domingo, 18 de maio de 2025
sábado, 23 de outubro de 2021
O Testamento
(conto de Alma Welt)
Chegou uma carta do advogado de meu falecido pai. Exige-me
a presença em casa, num encontro dos irmãos para a leitura do testamento do
velho, num determinado dia e hora.
Sei que isso não vai prestar. Conheço minhas irmãs e sua
cobiça. Quanto ao meu irmão mais novo, este é puro e honesto, mas violento e
exaltado por pura paixão de viver.
Todavia não me
esquivarei desse ato penoso, nem aceitarei mais nenhuma procrastinação. Cada
hora uma está em viagem e esperamos esse dia como uma sentença do irmão mais
novo de Deus, que era o nosso pai, em sua autoridade e juízo inquestionáveis desde
a nossa infância temerosa. Na verdade falo
isso mais por elas, pois eu era a queridinha, a caçula sobre quem ele derramava
a sua doçura insuspeitada.
Tínhamos um pacto, meu pai e eu. Sentada sobre seus
joelhos, ao meu ouvido ele segredou esse pacto que por ora não revelarei. No
devido tempo tirarei uma carta da manga.
Mas nada farei pra prejudicar ninguém, jamais, mesmo aos que me
ofenderem.
Feitas as malas, olho meu ateliê com carinho e já com
saudade. Junto à porta ajeito a tabuleta que está torta, a que adicionei um “a”:
“Pintora, pinta!”
Não falarei da viagem de ônibus, dos meus pensamentos em
retrospectiva, cheios de flagrantes, de flashbacks
entre o cochilo e a vigília cercada de paisagens fugidias, que meus olhos
captam para futuras telas transfiguradas.
Chego à mansão de nossos pais, que diminuiu muito pouco com
o tempo. Tudo tão velho! Tudo um pouco exagerado, como se fosse possível uma
escala mais modesta para absolutamente tudo dentro dela. A verdade é que me
pai, embora médico, possuía uma visão
senhorial do mundo, contra a qual me rebelei na adolescência, com inesperada
condescendência do velho, que quase não lutou contra a minha saída. Ele tinha
aceito minha vocação de artista, que na verdade estimulara desde que eu era
pequena, mostrando-me livros e quadros e liberando sem ressalvas meu acesso à
sua vasta biblioteca clássica. Lembro-me do episódio em que o fator de
discussão entre meus pais foram as reproduções na seção de cultura de uma
revista médica, que meu pai deixou à
mostra em sua mesa de cabeceira: uma
série de fotografias de obras pictóricas e escultóricas clássicas sobre o tema
“Leda o Cisne”. Ao ver aquelas imagens
estranhas, ambíguas (eróticas, depois eu soube) fiquei agradavelmente
perturbada, se posso dizer assim. Excitada. Um cisne entre as pernas... Minha
mãe estrilara. Poucas vezes eu a vi assim, enfrentando-o com uma fúria sagrada de moralista intransigente.
Exigia a destruição daquela revista, dizendo não admitir pornografia em casa.
Pela primeira vez vi meu pai na
defensiva, argumentando serem mitologia
grega em obras de arte consagradas, de Leonardo Da Vinci, Michelangelo, Verrocchio, etc, o
que não adiantava diante da exaltação inusual de minha mãe, que invocava a
inocência dos filhos e a moral familiar, nominando aquilo de pura sujeira.
Bem, esta lembrança agora já podia se desvanecer, purgada
como tantas. Só para isso já serviria minha vinda a esta casa pela primeira vez
desde a morte de meu pai. Recordo então o velório à antiga, no salão, entre
velas e o nosso choro abafado, em contraponto ao copioso pranto da nossa cozinheira e do motorista fiel.
Encontro agora a recepção efusiva de Matilde, nossa cozinheira,
à porta de entrada, com abraços e exclamações carinhosas. Está envelhecida somente pelas rugas mas com o
mesmo entusiasmo de sempre. Chama-me sua “menina”, com lágrimas nos olhos.
Subo para o meu quarto e desfaço as malas, pondo minhas
roupas no armário onde encontro alguns vestidos de minha adolescência e
decalques gastos nas portas, por dentro.
Nada parece mudar
nesta casa, mas apenas envelhecer, fanar-se lentamente.Ninguém ousaria tirar
uma poltrona do lugar. Por que isso? A presença demasiado forte de meu pai
cristalizou-a como um encanto e não me admiraria de ver, desta janela, um denso
espinheiro impenetrável cercando a casa adormecida.
No fundo de uma
gaveta encontro uma pasta com um poema meu dentro, escrito aos 16 anos, de um
romantismo obscuro e místico que me causou
agora estranheza e um rubor que senti nas faces:
ORSILIA
Numa floresta gótica jaz,
erma e terrível, a
lembrança de Orsília
A mágica luz dos
entre-arcos, que nenhum vento distorce
pousa em algum lugar de seu corpo um reflexo de dor.
Nenhuma oscilação afugenta o espírito em seu retorno
mas toda a atmosfera submete-se a uma paz ditada pela
morte.
O silêncio canta uma balada ancestral.
Nem a névoa estagnada dos pântanos
nem o petrificado gesto do íbis
se dispersa ante tão suave angústia.
