domingo, 24 de fevereiro de 2008

O Duplo da Alma (de Alma Welt)

(ESTE CONTO CONSTA DO LIVRO CONTOS DA ALMA, DE ALMA WELT, PUBLICADO PELA EDITORA PALAVRAS & GESTOS EM 2004, E ERA INÉDITO ATÉ AGORA NA INTERNET).


O DUPLO DA ALMA


Estou atravessando uma calmaria. Um momento, portanto, propício para pintar ou escrever. Uma calmaria na vida exterior, quero dizer, pois por dentro é sempre aquele vulcão ativo, ora fumegando ora francamente em erupção.

Interrompo a pintura para atender o interfone. Minha amiga Vânia quer subir. Ela é sempre bem vinda, mas...agora a sinto um tanto inoportuna. Estou num momento de pintura, que me parece bastante auspicioso, com belas pinceladas resolutas. Bem...

Vânia entra esbaforida:

— Alma, Alma, o que há com você? Porquê não falou comigo na rua, e depois naquela festa? Passou por mim, tão alheia... como se não me conhecesse, que me desarmou. Fiquei perplexa, sem ação. Depois, na festa, parecia não me enxergar, não veio dar-me um beijo, nada. No entanto não parecia chapada, você é sempre careta...Fiquei tão chocada e deprimida, que retirei-me imediatamente. Alma, o que está havendo? Porquê me trata assim? O que lhe fiz?

Fiquei atônita. Abracei-a apertado, e protestei:

— Vânia, meu amor, o que é isso, o que estás dizendo?. Não sei nada disso. Eu juro. Não te vejo há uma semana, pelo menos, e só não te telefonei porque o tempo, para mim, tu sabes, quando estou pintando... Mas, não me reconheço nisso. Estás louca? Como eu deixaria de te falar, de te abraçar, na rua, em qualquer lugar, guria?
Vânia arregalou os olhos. Tocou-me a face e ficou uns segundos assim, perscrutando-me. Disse:

—Alma, o que está acontecendo? Porquê nega que me virou e cara, e ignorou-me? Mas... ao mesmo tempo... vejo que você está falando a verdade! Ai, vou enlouquecer. Ou você é que está louca? Era você, eu sei, você mesma. Eu a vi assim, de perto. Não a toquei porque você estava tão distante que... Mas era você. Como eu poderia confundir estes seus olhos, esta boca.

Vânia agarrou-me, beijou-me na boca. Há tempos não fazíamos isso. Abraçou-me sofregamente. Apertava-me contra si, como para certificar-se da minha materialidade. Fiquei comovida. Vânia sempre acaba me comovendo. Então é isso. Ela quer tocar-me. Não consegue deixar de me amar, de me querer. É um pretexto...

—Alma, Alma. Não me deixe, não nos deixe. Era você, ou era sua alma. Você se projetou sem saber. Ou você estava dormindo, seu corpo perambulou por aí. Você é sonâmbula? Ai, meu Deus, eu pensei mal de você. Tive tanta raiva. Chorei tanto. Mas agora eu sei, você não me magoaria assim. Você não faria isso. Você é tão doce. Meu Deus, meu Deus, o que aconteceu?

—Vânia—eu respondi—Não sei do que estás falando, mas estou arrepiada. Tu viste alguém parecida comigo. Talvez uma sósia. Só pode ser isso. Sonâmbulos não vão a festas (sorri). E não me consta que perambulam por aí, de dia, na rua Augusta (dei uma gargalhada). Meu bem, meu amorzinho (abracei-a novamente, acariciando-a). Como eu deixaria de falar com a minha queridinha? Com essa mulher linda, que me conhece tanto, por dentro e por fora?

Vânia olhou-me fundo, consolada. Beijou-me docemente os lábios, profundamente, e afastou-se com o braço estendido até nossas mãos desprenderem-se e... retirou-se, comovida. Percebi que ela não poderia mais falar daquilo. Minhas palavras, meus abraços, meu beijo a devolveram a um estado que ela queria conservar. Ela ainda tinha algum medo. Que mistério é esse?

