidade e sede de viver são bem maiores).
No grande saguão, atrás de vidros, aguardo, como diante de uma vitrine ou palco, a entrada da estrela.
Mariliese entra no saguão e o aeroporto pára. Literalmente.
Olhares se voltam, cabeças se voltam. Mulheres e homens param por alguns segundos. Acreditem, eu observei apesar de estar também paralisada, impactada, deslumbrada. As mulheres em geral, olhavam-na de maneira diferente dos homens. Meio de baixo para cima, ao mesmo tempo que meio de lado. É curioso.
Era alta, como uma deusa, cabelo loiro natural, flamejante como o ouro do Reno, olhos azuis com reflexos de água-marinha, pele clara, corpo perfeito, deslumbrante e andar felino, firme, seguro e ao mesmo tempo deslizante, sem nenhuma oscilação, sem hesitação, como se tivesse nascido em cima daqueles saltos, incorporados pelos seus belíssimos pés. A perfeição, em suma. Um “pacote de inteligência física”, genialidade da natureza, do corpo, da espécie, na expressão de um jornalista.
Pensei imediatamente em Helena de Tróia: “o rosto que lançou ao mar mil navios”. Assim eu também logo não teria mais defesa. Minha posição de observadora caía diante da impossibilidade de crítica. Meu poder de análise estava prostrado subserviente como um súdito diante de sua rainha. Eu já estava apaixonada.
Ela me olhou, sorriu e avançando para mim, seguida por um carregador que lhe arrastava a bagagem como um pagem. Antes mesmo de cumprimentar Giulia, abraçou-me calorosamente dizendo com linda voz cristalina e suave:
— Você é a pintora! Como é bonita! Sei que vou amar sua pintura...”
Por uma fração de segundo eu quis morrer. Como Fausto eu diria ao minuto que passa: “Pára, és tão belo!” E minha alma estaria perdida por vontade.
Senti o calor e o perfume do seu corpo, as batidas do seu coração atrás do volume suave e macio dos seus seios junto aos meus e a seda do seu cabelo no meu rosto, num abraço que me incorporou como uma criança. Tive uma súbita vontade de chorar.
Tinha uma comovida sensação, como uma exilada que reentra em sua pátria, imagino. É isso! A beleza! Ela era a minha pátria. Não, não exagero.
No caminho de volta, Giulia falava pouco, o que era notável. Dirigindo, observava-nos pelo espelhinho do carro, alternadamente, a mim e a outra. Mariliese falava, mas eu já não percebia o conteúdo de suas palavras. Apenas a música de sua voz, que me embalou durante todo o percurso. Sinceramente, não sei o que ela dizia. Seus planos, sua galeria, suas impressões em sua volta ao Brasil? Jamais saberei. Somente o som, as inflexões, o ligeiro sotaque, a música permanecem em mim até hoje.
Giulia deixou-nos frente ao meu prédio. Tinha outro compromisso como buscar uma criança etc. Como ela agüentou a curiosidade? Bem, ela já tinha observado o impacto do seu “presente”, sobre mim, sobre nós. Estávamos entregues por ela, uma à outra. Não, Giulia não era fútil.
Entramos no ateliê. Sua bagagem seguira com Giulia. Ela estava livre. Ao entrar, sorriu diante da placa: “Pintor, pinta!” e passou a mão em minha cabeça, num gesto muito raro entre mulheres adultas. Senti-me como uma menina, com sua aprovação inicial. Continuava com vontade de chorar, mas de estranha felicidade. Aliás, somente a beleza e a felicidade, que para mim são a mesma coisa, me arrancam lágrimas. Sou assim desde criança. Por isso meus familiares diziam: “essa menina é estranha, só chora quando está feliz”. E eu raramente estava feliz. Somente quando ouvia música; Chopin, por exemplo, cuja beleza, e não tristeza, me comovia.
Mas chorava mesmo, copiosamente, de prazer, diante da explosão de alegria de um ser humano puro e ingênuo. Isso me derrotou sempre. Agora derramo lágrimas mais discretas, pelas mesmas razões. “A dor diz: passa e acaba. Mas toda alegria quer eternidade, a profunda eternidade”. Lembram-se de Nietzsche?
Pus-me, logo, a mostrar-lhe as telas, mas não conseguia quase falar delas, como costumo. Minha atenção reclamava o meu olhar só para ela. Queria absorvê-la, pintá-la na minha alma. Eu a amava já e a amaria para sempre.
Ela percebeu, pegou minha mão trêmula e levou até o seu coração, em silêncio. Estremeci ouvindo com os dedos as batidas.
Sem retirar a mão aproximei meus lábios dos seus e beijei-a trêmula de emoção. Ela me envolveu com seus braços num amplexo de rainha ou de deusa. Assim o senti: E explodi em lágrimas, soluçando. Essa era a “marchande”, ela tinha chegado. Não era filha de Mercúrio, mas de Vênus mesmo. E eu já não queria nenhuma relação comercial: queria amá-la e ser amada por ela. Meu corpo ansiava pelo dela, como a minha alma...
Deixei-me levar por ela em minha própria casa para o meu leito. Ela me conduziu. Seu “animus” era mais forte.
Deitou-me suavemente, despiu-me lentamente. Depois, de pé, sempre me olhando, nua, exposta, entregue sobre a cama, despiu-se por sua vez também devagar, com gestos harmoniosos, como num ritual antigo, sagrado. E apareceu diante de mim em toda a glória de sua beleza radiosa, incomparável. Helena de Tróia! Era ela.
Deitou-se vagarosamente sobre mim e colou sua boca sobre a minha. Seus lábios perfeitos, rosados ao natural, sem batom. Derreti-me toda em líqüidos, perfumes, prazer indizível, entrega absoluta. Senti-me igualmente bela. Ela me amava, eu sentia.
Acordamos afinal, após uma noite de suaves delírios e sono de deusas. “Como é belo o ser humano”, pensei, logo ao despertar. Juro que pensei exatamente isso. Estranho? Não, a felicidade transfigura o mundo, vocês sabem. Fui fazer o café da manhã para nós, para minha deusa. Estava disposta a servi-la, como sua escrava. Não me envergonho disso. Meu amor tinha o timbre da veneração e isso aumentava o meu prazer.
Depois, nuas, tomamos o café da manhã. Brincamos, acariciamo-nos e voltamos a fazer amor. Tomamos banho juntas. Eu queria explodir de felicidade. Não estava mais só. Encontrara minha ânima corporificada. Eu queria tudo. Inclusive pintá-la, fazer o seu retrato, mas não sei se conseguiria algo digno dela.
Ao anoitecer ela me deixou para ir à casa de Giulia, precisava trocar de roupa. Prometeu voltar logo. Despedimo-nos em silêncio com um beijo enquanto ela passava a mão na tabuleta junto à porta. Depois brandiu o dedo com um sorriso. Chamou o elevador e saiu.
Nunca mais a veria.

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