sábado, 19 de janeiro de 2008

A nova amiga (de Alma Welt)

(Dos Contos Secretos, de Alma Welt) 

 Minha amiga Vânia me telefona bem cedo convidando-me a encontrá-la num barzinho aqui perto na Oscar Freire para tomarmos um café e botarmos o papo em dia. Jamais esperaria que ela tivesse uma segunda intenção e que esse telefonema tivesse as conseqüências que ora passo a narrar a vocês, meus confidentes leitores. Depus a paleta, limpei os pincéis, dei uma última grande olhada na tela nascente no cavalete e passei a ocupar-me de uma caprichada toilette: banho, escova nos cabelos, e uma esmerada escolha de uma roupa “casual” mas elegante. Foi como se meu inconsciente captasse alguma coisa, um prenúncio, uma aurora. Saí depois de deixar um auspicioso e sintomático bilhete brincalhão para minha faxineira que chega sempre um tanto tarde devido à viagem que necessita fazer para chegar neste seu emprego. Minha querida Luíza, minha nova “mãe-preta”, como acostumei-me a chamá-la: “Querida Luiza, fui ao encontro do “grande amor da minha vida!”. Tem comida na geladeira. Esquente e coma o que você quiser. Não me espere para o almoço. Pode matar a goiabada com queijo: Romeu e Julieta, é todo seu. Vou ao encontro da alegria. Beijos” Alma Duas quadras depois topo com minha amiga na mesinha da calçada mas não sozinha, há uma moça com ela. Estremeço: é linda, estendendo-me a mão à apresentação de Vânia que troca beijinhos comigo, aos gritinhos, como é do seu feitio. Perturbada, esqueço de soltar a mão da moça que no entanto não parece constrangida. Olha-me atentamente, parecendo também fascinada. Não ouvíamos mais o bábáblá de Vânia. Nossos olhos não mais se desgrudariam. Prima de Vânia, Letícia é o seu nome, parece vir de longe, mas de um outro tempo, de dentro de mim mesma. Vocês conhecem, leitores, o meu temperamento romântico e minha procura incessante pela felicidade amorosa. Trata-se de uma idiossincrasia, eu reconheço, nestes tempos tão pragmáticos que esperam tudo de uma artista jovem, “contemporânea”, menos isso! Entretanto, tenho cada vez mais a tendência, como vocês já perceberam, de assumir minha alma lírica, “sáfica”, no melhor sentido. Eis porquê cada vez mais exercito minha veia de sonetista, produzindo até mesmo alguns de timbre camoniano, como este: Quando criança, o amor já desejava E sonhando construía meus enredos; Tornar-me escritora eu almejava, Ser poeta e espalhar os meus segredos. Ser pura, secreta e desbragada; Confessional pelo mais puro pudor, Abrir o coração, e, alargada, Conter o essencial do meu amor: Aquilo que devora e me conserva Jovem para sempre enquanto morro Um pouco a cada dia que percorro. E assim, da Natureza alegre serva, Manter do coração a chama eterna, Heróica, ao sol acesa a vã lanterna. E agora estava eu ali, à beira de um novo amor, feliz desde logo, de puro encantamento por uma adorável jovem, reflexo da minha própria beleza, juventude e alegria. Eu já estava novamente vivendo a glória de uma nova paixão, única razão legítima de se viver, o próprio sentido da vida, evanecente embora, segundo a experiência. Uma embriaguez eufórica, que produz frequëntemente, uma espécie de “apagamento", como o alcoólico. Não sei dizer como nos desvencilhamos de Vânia. Só me lembro de caminharmos um quarteirão de mãos dadas, trêmulas de emoção. Depois a porta aberta do estúdio, com Letícia já atirando o sutiã para cima, numa explosão de peças deixadas pelo caminho, numa verdadeira corrida até o quarto onde nos atiramos uma sobre a outra, no imenso leito. Nosso encantamento nos conduzia numa longa viagem, que fatalmente iria pela tarde e pela noite até o dia seguinte... pela eternidade. Eu me esquecera de Luiza, a mãe-preta, que chegou e nos pegou juntas na cama. A pobre negra, uma mulher quase idosa, coitada, teria mesmo que ficar um tanto chocada... Mas a boa mulher recuou rapidamente da porta do quarto, com o meu bilhete na mão. E permaneceu discreta na cozinha, calada, de cabeça baixa. Fui ao seu encontro e encontrei-a assim, com lágrimas nos olhos, tentando limpar a pia. Segurei-a pelos ombros, ergui-lhe o queixo com dois dedos e disse-lhe: –Luiza, querida, não fica assim. Lembra-te, sou eu, Alma, a tua “guria”, sempre a mesma, que adotaste como tua “filha branca”, não sou? Olha, não é melhor assim, uma bonita garota, pura afinal, do que um belo cafajeste, ou aproveitador, ou ainda um “macho” com o cabresto numa mão e a sela na outra, como diríamos lá no meu pampa? Vamos, vamos, não fica assim. Agora eu te peço, Luiza, toma aqui a tua diária e volta amanhã. Nada temas. Eu estou feliz, não é isso que importa a ti ? Luiza, olhou-me sem entender. Tocou meu rosto com sua mão áspera de faxineira, e disse: — Alma, eu não entendo isso. Duas moças... isso é pecado, minha filha! Você assim não casa, não vai ter filhos. Isso não leva a nada, minha filha! Olhei seu rosto negro, seu cabelo pixaim que começava a ficar grisalho, suspirei e retruquei: —Luiza, já fui casada, tu sabes disso. Não gostaria de repetir a experiência. Os homens interessantes ou são neuróticos ou são bêbados, é perigoso meter-se com eles. Tu mesma, não foste casada com um bêbado? Que te batia, que te fazia sofrer? Essa garota não baterá em mim e me fará feliz, eu te garanto. Luiza abanou a cabeça, com lágrimas nos olhos, tocou novamente meu rosto, e murmurou: —Que pena... Tão linda... que pena! Luiza pegou sua bolsa e o dinheiro que lhe estendi, enfiou-o nela, retirou o avental e saiu de cabeça baixa visivelmente deprimida e chocada. Ela nos vira nuas na cama. Teria visto mais que isso? Voltei para o leito onde Letícia permanecia adormecida. O seu maravilhoso corpo nu, tão entregue, numa bela posição, estética e natural ao mesmo tempo! Uma obra de arte! Sentada ao seu lado contemplei longamente o seu puríssimo rosto de menina. Esse rosto banhara-se de lágrimas de emoção, da pura emoção do nosso encontro, e eu bebera a suas lágrimas como elas as minhas. Estava tudo certo. O amor era lindo, e nós certamente não iríamos para o inferno, pois já estávamos no paraíso. 18/02/2004

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