Orsilia vagueia seu amor translúcido,
seu triste amor , agora isento de recordações
....................................................................
à margem de uma
estrada, um vento sofre nas ramadas.
Desço em seguida para a sala e entro na biblioteca
contígua, para repassar com o olhar os volumes tão queridos. Os clássicos: a Odisseia
e a Ilíada de Homero, a Divina Comédia de Dante Alighieri, o Don Quixote, de
Cervantes, o Paraíso Perdido, de Milton, o Gargantua e Pantagruel, de Rabelais , todos grandes volumes
ilustrados por Gustave Doré, meu primeiro grande paradigma de desenhista.
Descobri mais tarde que seus desenhos estavam desvirtuados nessas edições pela interpretação estereotipada e maneirista
de xilógrafos da época, e que seu traço maravilhoso só sobrevivia nas vinhetas.
E esse traço me interessava tanto quanto as estórias a que ele estava a
serviço.
Corro os olhos pelo
resto da biblioteca com fotos pousadas aqui e ali, como se ouvisse o som da
Gymnopédie, de Eric Satie, no filme “Feu Follet” (Fogo Fátuo - “Trinta anos
esta noite”) .
Logo o som do piano
em minha mente é perturbado pelo ruído de carros chegando, com suas portas
batendo, e o burburinho da chegada de minhas irmãs com seus maridos e filhos.
Vou recebê-los, vagamente contrariada. Lucia e Geraldo e o casal de gêmeos.
Solange com a filhinha Patricia e o marido Alberto abraçam-me, falando sem
parar. Meus sobrinhos disparam pelo jardim, depois de um beijo rápido. Como são
lindas estas crianças! Quero estar com elas, conversar e brincar com elas, só
assim estarei paga por esta viagem, que pressinto dolorosa pelo que nos espera
de conflitos e mesquinharias. A verdade é que eu vivi sempre sob a égide do
prazer, e a mim mesma me admiro por ser relativamente sóbria, salvo pela paixão
que nutro, vez por outra, pelos eleitos do meu coração.
Na sala conversamos um pouco enquanto Solange, pragmática,
dá ordens para o almoço enquanto Aberto seve coquetéis, com aquele olhar
brilhante e rosto rubicundo de alcoólatra moderado.
Em meio à reunião,
amena, como uma trégua a anos de guerra surda entre os dois casais, em que me
coloquei sempre à parte, neutra por prudência e desinteresse, já que minha arte
me supre de tudo, e nada pode atingir-me desde que permaneça fiel ao conselho
de Leonardo Da Vinci a um seu discípulo: “Se queres ser um bom artista não
deves sofrer senão pela tua arte”. Mas não sei se posso permanecer inatingível
, à toda prova.
Chega agora Rodolfo, nosso irmão mais novo. Como uma
saudação faz roncar o motor de seu Porsche conversível, antes de desligar o
motor. Pula por cima da porta sem abri-la, típico de sua vitalidade e
juventude. Corro a abraçá-lo, meu querido Rodo... Ele roda-me no ar, em
gargalhadas os dois, enquanto os outros abanam a cabeça quase enciumados da
nossa afeição incondicional.
Rodolfo cumprimenta
a seguir nossas irmãs e cunhados e corre para a cozinha para festejar Matilde.
Ouvimos as exclamações e risadas vindas de lá. Como Matilde ama esse rapaz que
ela praticamente criou!
Mais tarde. À mesa Solange ocupou a cabeceira,
significativamente, e tentou controlar o almoço e os nossos modos, como uma
diretora de colégio. Mas eu já estava acostumada a tudo isso, enquanto Rodo
apenas ria com ironia, trocando olhares cúmplices comigo.
Após a sobremesa e o
cafezinho fugimos, Rodo e eu, para conferirmos nossas vivências no último ano
em que praticamente não nos vimos.
Segurava-me as mãos e beijava-as a toda hora. Eu lhe passava a mão nos
belos cabelos negros revoltos, e sentia
conhecê-lo como a mim mesma.
Naquela noite, a insônia nos pegou a quase todos, e ouvimos
os estalidos e o gemer da casa em seu sono agora perturbado. Cruzávamo-nos na
cozinha num vai-e-vem entremeado de pequenas conversas. Até a amanhecer nos
aquietamos. Acordei tarde com o alarido das crianças brincando no jardim.
Senti-me como se estivesse perdendo alguma coisa. “Elas começaram sem mim...”
Mas logo esse pensamento esvaneceu-se e voltei a adormecer num sonho onde me vi
criança no jardim mágico de minha própria casa, pulando amarelinha e depois
rodando um arco que me guiava até uma casinha de bonecas no jardim, onde dentro,
ocupando todo o espaço como encaixotado, estava sentado um homem sem rosto que
disse: “Alma, vim cobrar nosso pacto.
Você não deve esquecê-lo. Todo sonho tem um preço”.
Uma angústia me fez
acordar.
Ao meio-dia
estávamos todos reunidos na sala esperando o tabelião e o advogado que
chegariam logo. Passamos à biblioteca-escritório, onde fizemos um pequeno
auditório dispondo cadeiras frente à mesa de meu pai, em cuja cadeira de
espaldar se instalou o tabelião gordo, com olhos saltados atrás de grossas lentes
como um sapão, que me deu vontade de rir. Diante da solenidade dos presentes e
da situação apercebi-me da criança que eu ainda era em minha alma. Senti-me
como uma menina intrusa na sala dos adultos e quase abandonei o local para
juntar-me às crianças no jardim, para que eles pudessem decidir nosso destino enquanto brincávamos
felizes.
