segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Amigo de Modigliani (crônica-fantasia de Alma Welt)

O AMIGO DE MODIGLIANI

Dirijo-me à Galeria, nervosa, na minha primeira exposição. Para a minha agradável surpresa, encontro-a bastante concorrida, os carros sendo manobrados com dificuldade, diante da entrada, cuja vitrine ostenta uma das minhas telas. Mulheres e homens elegantes, gente bonita e os indefectíveis ratos de vernissage que vêm para beber, ou aparecer. Tudo comme il faut.
Nos últimos meses trabalhei como louca para chegar aqui. Consegui interessar à velha marchand, experiente, pelo meu próprio trabalho, acredito. Ela aposta no meu talento e se considera minha “descobridora”. Ofereceu-me esta exposição individual, assim que examinou os desenhos que lhe levei numa pasta. Fez me elogios inusuais, de saída. Levou-me à sua casa para mostrar-me a sua coleção pessoal, fantástica. Ofereceu-me jantares, adotou-me. Percebi que a uma certa altura fazia gosto em deixar-me a sós com seu filho. Mas esse era nitidamente feminino, e só ela não percebia. Não que isso fosse um impedimento, tornou-se um amigo querido.
Agora estou aqui, excitada e feliz com tanto afluxo de gente que pára diante dos meus quadros com ares entendedores e que aproxima-se para me cumprimentar.
O longo que ostento foi me dado pela marchand e sinto-me bela com ele. Não deixei que produzissem muito meu rosto, porque não gosto de parecer uma modelo, sou uma artista de cara lavada, sem pintura. Ainda bem que não destoou do vestido. Os casais que se aproximam para os cumprimentos aproveitam para elogiar-me fisicamente, alguns gaviões também, mas esses em geral me incomodam.
Gosto de falar da minha pintura como todo bom artista, e procuro não deixar-me lisonjear em falso por bajuladores bem ou mal intencionados. Prefiro conversar com outros artistas, sobretudo os mais velhos.
De repente, vejo entrar na galeria um grupo espantoso: várias senhoras e senhores, velhos, velhíssimos, mas elegantérrimos, nitidamente europeus. Elas, com grandes chapéus e vestidos de griffe, umas fumando longas piteiras, outras abanando-se com os catálogos. Os homens, velhos imponentes, com ternos impecáveis conversam com elas diante das minhas telas, com nítido conhecimento. Falam francês, alguns com sotaques estranhos. A uma das mulheres ouvi chamarem de Marússia (isto me soou como um nome russo). Mas dentre todos destacava-se um senhor alto, magro, muito ereto para a sua idade, com uma cabeça de velha águia, um nariz espantoso, aquilino, e vasta cabeleira branca de maestro ou coisa parecida. Uma mistura de Karajan com Leo Bernstein. Maravilhosa figura. Senti-me atraída por ele ia me aproximar, mas ele tomou a dianteira e puxando a tal russa pela mão abordou-me no meio da galeria.
— Oh! Aí está "la jeune fille prodige", disse ele galantemente, estendendo-me a mão. — Marussia, vê como o talento se alia à beleza. Lembra-se da nossa Marie Laurencin? Ah! Eu pensava que já não se faziam musas pintoras como antigamente. "Je suis enchanté" (e beijou-me a mão).
Apesar da galanteria bem francesa, senti uma espécie de imponência nele. Dava-me a impressão de um velho Druida, a quem faltava somente o camisolão. Percebi que homens como esse mexem sempre um caldeirão mágico invisível, aonde preparam suas poções. Por isso sempre senti que o maestro Karajan parecia lidar com esse caldeirão, com aquela economia de gestos de quem está remexendo a sopa de onde brotava sua música. Mas voltemos a Eduard, esse era o seu nome.
Marússia e Eduard, do grupo de velhos foram os mais entusiastas da minha modesta pessoa. Eduard fez comparações fascinantes da minha pintura com a de membros da École de Paris que ele parecia conhecer com notável intimidade. Marússia também parecia conhecer tudo e todos. Eu estava fascinada pelos dois, mas principalmente pelo velho águia.
