sábado, 5 de janeiro de 2008

A Navalha e o Abismo (crônica de Alma Welt)

A Navalha e o Abismo

(de Alma Welt, 1972-2007)



Meu pai possuía uma navalha de barbear que me fascinava, em minha infância. Era um objeto magnífico, com cabo de marfim, dentro de um belo estojo, com a marca alemã em letras douradas: Abgrund & Sohn. Ele não a usava desde a sua juventude, quando deixara a barba crescer e eu só o conheci barbado, patriarcal, a princípio fulvo e grisalho, depois todo branco. No entanto ele guardava a sua navalha, que lhe era cara por alguma razão. Digo isso, por que, estranhamente, eu nunca lhe perguntei como a obtivera, se ganhara de alguém, se a comprara numa loja, ou se fora de seu pai, coisas assim. A razão da minha discrição, acredito, é que o objeto parecia secreto, a mim, que cheguei perto da obsessão, por um período, naquela época. Foi logo que descobri o estojo na gaveta de sua escrivaninha, na biblioteca. Eu o abri, e deslumbrada, num nicho em depressão sobre o veludo, dormia o objeto que me... “vertiginou”. Eu desnudei a lâmina, lentamente, com o dedo indicador toquei-lhe o fio, e imediatamente a minha carne se abriu quase até o osso, me pareceu. Dei um grito e nem sei como guardei o objeto agressivo, no estojo, empurrando a gaveta com a outra mão, para sair correndo buscar gaze e esparadrapo, para tratar-me, pois sabia que fizera algo errado e pretendia esconder o fruto da minha bisbilhotice. Eu consegui facilmente, de minha mãe e de Matilde, sob interrogatório, atribuindo o corte a uma inocente faca de cozinha. Meu pai percebeu a verdade, eu acho, pois a navalha dever ter ficado manchada do meu sangue. Mas ele nada comentou, para não abrir uma nova área de atrito com minha mãe. E escondeu a lâmina noutro lugar, eu depreendi. Com um meio sorriso, levantou o dedo, disfarçadamente, para mim, a um tempo com admoestação e cumplicidade, assim me pareceu.

Daí por diante fiquei praticamente assombrada pela navalha e seu perigo. Eu tomara a consciência traumática de sua ameaça, de seu... abismo. Sim, pois por alguma ilação poética, cuja propensão me era inata, eu associei a navalha a um abismo. Quando dali a não muito tempo eu descobri na estante da biblioteca, o livro intitulado “O Fio da Navalha", de W. Somerset Maugham, eu o devorei, para encontrar a resposta do enigma daquela lâmina. E, acreditem, apesar da ingenuidade do meu propósito infantil, eu a encontrei. Há mesmo uma associação entre o fio da navalha e o abismo, pois a metáfora de andar no fio de uma navalha incorre no perigo de abismar-se, talvez dividido ao meio, numa queda sem retorno. Na minha mente, porém, a própria lâmina era o precipício.

Entretanto aquele era um objeto material que continuava me atraindo, me chamando, me obcecando. Eu temia levantar à noite, sonâmbula ou não, ir direto ao seu novo esconderijo, que de alguma forma eu sabia, e precipitar-me sobre ele. O que era estranho é que eu não me via degolada, mas sentando-me nua na lâmina aberta, sobre o fio, e cortando a minha pequena vulva, num talho sangrento, que não se fecharia nunca. Quando afinal surgiu o sangue da minha menarca, por uma fração de segundo, inesquecível e terrificante, eu pensei ter feito aquilo: sentara-me na lâmina sagrada e proibida!

Eu agora estava no abismo de mim mesma, do meu desejo infinito, do misterioso sangue das minhas entranhas de mulher!

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