O notário fez um
pequeno suspense e começou a ler o testamento de meu pai. Eu podia ouvir-lhe a voz grave através da voz
estridente daquele grande sapo e notei a astúcia do meu pai em nada especificar
na partilha dos bens imóveis, que deveria assim ser divididos igualmente por
quatro, mas à parte, um lote de terra para Matilde e seu irmão Galdério, o
nosso factotum da estância.
Entretanto salvaguardava os quadros, a biblioteca, o piano Steinway e os discos
clássicos para mim, depositária da arte que havia na casa. Isso causou polêmica
imediata, pois os quadros, o piano e alguns livros eram de grande valor. Começavam ali as brigas, os ciúmes e as
mesquinharias que eu antevira.
Retirei-me rapidamente no calor da discussão, e fui
realmente me juntar às crianças.
Patricia, minha
sobrinha, bela como um anjo, deu-me a mão e fomos andar em silêncio no gramado
e pelas alamedas entre as grandes árvores.
De repente parou, olhou-me bem nos olhos e disse: “ Tia Alma, leve-me
com você. Quero viver no seu ateliê, quero ser como você, sempre criança no
meio das cores, sem meu cabelo ficar branco e sem nunca falar de dinheiro ou
gritar de raiva.”
Meus olhos marejaram
e eu a abracei forte. Que podia eu dizer-lhe senão deixar claro que eu a amava
e que ela era como eu, e que já estávamos salvas por princípio, livres do
pecado original do dinheiro, eternamente crianças e felizes em nossa suave dor
de viver amando a vida e a beleza...
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Rodo veio
encontrar-me furioso com as irmãs mais velhas e com os cunhados. A luta
começara e ele queria a minha aliança. Queria que a estância fosse só dele, com
o vinhedo, e para isso abriria mão da sua parte no casarão.
Tudo isso era esperado, eles se engalfinhariam pelos bens
materiais, pela fortuna de nosso pai, pomo da discórdia há muito pressentida.
Quanto a mim , estava disposta a abrir mão de tudo no meu sonho romântico de abrir
meu caminho e me realizar como artista pelo meu próprio valor um dia reconhecido. Vejam só... Rodo indignou- se
dizendo que não me deixaria ser espoliada por aquelas megeras, etc.
Eu deveria manter-me
serena, pois percebi que todos me procuravam como o fulcro da questão, como um
núcleo denso em torno do qual orbitavam suas paixões. Corriam para mim para que
eu arbitrasse, mas na tentativa de me
cooptarem ou seduzirem em função de seus interesses. Eu sofria com isso.
Era um papel que eu não queria, até que percebi que bastava que eu me
mantivesse íntegra e desinteressada para que suas vontades se estilhaçassem
contra o rochedo que eu me tornara.
Rodo se exaltava.
Enchia-se de cólera e se excedia na fúria verbal. Sua beleza se perdia. As
crianças começaram a brincar mas afastadas no Jardim, mais silenciosas.Eu
comecei a orar para que a paz reinasse naquela família e para que meu Deus da
Arte da Vida me inspirasse.
Alguns dias
transcorreram amargos, em que as refeições já não se faziam com a mesa
completa, sempre faltando alguns, que recarregavam nos quartos suas baterias de
fel.
Foi chamado, afinal,
por inspiração minha e por intermédio do advogado, um conselheiro espiritual:
Monsenhor Ângelo, o velho pároco da cidade, que fora amigo de meu pai e que nos
batizara a todos.
O velhinho chegou antes do almoço, com sua longa barba e o
olhar gasto, azulado, mas cheio de compaixão.
Reunimo-nos na
grande sala, as crianças inclusive, e ele, sentado numa poltrona, deixou-se
beijar a mão por cada um de nós. Depois de longo silêncio, ralhou:
- O que há com esses
brigões? Não respeitam as crianças? Lembrem-se do que Jesus falou daqueles que as
escandalizam. “Mais vale que pendurem
uma mó ao pescoço e atirem-se ao rio”. Quem de vocês não está disposto a ceder?
Somente cedendo um pouco cada um haverá concórdia na família. Quem de vocês se
chama Alma? Ah! Daqui a vejo, minha criança... Sente-se aqui ao meu lado. E
vocês devem beijar-lhe as mãos, mas não
me perguntem por quê. Somente assim a harmonia reinará entre vocês, porque não
entrarei jamais no mérito das suas polêmicas interesseiras. O segredo da paz
nesta casa está com esta menina, assim o vejo claramente. Agora vou-me embora e
não quero ouvir mais nada. A paz seja convosco se não desconhecerem o Cristo!
Fiquei tremendamente
embaraçada e impressionada enquanto os molhos da minha família pousavam sobre
mim.
Então, subitamente,
as crianças todas correram para mim e, agarrando-me as mãos e a saia,
fizeram-me rodar de braços abertos no centro da sala, de maneira insólita, para
alívio geral, e no meio de uma explosão de risos.