Lá pelas onze horas, anunciaram sua partida, mas convidando-me com ênfase para que me juntasse ao grupo deles a partir da meia-noite para uma festa em um apartamento próximo, na mesma avenida da galeria.
— Fiquei encantada: poderia ir à pé, desde que me desvencilhasse de alguns novos admiradores que me ofereciam carona, disputando-me para o fim da festa ou começo, como pensavam, certamente.
— Pedi licença para ir ao toalete e fugi pelos fundos da galeria, por um beco que já conhecia, saindo assim à francesa, já que a noite prometia ser franca e joyeuse.
Entrei no prédio indicado, chiquíssimo, cujo porteiro uniformizado parecia já esperar-me, dizendo:
— Ah, a senhorita é a pintora. Pode subir. Estão lhe esperando.
Subi, apertei a campanhia, a porta se abriu e de repente vi-me como num sonho ou delírio, em plenos anos trinta, no entre guerras, em Paris, no meio de espectros antiquíssimos que se moviam com elegância e coqueterie. Parecia uma verdadeira alucinação. Entre pesadas cortinas e poltronas estofadas, um grande piano de cauda pilotado por uma doce abantesma que dedilhava “Les feuilles mortes”, cantando com voz aguda, acompanhada por todos os presentes. Fantasmas velhíssimos, alegres e nostálgicos ao mesmo tempo. Chapéus, boás, piteiras, taças, champagne e mots d’esprit em abundância. Eduard recebeu-me com especial gentileza, juntamente com Marússia e puseram a fazer comentários lisonjeiros sobre a minha exposição e a compará-la com outras de Paris, daqueles anos. Tinham tantas memórias maravilhosas! Meus olhos se encheram de lágrimas quando Marússia me descreveu Nijinsky jovem, que ela conheceu ao vivo dançando “Le spectre de la rose”com Karsavina, em 1911, no Opéra de Monte-Carlo. Meus olhos se arregalaram, para seu deleite, ao ouvir a descrição da trajetória ascendente de sua saída de cena pela janela azul do cenário, ao final da dança. Descreveu-me, como ele caía exausto sobre colchões na coxia, com o coração aos saltos, dores lanscinantes, segurando o peito com as duas mãos, debatendo-se em espasmos enquanto lhe jogavam água fria, fumegante ao contato de seu corpo abrasado, martirizado. Depois recompunha-se, recuperava a “leveza” e voltava para os cumprimentos ao público que o ovacionava delirante. Comovida, para disfarçar, voltei-me então para Eduard, elogiando-lhe a postura elegante, sem barriga, notável na sua idade. Sem sorrir, ele abriu a camisa em plena festa dizendo:
— "Não se iluda, menina, não se iluda!"- e mostrou-me um terrível colete ortopédico, como um espartilho de barbatanas de aço, cheios de fivelas e cadarços, belo como um instrumento de tortura. A seguir, serviu-nos o champanhe e fez um brinde dizendo com o ar enfastiado:
“— La vie est belle, les femmes sont chères et les enfants faciles a faire!...”
Deixei escapar uma gargalhada.
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Acordo meio ressacada no meu ateliê. Não me lembro bem como cheguei aqui. O telefone toca dentro da minha cabeça. Resmungando, atendo e é a voz característica de Eduard com seu sotaque francês:
— Olá, jeune fille. Comment-allez vous? Quero passar aí para levar-lhe uma coisa. Quando pode me receber? Dê-me sua direction!..
Respondo-lhe que me perdoe, que estou sem condições, mas que me dê seu telefone que ligo assim que melhorar.
Depois de horas e muito suco de laranja, quando começo a sorrir para os acontecimentos da noite em minha memória, giro pelo ateliê com os braços abertos na valsa clássica do espectro da rosa. Meu balé ainda está fresco em meu corpo, pois deixei-o há poucos anos para dedicar-me à pintura.
Saboreio agora a minha pequena glória, e quando o interfone toca, anunciando-me uma corbeille de flores. Recebo-a de peignoir, pelo porteiro que me olha indiscreto da cabeça aos pés. Retiro o cartão do envelope:
“Para a nova musa-pintora, Eduard.
"Antes que as flores percam o viço...”

