sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Um caso da Alma (de Alma Welt)

(dos Contos Pampianos de Alma Welt)

Quando eu tinha dezenove anos, e portanto já estava órfã há seis (orfã de mãe, quero dizer), eu praticamente não tinha freios. A censura exercida pela Mutti (que na verdade eu introjetava muito pouco), não existindo mais, foi como uma comporta aberta para os meus desejos, que se confundiam com a minha própria noção de liberdade. O Vati, como já contei, experimentara criar-me como uma pequena pagã, e fora espantosamente ousado nessa sua experiência. Leituras clássicas e muito estímulo para as artes, eram a sua fórmula para dotar a minha sensualidade de um timbre distinto, nobre, portanto nada vulgar. Quanto ao que eu fizesse do meu corpo... seria simplesmente destino, desde que eu soubesse me defender, num sentido pragmático, de prevenção de maternidade indesejada, ou de sujeição voluntária por amor a um homem de caráter mais forte que o meu. Esse perigo havia, pois o timbre doce de minha personalidade, e uma certa “candura”, me podiam deixar vulnerável. Quanta vezes na vida eu me veria submissa, com certa volúpia quase masoquista! Quantas vezes eu seria atingida pela violência de desejos alheios, incontrolados e perigosos, maldosos mesmo. Entretanto, como o Vati previa, nada disso poderia verdadeiramente me destruir. Meu pai era um filósofo, e observava-me e à minha vida com uma distância contemplativa, como uma obra que ele criara, e que era uma obra de arte, a seu ver. O incrível, no entanto, é que corroborando essa visão, tendo a ver assim também a minha vida até hoje, e estou consciente de viver numa permanente dimensão poética.
“A vida, Alma, deve ser uma obra de arte, ou nada ser, minha filha. Chega de misérias psíquicas que se externam compondo existências miseráveis, farrapos anímicos que se arrastam pela vida”, dizia Werner Friedrich Welt, meu pai. Custei a perceber a nota de arrogância germânica que existia nesse seu axioma, no entanto mais romântico do que nazista. Pois meu pai rejeitava com sincera repulsa a doutrina nazi, que outrora meu avô, o velho Joachim Welt, professara mais ou menos secretamente.
Mas, como eu dizia, aos dezenove anos, eu, estando no auge de minha beleza, era uma verdadeira tentação para os homens que nos cercavam no cotidiano, portanto peões, jovens na sua maioria, mas que não ousariam se aproximar de mim, atravessar a linha ou o abismo, melhor dizendo, intransponível, social e cultural que nos separava. Entretanto a paixão de um jovem peão por mim se fez visível e foi, talvez, a sua desgraça. Mas é preciso que eu seja sincera e revele aqui também, o fato de que houve antes disso, pelo menos dois suicídios misteriosos de jovens peões da nossa estância, cuja culpa involuntária, por assim dizer, me foi veladamente imputada. Mas voltemos ao caso que devo aqui narrar e que já foi citado, nominalmente mas en passant , numa cena do meu julgamento, no romance “A Herança”. Refiro-me o caso do jovem peão Martim, filho do velho Alípio Galdiano.
Martim Galdiano, era um belo jovem peão, muito bem dotado para a profissão, cavalgando e jogando o laço como poucos e também a boleadeira, prática em vias de extinção pelo menos na nossa estância, dedicada mais à vinha e ao mate do que à boiada ou o charque, como antigamente, antes do meu avô. Martim era também um excelente dançarino, nas festas da peonada, e se exibia no fandango, na dança da lança, na dos punhais, e na das boleadeiras, com um virtuosismo entusiasmante, com um taconeo aliciador.
Sendo um verdadeiro sucesso entre as gurias, essa flor viril da peonada causava freqüentemente ciúmes perigosos nos outros jovens, e tinha às vezes que se bater à faca ou mesmo aos murros com alguns deles, por paixão despertada nalguma chinoca. Mas a desgraça realmente começara já nos seus quinze ou dezesseis anos, quando o jovem Martim, da mesma idade que eu, me viu mais de perto numa festa de galpão, durante o São João. O jovem perdeu a sua paz. A paixão que despertei, nele, ao dançar candidamente, sorrindo muito, principalmente durante a dança dos lenços, e a do pezinho, iria condicionar a sua vida daí por diante. Quanto a mim, reprimi a consciência desse fato até muito recentemente, como se não me dissesse respeito, por ser involuntário e por eu não ter nunca dado corda ou me aproximado do guri. Eu estava demasiado centrada em mim mesma e no meu irmão Rôdo. Além disso havia em mim, confesso, uma espécie de consciência aristocrática, de minha condição de filha de estancieiro de segunda geração.
Embora eu ainda seja jovem, recentemente começou a vir do fundo da memória essas imagens produzindo um certo desconforto, uma certa dor mesmo. Serei culpada de alguma forma pelo suicídio recente de Martim há tantos anos longe de seu pai e de nós, numa outra estância longe daqui? O ódio do velho Galdiano, que no entanto permaneceu entre nós, na estância, mesmo depois de aposentado (fato até certo ponto misterioso) e que me foi revelado no seu depoimento em meu julgamento, corrobora essa hipótese que poderia ser, talvez, pretensiosa.
Estou contando tudo isso aqui, neste momento, por uma razão perturbadora: acabo de receber esta manhã, uma carta lacrada, cujo nome do remetente me fez estremecer, e que não tive coragem de abrir até agora. O medo que tenho dela é maior que minha curiosidade. Faz dois meses que Martim se enforcou com seu laço de couro. Faz vinte anos que o velho Galdiano me odeia, e apenas dois que me revelou isso. Confesso que começo a ter, finalmente, um certo medo da vida...
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29/10/2005

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