FIM
28/09/2001
sexta-feira, 5 de março de 2021
DIÁLOGO DE SOMBRAS (de Alma Welt)
E a sombra se afastou sorrindo e lentamente diluiu-se na luz...
.
04/03/2021
terça-feira, 28 de abril de 2020
A Lenda do Pão Milagroso (de Alma Welt)
Aconteceu que a fama daquele pão milagroso se espalhou pela região, que coincidentemente ou não, recebeu naqueles dias a visita do arcebispo do condado, que se instalou no casarão mais vetusto e digno da aldeia, do qual fez sua casa episcopal.
Ouvindo falar da única novidade daquela aldeia, imediatamente mandou chamar aquela família e interrogou-a um tanto rispidamente sobre aquele pão que o povo já chamava de milagroso. Exigiu que a família lhe trouxesse um exemplar para prová-lo segundo as regras da Igreja. A menina se esmerou, como sempre, e o arcebispo ao prová-lo ficou subitamente deslumbrado, mas logo se controlou, fechou o cenho e disse ameaçadoramente:
- O que é isso? Este pão tem um sabor celestial, nos remete ao paraíso, e isso é blasfêmia! Por acaso és uma santa ou um anjo? Apesar de teu nome, certamente que não! O paraíso nos foi interditado por Deus. É um imenso pecado trazer-nos, deste modo comezinho, a ilusão pecaminosa da felicidade terrena.
És uma bruxa, rapariga, e vais pagar por tal blasfêmia perante nosso Senhor Jesus Cristo e sua Santa Igreja representada aqui por mim! Mas antes vais confessar o ingrediente mágico ou o sortilégio que agregaste a este maldito pão. Vais repetir aqui na minha cozinha a tua falsa fórmula e se na conseguires o mesmo sabor saberei que excluíste marotamente o ingrediente mágico!
Angelina, assustada, se esmerou na cozinha do bispo e com os poucos ingredientes pedidos por ela, conseguindo o mesmo resultado maravilhoso.
Foi a conta... O bispo, furioso em seguida ao momento de prazer que ele prontamente exorcizou de si, gritou:
-És uma bruxa! Confessa o ingrediente proibido ou o feitiço que disfarçadamente puseste na massa. Qual é ele, confessa!
Angelina assustadíssima, em lágrimas, respondeu:
-Mas, Sua Santidade, é amor...
-Amor de Deus? - insistiu o arcebispo- Certamente que não. Acaso és um anjo? Os anjos se retiraram da Terra há muito tempo. Amor das trevas, isso sim! Não temos direito à felicidade terrena. Ninguém tem!
- Amor somente, Senhor... Simplesmente amor – gemeu a menina.
O arcebispo, mais furioso ainda, mandou que a torturassem para ela confessar o ingrediente secreto. Sem obter resultado, pois a menina, sob terríveis torturas afirmava que nada tinha escondido, nada tinha a esconder.
Então, na pequena praça daquela aldeia, sob os insultos dos aldeões e as lágrimas de alguns, também, Angela sofreu o martírio das chamas.
Diz a lenda, que no meio das cinzas restou não o coração intacto da donzela doceira, mas um pãozinho perfeito, quentinho e doce, que desde então se encontra, meio comido, como única relíquia venerada pelo povo, num escrínio na capela da aldeia...
FIM
28/04/2020
quarta-feira, 21 de janeiro de 2009
Anagramas (de Alma Welt )
domingo, 16 de novembro de 2008
Stradivarius no sótão ( conto de Alma Welt )
Sentindo o meu apartamento nos Jardins completamente saturado , entulhado de telas, materiais e livros , resolvi procurar um sobradinho na região próxima, de Pinheiros, para estabelecer um novo ateliê, “clean”, para poder manejar e pintar grandes telas. Tendo encontrado a casa que me serviria, vi-me novamente envolta por uma vida de bairro, mais comunitária, a que estava desacostumada. Não tardei a conhecer um personagem destas ruas , que me faria participar de um extravagante episódio de sua vida.
O senhor Robledo, apesar de sua discrição e aspecto apagado, seu ar digno e um pouco distraído, teve seu tempo de notoriedade, há alguns anos atrás, nestes quarteirões, nos bares ociosos das adjacências, quando cometeu a publicação de um compêndio de sua autoria. Uma brochura, impressa numa tipografia próxima, por sua conta, e titulada, para gáudio da vizinhança e dos boêmios e bebedores de cafezinhos, nada mais nada menos que : “Romantismo e Vida Fiscal.” Não é preciso dizer que os gozadores não ultrapassaram o título em seus comentários, e que poucos se deram ao trabalho de folheá-lo. Confesso também minha total ignorância quanto ao seu conteúdo, quem sabe de notáveis ponderações, visto que o seu autor parece impregnado de uma certa aura de humanismo, que envolve toda a sua pessoa , de uma maneira um tanto arcaica.