Sorrio feliz... querido Eduard, meu novo amigo, um tanto amargo, mas que sensibilidade!
Preparo-me para pintar. Dizem que o pintor deve sempre pintar no dia seguinte à vernissage, para não parar nunca. Lembro-me de um outro velho sábio que me perguntou um dia:
— Alma, você pintou hoje? Pensei e disse: —Não, hoje eu não pintei. E ele: — O quadro que você não pintou hoje, você não pintará jamais. Só existe o hoje, aprenda isso.
Ao anoitecer recebo a visita anunciada de Eduard. Veio sozinho, é um velho solteirão. Marússia não é sua mulher. Nem sequer sua amante. Aliás, ele nem gosta muito dela como amiga. Eduard, ainda bem, corteja-me intelectualmente, se posso dizer assim. Esse é seu feitio. Ele só se atrai intelectualmente, e por artistas.
Põe-se a contar casos interessantes de Paris, de sua amizade com os pintores.
Conta-me para o meu espanto que foi amigo de Modigliani, que beberam juntos. Ele sobriamente, o outro... Quantas vezes ele o carregou para o ateliê e o entregou nos braços de Jeanne Hébuterne. Descrevia a beleza do rosto de Amadeo, apesar das bebedeiras. Jeanne o olhava com antipatia, como se ele, Eduard, levasse o seu marido para o mau caminho. Ele, então, a odiava.
Tudo isso me parecia insólito. Eduard era desmistificador numa medida calculada. Assim, o que sobrava sempre era um mito mais duradouro na memória. Percebi que a nossa amizade duraria se eu tivesse muita tolerância e não julgasse nunca moralmente o velho egoísta que ele era.
Ele era o anti-burguês "par excellence". E a sua escolha da minha pessoa, lisonjeava-me como artista verdadeira. Ele não me via como uma “burguesinha talentosa”, mas como alguém que dava continuidade às suas memórias da boêmia de Paris, no seu exílio provinciano. Tirava da manga (ou do caldeirão), como um mágico, casos e mais casos, sempre oportunos e engraçados, de seus amigos pintores, poetas e músicos, de sua juventude parisiense. Eu ria muito, deliciada.
Contou-me também que fora ao café onde, junto com Chain Soutine, bebia com Modigliani, numa mesinha de calçada, no dia seguinte à morte do pintor. Encontrara o toldo rasgado, um cordão de isolamento e a mesa quebrada encostada na parede. Jeanne havia se atirado, de manhã, de uns andares acima, da janela do ateliê deles, atravessando o toldo e estatelando-se sobre a mesa em que o marido costumava beber.
Nunca mais Eduard sentou-se naquele café. Eu ouvia essas histórias, creio que com um olhar sonhador, transportando-me àquele tempo, àquela cidade da minha fantasia. Eduard sabia disso. O velho mago era um sedutor de almas permanente.
Contava-me até mesmo uns casos inéditos de Picasso. Ele o conhecia com alguma cerimônia, não eram próximos. Picasso era um tremendo monstro sagrado até para os seus amigos mais íntimos. Um dia, num café, Picasso, diante de um drink que ele não tocava, e cercado de uma corte de amigos e conhecidos entre os quais Eduard, foi perguntado por uma senhora meio simplória:
— Pablo, o que você acha do impressionismo?
E Picasso respondeu:
— O impressionismo? Ah sim, é muito bom quando se precisa saber se devemos levar o guarda-chuva!
Gargalhada geral, e no dia seguinte a piada corria Paris inteira, pelo menos nos “meios”.

