quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

O Violino de Magritte (de Alma Welt)


"Un peu de l'âme des bandits"- pintura de René Magritte


Meu irmão Rôdo trouxe um amigo para o fim de semana na estância. Trata-se de um rapaz interessante, não sei se bonito, mas extremamente viril e seguro de si. Percebe-se isso por sua naturalidade e absoluta falta de interesse de provar o que quer que seja. Sua capacidade de conversar sem nunca falar de si mesmo ou revelar qualquer coisa sobre sua vida ou suas origens é invejável embora ao mesmo tempo seja um pouco misteriosa, não sei se de maneira positiva. Esse rapaz, no entanto, não parece dissimulador no seu mistério, e isso é o suficiente para me deixar intrigada e mesmo fascinada.
Comecei então a testar o rapaz de maneira sutil com pequenas distrações sensuais, como um botão da blusa esquecido de abotoar; uma saia fina sem calcinha por baixo, um vestido de tecido muito fino em cima da pele, etc. Mas sobretudo um ar vago e sonhador e gestos lentos e muito harmônicos. Nada, o rapaz continua como um hóspede modelo, educado, e interessado apenas nas coisas da estância contadas pelo meu irmão e por Galdério, nosso empregado e charreteiro, embora também pelas minhas observações sobre poesia e literatura em geral, que ele ouve com muita atenção mas sem maiores comentários. Não estou agüentando mais. Esse rapaz deve estar fazendo um tipo de jogo. Então resolvo jogar duro.
Já que estamos no verão e as noites estão muito quentes e claras, saio do meu quarto, tarde da noite, totalmente nua sob o belo luar. Sei que estou deslumbrante sob esta lua que tudo prateia. Saio pela varanda e caminho pelo gramado em direção à piscina. Mergulho fruindo a frescura deliciosa da água, dando braçadas que sei competentes e até elegantes, tudo isso para um possível olhar oculto, o do nosso hóspede enigmático.
No dia seguinte sento-me à mesa do café da manhã exibindo a mais completa naturalidade de quem dormiu a noite inteira sem nenhuma travessura, sem a sombra de um possível pecadilho, sem o rastro da provocação, dando o bom dia convencional ao hóspede e sentando-me à sua frente na mesa para sondar disfarçadamente o seu olhar. Ele terá observado a minha performance ontem à noite?
Rolando (eis o nome que escolhi para o rapaz) continua o seu jogo, seu enigma: não consegui chegar a uma conclusão a respeito, por exemplo, de ele ter ou não me visto sair nua ao luar, de ter-me visto nadar na piscina apesar do rumor das braçadas na água rompendo o silêncio reinante da nossa noite de grilos e sapos já quase despercebidos, pelo hábito.
Nas noites seguintes repito com variações a cena da nudez por acreditá-la, por experiência, irresistível. Mas sem nenhum resultado. Rolando não denuncia o menor vestígio de minha sedução, cuja natureza agora me parece um tanto óbvia, reconheço, e me envergonharia se não fosse o meu senso de humor que ainda me faz rir de mim mesma. Resolvo ser mais direta e inquirir o rapaz sobre a sua vida e experiências, pois começo a suspeitar de suas preferências no terreno do “amor”. Estou, digamos assim, quase desesperada.
Antes que possa fazer isso sou abordada por Rôdo, uma manhã, que tomando-me pela mão me conduz a um canto reservado do nosso jardim, como um passeio carinhoso de irmãos, e ali chegando me diz com seus magníficos olhos azuis pousados sobre os meus:
— Alma, irmãzinha, desista. Tenho acompanhado teus vôos noturnos, de feiticeira, ou melhor dizendo, de náiade ao luar. Confesso que eles são deslumbrantes e chego a invejar o homem a quem são dirigidos. Mas, Alma , minha bela irmã, desista. Rolando é um jogador de poquer como eu, e o melhor blefador que jamais conheci. Perto dele sou um amador. Vou revelar-te agora o significado de tudo isso pois a honestidade não é o forte entre nós jogadores, como você sabe. Pouco antes de virmos para cá eu falei a Rolando muito de você, minha irmã, como a maior sedutora natural que eu jamais conheci, em oposição àquelas pérfidas e destruidoras que você mesma me ensinou que se chamam “Lilithianas”, as filhas de Lílith, fatais, sobre as quais tu mesma tanto me quer prevenir nesta vida que eu levo de inúmeros leitos e paixões, que no meu caso são uma extensão de minha alma de jogador. Tu suspeitas que sou viciado no jogo, e portanto de natureza frágil, no final das contas, daí a tua preocupação. Mas posso te garantir, que Rolando vem me surpreendendo com a sua capacidade de dissimular, e jogar os jogos do amor. Sim ele está apaixonado por ti, mas sua alma de jogador é tão forte que ele dissimulará até a morte, ou pelo menos até o fim do prazo que combinamos. Nada do que você fizer poderá fazê-lo render-se até lá. Sim, minha querida, pois está em jogo uma soma muito alta, da nossa aposta, e mais do que isso: seu orgulho de jogador.
Surpresa e indignada quase esbofeteei meu irmão que no entanto abracei apertado, com o coração confuso. Eu estava desnorteada. Eu afinal fora o motivo mas não o prêmio da aposta! Sentia-me vagamente humilhada. O dinheiro e orgulho de apostador falara mais alto para aquele jovem fascinante do que a minha beleza e a minha pretensa força de sedução. Mas, como sedutora, não sou também uma jogadora, afinal? Eles iam se haver comigo. Eu faria Rôdo ganhar a aposta e ficaria tudo em família. Ou melhor, talvez por honra do jogo eu deveria cobrar uma comissão do prêmio final, em dinheiro, de meu irmão. Senti-me naquele momento como parte de uma quadrilha, e poeta que sou lembrei-me do quadro de Magritte que representa um violino de pé, na vertical, pousado sobre um colarinho postiço engomado, sobre uma mesa, e denominado: “Un peu de l’âme des bandits”( “um pouco da alma dos bandidos”) imagem com a qual me identificava naquele momento, naquela situação após a insólita revelação de jogo e mentiras tão perigosas.
Naquela noite eu anunciei que receberia minha Aline, e o fiz com uma alegria exuberante, cheia de candura ( “o poeta é um fingidor...”) e pela primeira vez vi a surpresa e a curiosidade intrigada no olhar de Rolando que movimentou-se rapidamente até o de Rôdo e voltou numa fração de segundo, eu percebi. Ele mordera a isca!
Nos dias seguintes, tomei um ar mais sonhador do que nunca, o que não foi difícil, pois bastava-me realmente pensar em Aline e antecipar uma possível chegada dela, o verdadeiro amor da minha vida. Rolando começou a ficar inquieto: as fontes profundas, ancestrais de onde emana o instinto predador masculino, ou mesmo o simples machismo, estavam ativadas e ele logo se denunciaria. Voltei a andar nua agora pelo jardim como uma Ofélia nua ao luar. Até que ele veio encontrar-me perto do caramanchão, lugar perigoso pois não visível de dentro da casa. Estaria eu caindo na minha própria armadilha? Ali diante dele, nua na noite clara, tive um estremecimento de frio ou de pudor, e quis fugir, mas era tarde demais e ele pegou-me pelo pulso com delicada firmeza e puxou-me para si, dizendo:
-O jogo acabou, Alma, vocês ganharam! Não agüento mais, quero a ti mais que ao dinheiro, ou o amor do jogo. Quero perder, faço questão de perder, diga isso ao Rôdo. Agora, Alma, dá-me o prêmio da minha derrota!
Diante de suas palavras, eu, vitoriosa e comovida, fui abraçando esse homem totalmente vestido por fora... pousando suavemente sobre ele como o violino de Magritte, o violino ereto e orgulhoso que era a alma dos bandidos...

25/04/2006

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