O senhor Robledo contou-me que parou diante de um sobrado, tocou a campainha e foi imediatamente recebido pelo senhor de cabelos brancos e aspecto saudável que o conduziu por dependências já completamente esvaziadas e convidou-o a sentar-se numa das duas cadeiras que se avistavam no meio da sala. Este senhor teria dito mais ou menos isto:
-“ Meu caro senhor Robledo , conforme está no contrato, entrego-lhe a casa inteiramente vazia, mas com a condição de que o senhor suporte o meu despejo no sótão da casa. É afinal, a única dependência que me reservo, pois não tenho como me ocupar dessas velharias, nem quero perder tempo em livrar-me delas. Peço-lhe muitas desculpas por alugar-lhe a casa em tais condições , mas quero aproveitar a liberdade com que a vida subitamente me presenteou, com o afastamento dos meus filhos e parentes, que seguiram seus rumos, casaram-se e mudaram-se, e visto que sou viuvo já há muitos anos...Vejo-me enfim livre para uma última viagem pelo mundo, da qual talvez nem regresse , não posso esperar da vida tantos retornos, apesar de tudo. Gozo de boa saúde, pretendo dar um bom giro pela velha Europa, e passar pela minha região de nascença, minha pequena cidade natal . Peço-lhe, entretanto , que não se preocupe, absolutamente
não se preocupe com aqueles trastes lá em cima. Deixe-os empoeirar-se, se isso não o incomodar. Na verdade não queria incomodar um inquilino como o senhor , apenas rogo-lhe que suporte esses despojos, dos quais não tenho forças para livrar-me. Não creio, por outro lado, que o sótão lhe possa fazer falta não é mesmo? O senhor sendo solteiro, e visto que o senhor assim me afiançou com tanta generosidade. Enfim, fico-lhe grato. Não, não exagero. Um inquilino como o senhor é uma preciosidade, a essa altura da vida , quando não se pode mais aborrecer-se com ninharias e tudo o que se quer é partir, partir, sabe-se lá por quê, num ultimo giro pelo mundo, antes de aportar de vez, não é mesmo?
–“Naturalmente, sem dúvida, senhor”– o senhor Robledo se aprestou em afirmar, já com um zelo de guardião prestativo e fiel a desabrochar-lhe nos olhos, em todo o seu corpo aprumado, mas que anos e anos de serviço público faziam suspeitar pequenas reverências, movimentos imperceptíveis de coluna.
Na verdade, tudo isso eu deduzi, a partir de uma convivência esporádica que estabeleci com o protagonista desta história, das observações que pude fazer da janela do meu sobradinho, e a seguir, das insólitas cenas que me foram dadas a presenciar em sua casa, e que tentarei relatar por mais dolorosas e grotescas que pareçam. Por enquanto, ainda estamos naquele prólogo narrado pelo querido senhor Robledo, numa determinada visita que lhe fiz no sanatório.
O diálogo com o proprietário prosseguiu, um pouco mais, girando sobre estes mesmos pontos e afinal despediram-se cordialmente , quase efusivamente. O senhor Robledo cheio de inexplicável entusiasmo e com a melhor das disposições retornou à sua residência, distante apenas uma quadra dali, afim de tratar da sua mudança, considerável bagagem de homem civilizado, razoavelmente livresco( uma pequena e eclética biblioteca, onde predominava a boa literatura do século XIX ).
A mudança do novo inquilino foi acompanhada por uma dezena de pares de olhos atentos, entrincheirados nas janelas da vizinhança, nas imediações do poste da esquina, e sobretudo nos bancos do boteco em frente. O sr. Robledo não era estranho a esses olhos, mas devia estar se aproximando considerável e inadvertidamente, com as entranhas de sua antiga residência à mostra , nessa
situação de terrível despudor em que uma mudança coloca as pessoas.
Dispostos o móveis em seus lugares, tarefa que tomou alguns dias ao sr. Robledo, que , por sinal, teve de despachar amavelmente alguns curiosos que sempre teimam nessas ocasiões em prestar uma mãosinha de ajuda, afim de pôr um pesinho dentro da nova moradia. Prestativos e bisbilhoteiros, olhares ávidos de tédio e curiosidade vã, vocês sabem, os bons vizinhos freqüentadores do boteco, a gorda e faladeira senhora da esquina; o inesperado anão provavelmente vendedor de bilhetes de loteria, o aposentado senhor de olhos empapuçados de alcoólatra, o moço espinhudo jogador de sinuca, talvez conhecido pelo apelido de Zé Galinha, a magérrima semi-louca da direita, em seu vestido de brim estilo sanatório, etc. Ah! Uma indefectível professora de música, outrora, segundo ela mesma, cantora lírica no Municipal. Pessoas amáveis e atenciosas, ligeiramente marginalizadas, é verdade, solitárias e solidárias a seu modo.
A porta trancada, o sr. Robledo, exausto, percorreu com o olhar cada centímetro quadrado do seu novo cenário, na verdade idêntico ao antigo, com as mesmas disposições e um restinho da velha poeira; os objetos metodicamente recolocados sobre as mesas e os consoles, e encerrou para si mesmo o assunto mudança, não sendo, afinal, um homem de demasiadas idiossincrasias, dessas que costumam assolar os solteirões.
Predispôs-se a dormir , não sem antes dar a primeira vista d’olhos no famoso sótão, objeto de sua crescente curiosidade, o que fez com ligeiro ar de displicência, de pijama, pensando sem querer num paninho de pó e na sua faxineira diarista. Não, não caberia a mais ninguém entrar naquele sótão tão íntimo, afinal, toda uma vida acumulada ali , nos seus visíveis recados, na sua linguagem cifrada de móveis, quadros e objetos, poltronas rotas e pó, provavelmente.