Um tanto perturbada, tento continuar pintando. Até o consigo por mais uma meia hora. Depois deponho a paleta, sento-me e cubro o rosto com as mãos. Não sei se vou chorar...

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O telefone tocou, também algumas vezes. Amigas e amigos, me cobrando explicações para estranhos atos meus. Eu dançando de maneira quase escandalosa, excessivamente sensual, num clube noturno... Eu? Não vou nunca a esses clubes. São barulhentos, sua música não me interessa. Mas...num concerto sinfônico. Aí, sim eu poderia estar. E lá estava eu, no Municipal, debulhada em lágrimas, diante da interpretação superior de um pianista. Mas, disseram eles, não os reconheci e tinha um ar tão vago que eles não insistiram nas efusividades e cumprimentos, ficando também desnorteados. Eu esquivei-me, eles disseram, com um sorriso constrangido, como se não os estivesse reconhecendo. Acharam que eu os estava esnobando, ou que devia estar com alguém que estava momentaneamente no toilette, e que eu não queria que vissem. Foi isso que decidiram, afinal, para sofrivelmente justificarem-me. Oh! Meu Deus!...

Preciso tomar alguma providencia. Alguém, voluntariamente ou não, está se passando por mim. Vou tirar isso a limpo. Mas... talvez essa pessoa nem saiba da minha existência. Preciso encontrar-me com essa minha sósia. E eu que pensava que era única... Além disso, não me consta que minha mãe tenha tido gêmeas, ou que meu pai tenha pulado a cerca, como se diz. Aqui, em São Paulo, uma moça igual a mim! Assim, tão parecida a ponto de chocar ou confundir os meus amigos. Não! Preciso encontrá-la. Talvez seja uma boa moça, menos doida do que eu... Mas...aquilo, dela dançar escandalosamente! Eu não faria isso. Ai, meu Deus! E se ela for uma garota de programa? Elas vão, também, a concertos? Não sei nada. Ai, não sei nada realmente, dessa vida real, desta cidade imensa, cruel, que é São Paulo. Como sou preservada! Como me preservo, apesar de tudo, apesar dos meus amores e das minhas intensas paixões. Sempre os escolhidos, os eleitos...num mundo próximo do meu ideal. Não quero o feio, não quero a feiura... Nem sequer a tristeza. Fujo dela como Dioniso, da cruz. Não, não é verdade. Quanto sofro, quanto choro pelos meus amores! E pela minha solidão, minha sina de artista. Essa solidão insidiosa, atmosfera rarefeita, que me faz ofegar nas noites, ou no cair das tardes. Que me faz chorar com Chopin, com Schumann e Schubert, mestres dessa mesma solidão. Não temos par neste mundo. Nossos amores não podem encher esse vazio deixado pelos deuses em nossa alma, para que o preenchamos somente com a nossa arte, se possível. Ai, destino, destino. Às vezes a carga é pesada demais, ou esse vazio é que pesa como chumbo, arrastando-nos para aquelas profundezas subterrâneas, onde Orfeu andou, buscando Eurídice. Pelo estranho rio silencioso de onde brota a música mais pungente. De pé, na proa, ao longo do grande rio lento e escuro.

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Banho-me e visto-me com o maior esmero. Quero estar bela para encontrar a minha sósia. Minha rival? Não ela não parece interessada nos meus amigos, nem na minha vida. A não ser que...Sim, ela está se fazendo ver por eles. Talvez isso seja intencional, sim. Qual será o seu plano? O que ela quer? Quererá encontrar-me? Ela sabe de mim? Oh! meu Deus, nada sei. Não sei nem mesmo por onde começar a procurá-la. Ah! Preciso por um fim nisso. Tenho de armar-lhe uma tocaia. É isso! Ela deve passar sempre por um mesmo caminho, como todas as pessoas. Trata-se de saber qual é esse caminho.

