quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Uma recordação de infância da Alma (crônica de Alma Welt)

Quando guria, na estância, eu sentia a plenitude de estar entre as flores, no jardim de minha mãe, sob o sol, e entre os zumbidos das abelhas e o vôo terno das borboletas. E percebia que ela, Ana Morgado, me preferia ali, como menina bela e doce, do que entre os livros, em que parecia escamotear-me aos seus olhos, refugiando-me num mundo que ela não sentia acessível a si mesma, na biblioteca que era o reino de meu pai. Ela estava certa: eu viajava longe em mundos insuspeitados, em todas as eras, todos os séculos, inúmeros reinos e povos. Mas sobretudo no perigoso e suspeito mundo dos artistas.

Minha mãe tinha razão, nada mais “subversivo” que uma boa biografia de um grande artista. Uma das primeiras que me encantaram foi a de Michelangelo, de autoria de Romain Rolland que, fora o prefácio, começava assim: “Era um burguês florentino...” Que sonho, real, profundo, universal, penetrar naquela Renascença, entre todos aqueles gênios concentrados na bela Itália, num dos períodos mais fecundos da história, comparado à própria matriz grega clássica de sua inspiração! Depois vieram centenas dessas biografias, como a de Byron (Don Juan ou a vida de Lord Byron) de André Maurois, só para citar outra de minha preferência. Mas o meu maior deslumbramento foi com “O Romance de Leonardo da Vinci”, de Dimitri Merejkowski, maravilhoso autor russo quase esquecido hoje em dia. Ali eu conheci e me apaixonei pelo grande Artista, um dos maiores da história, em todos os tempos. Devo dizer, que por causa da visão de Leonardo proposta por aquele livro, eu evitei até agora ler esse tão citado “O Código Da Vinci”, com receio de arruinar o meu olhar sobre o mestre.

Mas como eu dizia, minha mãe suspeitava das minhas leituras, pois elas me afastavam do seu mundo restrito, padronizado, comezinho, alheia até mesmo à sua própria beleza intrínseca, que, como poeta, ao descobri-la me livrei de todo o ressentimento. Por isso, num dia muito especial em minha vida, eu me lembro de ter ficado muitos minutos, observando, sob uma luz propícia o seu lindo perfil, debruçada sobre um bordado, que de repente me pareceu belo, para além do mimoso e convencional que realmente era.

Pobre Mutti! Ela nunca soube de seu próprio mistério e poesia...

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