“É preciso ser sensível,” pensava ele, “à linguagem muda dessas coisas. Não, empregada jamais , talvez o esquecimento vigilante, isto sim, vejamos...”
Subiu o pequeno lance de escada e penetrou pela porta que ostentava
chave, e viu-se numa pequena alcova sob o telhado, entulhada de toda a sorte de móveis desmontados, comuns, bastante usados, vividos, sobre os quais pousavam quadrinhos empilhados e álbuns de fotografias de família. Com a ponta dos dedos, o sr. Robledo abriu um álbum, desinteressadamente, folheou timidamente outro mais adiante, retomou os ares de guardião zeloso e voltou-se para sair atritando os dedos empoeirados, quando seus olhos caíram sobre um instrumento pousado sobre uma cômoda bloqueada por todos os lados, displicentemente jogado, fora da caixa, sem cordas: um violino bastante belo, lhe pareceu, razoavelmente conservado, apesar de tudo. O sr, Robledo pegou-o com reverente cuidado, com as pontas dos dedos, examinou-o, com atenção e respeito. Admirou-lhe as formas barrocas que lhe pareceram perfeitas, advinhou-lhe as peças desaparecidas, que lhe completariam a harmonia: o cavalete e o suporte; intrigou-se com a queixeira negra que lhe pareceu abstrusa; percorreu com os dedos a voluta onde faltava uma chave, e em seguida espiou pelas frestas sinuosas e leu, inclinando adequadamente para a luz da pequena janela empoeirada: ANTONIUS STRADIVARIUS CREMONENSII – 1692.
Com um leve sobressalto íntimo, o sr. Robledo, pestanejando, depositou subitamente o instrumento, exatamente no espaço delineado pela sua forma na poeira da cômoda e tratou de afastar-se, num estado semi-sonhador, hipnagógico.
Trancou a porta com a chave e retirou-se, descendo até a sala, dirigiu-se até a sua estante, percorreu com os olhos as lombadas da sua Enciclopédia... “S”, retirou o volume, folheou-o, compulsou-o, até encontrar o verbete esperado: “Stradivari ( Antônio ), dito Stradivarius, de Cremona, Itália, célebre “maestro liutaio”( luterista ), discípulo de Amati, etc...”
O sr. Robledo soltou um gemido, enquanto seus pensamentos turbilhonavam sem forma, despontando aqui e ali uma censura em meio à surpresa: “Como puderam deixá-lo assim, abandonado, ali na poeira, mutilado, sem cordas, sem sua caixa, etc..? Tanto descaso... Um mistério. É preciso vigiá-lo, de algum modo...”
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Os dias se passaram e o sr. Robledo permanecia com aquele olhar sonhador, que agora lhe assentava como a definição verdadeira da sua personalidade, de modo que não foi notado conscientemente nem mesmo pela sua faxineira, embora isso o deixasse mais vulnerável às tentativas de aproximação dos vizinhos, pois já não reagia às pequenas invasões do cotidiano do bairro, na verdade por não estar atento. Tinha agora um ar mais vago, doce, os gestos mais lentos.
Um dia fez uma viagem ao interior, Taubaté, e trouxe um violino tosco, uma rabeca popular comprada na feira da cidade. Daí pra diante as rabecas se multiplicariam no seu caminho com curiosa facilidade. Violinos de feira, de bric-a-brac, de criança, quebrados, empenados, mutilados, feitos a canivete, primitivos
uns, belos, outros nem tanto, violinos de fábrica, cópias de bela aparência. Proliferavam pela casa como coelhos. O sr. Robledo os tangia, passava-lhes o arco uma vez ao chegarem, e logo os pendurava. Sim, porque, estranhamente, ele não suportava pousá-los pelos móveis, achando que a trepidação da rua, pelo movimento dos carros e caminhões, os prejudicaria de alguma forma. Pendurava-os em varais que se estendiam pelos cômodos da casa, sempre acompanhados dos seus respectivos arcos, pendentes pelas volutas, como enforcados, acima das cabeças das visitas. Sim porque, vulnerável como estava o nosso sonhador, a casa agora era constantemente invadida pelos vizinhos: o Zé Galinha, a louca da esquina, dona Magda, a cantora, o anão de terno, o poeta Aragipe, queixoso e impublicado, o aposentado alcoólatra na ativa, e outros. Até mesmo essa sua criada aqui, que ele convidou amavelmente, ao encontrar-me eventualmente na padaria do nosso quarteirão. Pude testemunhar o espantoso entra-e-sai de sua casa devassada. Entravam a qualquer hora do dia e da noite, sentavam-se à mesa com seus baralhos, em longas partidas demenciais, entremeadas de cafezinhos que movimentavam simultaneamente a cozinha, em confidencias, tagarelices, gracejos, fofocas. Sobretudo fofocas.
Um dia, em meio a essa balbúrdia, o sr. Robledo, de repente bateu palmas e pediu atenção. Tinha um comunicado a fazer. Olhamo-no em silêncio, surpresos e curiosos.