Sento-me numa mesinha de bar, na minha Oscar Freire. Retiro a minha agenda da bolsa, e numa página em branco, começo a traçar diagramas, unindo os pontos dos locais onde ela foi vista, numa espécie de mapa esquemático, imperfeito, das ruas que os separam. Traço possíveis itinerários. Devo tornar-me uma espécie de detetive. De mim mesma? Essa idéia assaltou-me. É como se estivesse investigando a mim mesma. Talvez eu seja mesmo essa impostora. Como posso confiar totalmente em mim? Quem pode faze-lo, a respeito de si mesmo? Somos abismos, somos multidões, nada sabemos verdadeiramente de nossa alma multifacetada. Ela é um caleidoscópio, não um espelho. Não somos unos. Já o fomos algum dia? Sempre senti que sim, num passado remotíssimo, onde homem e mulher fomos um só ser, dividido ao meio depois, com o fim da Era de Ouro. A grande era do Hermafrodita. Ai, Deus, eu sofro por isso, eu sofro por tudo, essa é que é a verdade. Essa nostalgia persistente... que não me abandona, que posso tão somente camuflar.

Mas, não é hora de filosofar. Para cabeça de Alma! É hora de tomar medidas práticas para encontrar essa impostora. Pressinto que se não o fizer, ela me destronará. Mas, de que trono? Calma, Alma, você está ficando paranóica. Você se superestima. Não, não. Sei que isso é sério e posso ser destronada de mim mesma, do meu reino absoluto, do mundo que construí dentro de mim mesma, e que tento desbordar, vagamente ao redor, no subjetivo mundo exterior que me cabe, onde nos cabe atuar, pequenos imperadores de nós mesmos! Não me venham com argumentos limitantes, inibidores de grandeza. Não me venham com burguesias! Não estou me referindo ao mundo do ter, que vocês conhecem tão bem. Mas do ser, do ser!

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Outros amigos me procuram alarmados. A outra Alma está se mostrando cada vez mais no meu território. Está começando a aprontar. Faz coisas sem sentido, pelo menos para mim. Entra em automóveis, comporta-se como garota de programa, embora discreta. Foi vista com um homem casado, num café. Outro amigo “encontrou-me” num bar de samba, e supostamente “eu” cantava todas, conhecia todas as letras e encantei os negrões com meu samba no pé. Disse mesmo que me viu sair com um mulato alto. Bem que eu gostaria de ser assim. Mas, o que quer ela? Como vive essa louca, tão diferente de mim? Eu, de samba só conheço “As rosas não falam’, do grande Cartola, que para mim é a suprema música popular brasileira, mas que por sua letra e melodia, surpreende pela falta de negritude nela, a meu ver. Essa letra podia ter sido escrita por Leopardi, poeta romântico italiano do século XVIII, essa é que é a verdade. Mas voltemos à impostora. O que ela quer de mim? Sim, porque está, nitidamente, mandando sinais. Logo vai querer também interceptar-me. Ou me espera. Sim, é isso: ela está me esperando!

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Irmã, vou ao teu encontro. Pode esperar-me. Se me puser assim, como uma sonâmbula acordada, andando a esmo, sei que vou esbarrar em ti.
Devo confiar na infalível sincronicidade. Mas existirá isso, realmente? E poderemos precipitá-la, a ela, essa sincronicidade? É assim que funciona? Ou somos totalmente impotentes? Ah! velho Carl, não decifraste todos os enigmas. Ou não quiseste faze-lo, velho bruxo. Só para os iniciados, não é? Como decifrar o enigma das coincidências fatais? Eu não ousaria tentar. Acredito que isso acontece, de qualquer modo, no momento final, ironicamente, e entendemos tudo numa fração de segundo somente, antes da luz se apagar, e a escuridão e o esquecimento se instalarem para sempre. Alma, Alma, essa tua irmã quer fazer-te pensar, refletir. Ela talvez se interesse por ti. Quem sabe ela te ame. Ela veio de longe? Veio do Sul, também? Conhecerá o Pampa? Terá tido um Rodo, em sua infância, um Vati? Ai, quero viver, quero morrer, não sei mais. Dói-me a beleza da vida, a dor da morte certa, o fim de tudo o que amo, e que é tanto, tanto, que minha alma se alarga para abarcar. Vida, arte, amor, amores, alegria. Dança e festas. A ingenuidade persistente do humano. A pureza maior de alguns. A inocência de todos. Não acredito verdadeiramente no pecado original. O ser humano não teria esse poder, joguete que somos na mão do Poderoso. Como pecar, suprema rebelião só possível ao anjo mau? Não, Lucifer, não és da raça dos humanos, embora tentes constantemente contaminá-los. Mas Deus sabe, Deus sabe da nossa inocência primordial. Não pode estar perdida. Não pode!