Eduard agora vinha quase todos os dias ao meu ateliê. Tive que pôr um freio, ou não trabalharia mais. Mas nossa amizade se consolidou, quando um dia Eduard apresentou-me sua irmã Margot. Ela era mulher do grande pintor Sanson Flexor. Sobre eles contou-me o seguinte: Margot e Sanson fugiam através da França ocupada. Tinham que atravessar uma fronteira vigiada pelos nazistas para sair do país. Tentaram atravessar à noite. Um holofote, um apito e foram pegos. Foram levados a um posto policial diante de um major alemão, que lhes disse que seriam fuzilados imediatamente. Flexor era judeu, da Bessarábia, que passara a infância em Berlim. Olhando bem o Major reconheceu um antigo colega de escola. Disse-lhe:
— Major, não está me reconhecendo? Sou eu, Sanson, seu colega de ginásio.
O Major olhou-o bem e disse: Ah! Sanson! Sim, é você, que vivia desenhando nos cadernos durante as aulas, um caso perdido, hein Sanson? O que você se tornou afinal?
— Major, eu me tornei um pintor, um artista, profissional. Eu pinto quadros, Major.
— Pintor, hein, Sanson. Muito bem. Então, vou lhe dar uma chance. Você vai desenhar o meu retrato já, aqui. Se eu gostar do retrato, se achar que está bom, que ele parece comigo, deixo-os passar, senão...
Pediu ao ordenança que lhe trouxesse um papel e um lápis e os pôs diante de Flexor, sobre a mesa. O pintor começou imediatamente a desenhar olhando intermitentemente o modelo. Logo depôs o lápis e entregou o papel ao Major. Este olhou, olhou, em silêncio, num terrível suspense. Então estalou os dedos e chamou o ordenança , passou-lhe o papel, perguntando-lhe:
—Então, cabo, o que você acha? Parece-se comigo?
—Sim, Major, parece sim, está muito bom. Tal e qual.
—Sanson, disse então o Major. Podem passar!
Anos se passaram. Presenteei quadros ao Eduard, mas defendia-me bastante de suas atitudes às vezes invasivas. Quanto à minha pintura, ele nada mais dizia, mas sempre isolava detalhes, enquadrando-os com as duas mãos sobre a tela no cavalete, em silêncio, olhando-me sugestivamente, o que, então, me irritava.
Ele começou a entrar em declínio. Suas dores físicas aumentaram, sua ironia também.
Um dia fez um comentário perspicaz, mas cruel sobre o retrato que eu pintava de uma amiga. A moça, presente, fechou-lhe a cara e encerrou-se chorando no quarto. Eduard, exasperado, implorou-me que interviesse, para que ela o desculpasse, dizendo:
—Se sua amiga não me perdoar, eu vou odiá-la.
Tinha a sinceridade de um "enfant-terrible".

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Afinal, chegou o tempo das Dores e dos Desencantos. Eu estaria ao seu lado no final, coisa que ele não pedia, mas esperava.
Ao lado de sua cama eu meditava sobre o significado de nosso encontro nesta vida. Eu, uma simples moça brasileira, pintora, jovem, e o amigo de Modigliani, que se dera ao luxo de odiar Jeanne Hébuterne, hoje uma musa histórica. Acabei encontrando estranhos signos nisso tudo. Mas prefiro calá-los em meu coração para que se transformem no "pure morceau de peinture" que o velho mago em silêncio reclamava.

Alma Welt

21/12/2001

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Nota da editora:

Esta inusitada e encantadora "crônica-fantasia", como Alma a designou, foi recém-descoberta por mim na sua arca no nosso sótão, aqui no casarão. Trata-se mesmo de uma fantasia, malgrado o seu teor realista e verossímil, pois minha irmã, que morreu com apenas 35 anos em Janeiro deste ano, não tinha idade para ter sido a amiga jovem de um contemporâneo e amigo do grande pintor Modigliani (1884-1920). (Lucia Welt)

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