—Senhores, senhoras, meus amigos, e você, Alma , sobretudo você, minha nova querida amiga! Tenho uma revelação a fazer. Uma grande descoberta! Mas, primeiro um convite. A todos vocês. Façamos um grande almoço. Conto, para isso, com a colaboração das senhoras. Quero todos presentes. Durante esse repasto, amanhã, farei a minha revelação. Compartilharei com vocês, meus amigos, a minha grande descoberta. Fundamental, eu creio, vocês verão! Conto com vocês. Até amanhã!
Na verdade, poucos deixaram a casa, e as mulheres puseram-se logo a fazer planos para o promissor almoço. Frango assado!, decidiram.
No dia seguinte, ainda cedo , começaram os preparativos. A cozinha movimentou-se, com as incursões ao boteco da esquina para comprar os frangos. Na verdade, pré assados na máquina giratória, já prontos, faltando somente os condimentos, guarnições, etc.
Ao meio dia em ponto a mesa estava aberta, crescida e posta com a toalha de renda, os talheres e baixelas desenterrados do passado nebuloso e neutro dos baús do nosso amável anfitrião. As mulheres atarefadas, traziam os frangos fumegantes da cozinha, acompanhados aos saltos pelo anão e o Zé Galinha, que se faziam de bufões. O poeta Aragipe fazia o menestrel, tangendo como um alaúde, um dos violinos arrancado ao varal que se estendia acima da mesa, de parede a parede. O sr. Robledo estava um pouco desconcertado e incomodado com a feição de Festim que o almoço tomava, eu percebi. Mas mantinha o olhar sonhador e vago, à espera do momento de compartilhar sua Revelação.
Todos sentados à mesa, o sr. Robledo à cabeceira, os convidados buliçosos faziam pirraças, arrulhavam feito pombas, grasnavam, latiam, batiam palmas e atacavam as entradas e aperitivos, atiravam azeitonas, casquinando.
De repente, ao entrarem os frangos, em meio ao vapor e aroma que se desprendiam, o sr. Robledo pôs-se de pé, hesitante, e pediu silêncio, batendo discretamente um garfo no cristal.
–Senhores, senhoras, um momento! Eu lhes peço. Quero dizer-lhes algo... que me parece sumamente importante. Assim, obrigado. Senhores, quero fazer-lhes uma revelação... Quero compartilhar a enorme alegria da minha descoberta, com vocês, meus amigos!...( o sr. Robledo balbuciava ). O Segredo... o segredo!
Fez-se um profundo silêncio. Desconcertado, o sr, Robledo hesitou mais um pouco, todos os olhos pousados nele, mas subitamente, num gesto rápido, agarrou pelo braço e arrancou ao varal o violino mais próximo de sua cabeça e com um golpe seco, espatifou-o contra a quina da mesa.
Diante da estupefação dos presentes, abriu o tampo e com dois dedos, pinçou um pequeno pino de madeira, uma espécie de suporte ou espinho, no ventre do instrumento e mostrando-o à malta, anunciou:
— Eis o Segredo, senhores. Eu descobri! Eu descobri! O segredo do maravilhoso som do Stradivarius! Senhores, está aqui, isto se chama Alma! Compreendem? Estão vendo? Tudo está aqui! Vejam!
Nesse momento, passada a surpresa, os convidados levantaram-se e agarraram os violinos que pendiam acima de suas cabeças, o varal despencou, os instrumentos foram disputados, estraçalhados, desmembrados. O anão subiu à mesa, e munido da tesoura de destrinchar, pôs-se a abrir os tampos, metendo as pontas pelas frisas. Volutas eram arrancadas e brandidas como coxinhas, enquanto o Zé galinha arrancava cravelhas e fingia palitar os dentes com elas. Dona Magda trinava a ária Libiamo! Libiamo!, da La Traviata, enquanto o poeta Aragipe com o dedinho enroscado num pesinho de cavalete, disputava com o senhor aposentado a sorte no rompimento do ossinho. E uivos, cacarejos, gargalhadas, enquanto cordas eram tangidas como nervos retesados, tampos eram destrinchados, volutas enfiadas nos molhos e lambidas em meio a gritos de: “Está na alma! O segredo está na alma! Passe o frango! Hi, hi,hi! Quá! Quá! Quá!
O sr. Robledo, recoberto pelos pinos que lhe atiravam, coberto de molho como sangue, subitamente revira os olhos e estende a mão para mim, horrorisada que estou, e paralisada a um canto da sala. Parecendo querer agarrar-se às lágrimas que divisou nos meus olhos, subitamente tem uma apoplexia, os olhos esbugalhados, e desfalece, derrubando a cadeira para trás e rolando aos pés da mesa.
O banquete acaba aqui. Também não vi mais nada. Não tenho mais detalhes dos acontecimentos depois disso. Tudo se desvanece...
FIM
01/10/2002
Stradivarius no Sótão (de Alma Welt)
Um vizinho no bairro de Pinheiros
A quem deu a mania de comprar
Violinos e rabecas sem parar
Que lhe levavam falsos companheiros
De um carteado fútil, sem sentido,
Vilipendiado em sua inocência
Em seu lar doce lar mais que invadido,
Já estava à beira da demência...
E me convidando especialmente
Com a presença dos falsários
No meio de um jantar beneficente
Destrincharam violinos como frangos
E até o seu falso Stradivarius,
A pinçar-me-lhes a alma ao som de tangos...