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Cansei de andar por aí, a esmo. Volto para o ateliê. Devo manter a minha rotina de trabalho, as minhas atividades normais, agora percebo. Se sair da minha órbita, a dela não a cruzará. Imagino que esse momento é tão único como um eclípse ou encontro no espaço entre dois astros. Talvez, mesmo a simples tangência de elípses, um cruzar de órbitas, já produza o fenômeno que espero. Confrontar-me com ela. A outra Alma.
Que terá ela a dizer-me? O que quer ela de mim? Sim porque ela não estará por aí, à toa. Não há gratuidade na vida. Não temos esse poder, já que os cordéis de Deus comandam nossos movimentos. A menos que Deus também cochile, possibilidade não descartável pela imaginação. A mão que se move involuntariamente, como as patas de um cão que sonha, convulsivamente movendo os cordéis, aleatoriamente. Sim, tudo é possível. Mas de qualquer maneira isso também seria previsto pela alma de Deus, ou o seu duplo. É isso! O Duplo de Deus quer projetar-se. Estou na sua mira. Na sua mira!
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Toca o interfone. Sei que é ela. Não perguntarei ao porteiro o seu nome. Nada perguntarei. Antes de sequer ouvir o nome de quem chega, eu digo:—“Pode mandá-la subir, seu Ermírio”.

Escancaro a porta. Espero sentada ouvindo os estalidos do elevador, em seguida o rumor da porta de ferro que se abre. Estou solenemente sentada no meio do meu ateliê. Meu cenário são as minhas telas. Uma grande tela virgem jaz no cavalete. Estou em branco, espero o meu destino, a Alma... em mim.


FIM


14/06/2004

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Nota
Este enigmático e misterioso conto consta do livro Contos da Alma, de Alma Welt, publicado em 2004, pela Editora Palavras & Gestos que permitiu afinal sua publicação no LL e aqui, num dos blogs da Alma administrados por mim. Lendo-o ele me fez interessar-me pelo fenômeno do Duplo e pesquizando descobri algumas raras obras literárias e cinematográficas que tratam desse tema:
Na literatura:

O Duplo - novela de Dostoiévsky
e
William Wilson - conto de Edgar Allan Poe.

O retrato de Dorian Grey - Romance de Oscar Wilde

A estória de do dr. Jekil e Mr. Hide- (mais conhecido como "O médico e o monstro") romance de Robert Louis Stevenson


No cinema:
A dupla vida de Veronique- Filme francês-polonês,com Irène Jacob, direção de Cristoff Kieslov

Monsieur Klein- filme francês dirigido por Joseph Losey, com o ator Alain Delon .

Embora seja considerado um tema de ficção, existe a teoria da possibilidade matemática desse fenômeno. Acredito que a Alma vivenciou esssa experiência, pois sendo de natureza visionária e hipersensível, a poetisa realmente vivia as coisas que ela narra.
Estou persuadida de que Alma merece urgentemente uma biografia ou um ensaio aprofundado sobre a sua vida e obra. Eu mesma estou inclinada a fazê-lo incentivada que venho sendo por amigos e admiradores da Alma. (Lucia Welt)

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