Nota
Este soneto inédito que acabo de descobrir na Arca da Alma, sintetisa de maneira prodigiosa o conto inteiro entitulado Stradivarius no Sótão, dos Contos da Alma, de Alma Welt, livro publicado em 2004 (o qual ainda se encontra à venda), com contos que correspondem ao período em que Alma morou em São Paulo nos Jardins, e em Pinheiros, para onde mudou seu ateliê para uma casa, para ampliá-lo. (Lucia Welt)
domingo, 22 de junho de 2008
sábado, 17 de maio de 2008
Aline (de Alma Welt)
Sinto-me solitária. Não estou agüentando, preciso fazer alguma coisa a respeito... Estou começando a parecer uma solteirona inconformada.
Tento localizar Rodo, meu irmão caçula, que amo tanto. Penso em convidá-lo a morar comigo, apesar dos problemas que isso pode me acarretar. Mas não consigo localizá-lo. Está praticamente desaparecido. Conversando com minha irmã mais velha sobre isso, nada consegui saber sobre o seu paradeiro, e só obtive um sermão chatíssimo sobre o desperdício da minha vida (do seu ponto de vista), de que deveria procurar um marido que cuidasse de mim, enquanto é tempo, enquanto ainda sou jovem e bonita, porque depois...blá, blá, blá...Etc.etc.
Bato o telefone e ponho-me praticamente a gritar. Olho-me no espelho, o rosto riscado de lágrimas, congestionado. Assim, vou me acabar.
Tomo, afinal, uma decisão. Ligo para uma agência de modelos, famosa, que encontro na lista amarela. Falo com a atendente, e apresento-me como a artista plástica Alma Welt. Ela parece saber quem sou. Digo-lhe que preciso de uma modelo de ateliê, que seja linda, nada menos que isso, e que aceite se despir como “modelo vivo”, para uma pintora famosa, que sou eu. A funcionária achou muito natural, e consultou seu cadastro de modelos. Perguntou-me se não quero um rapaz, também. Eles os têm belíssimos e com boas referências. Digo que não, que prefiro uma modelo para nu artístico feminino. Ela percorre as fichas, e parece puxar uma, pela fotografia. Diz: “Tenho uma aqui que faz esse tipo de trabalho. Chama-se Aline.” Pergunto-lhe “Ela é bela?” Ela responde: “ Muito. É morena clara, de cabelos cacheados e olhos azuis. Uma beleza, e o corpo, então, perfeito.” Digo-lhe que me mande essa modelo. Ela me pede todos os meus dados, e o número do meu cartão de crédito. Diz-me o preço da hora dessa modelo, as condições, e tudo mais. Diz-me que me mandará um contrato para eu assinar. Concordo com o preço, com tudo. Quando afinal desligo, sinto-me aliviada.
Deito-me no meu sumiê, no espaço cercado pelas minhas telas. Ajeito um grande espelho antigo, de modista, que tenho para auto-retratos. Desnudo-me, e volto a deitar-me em pose de odalisca de Ingres. Sempre fui um tanto voyeuse de mim mesma. O que me resta, afinal? Preciso apreciar a minha beleza, enquanto ela existe, já que ela é tão elogiada pelas pessoas. Isso me deixa um tanto erotizada, e começo a exibir-me em todos os ângulos, alguns até mesmo um tanto pornográficos. Mas logo me canso da brincadeira, e caio de bruços, com a cara na almofada, soluçando. Adormeço ali mesmo, nua e descoberta.
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Na manhã seguinte, perto das 10 horas, toca o telefone. É Aline, a modelo. Notei-lhe a bela voz, doce, ao mesmo tempo direta e prática. Gostei do que ouvi. Ela combina vir ao meu ateliê às três da tarde, para começar as poses. Ao desligar, ponho-me a rodopiar pelo estúdio, como uma louca, apaixonada. Eu sou assim. Já estou predisposta a amar. Não quero saber se dará certo, se serei correspondida. Isso de amar, é antes de tudo uma questão de querer, de entregar-se, de predispor-se. Ainda penso assim. Somente sei, que, depois de disparado o processo, perdemos o controle. Ah! Como eu haveria de comprovar isso!...
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Toca o interfone. O seu Ermírio anuncia Aline. Abro a porta do apartamento e deixo-a escancarada. Assim, ela sairá do elevador e eu a estarei esperando (como se estivesse de braços abertos). Aliás, os abro rapidamente, fechando-os pouco antes da porta do elevador abrir-se. A moça olha-me surpresa, enquanto abro o meu mais receptivo sorriso. Ela é bela, meu Deus! Mais do que eu imaginava.
Aline estende-me a mão, comprida, perfeita, como a minha. Eu reparo em tudo. Seguro-lhe a mão e não a solto, para conduzi-la para dentro do apartamento. Ela olha, curiosa, para mim, e logo lança os olhos ao redor. Desprende sua mão da minha e rodopia um pouco de braços abertos, com um lindo sorriso. E diz, parando e cruzando as pernas, de pé, graciosamente:
–Alma Welt, a pintora...Que lindo tudo aqui, a começar por você !
Adorei ela dizer isso, meu coração disparou mais ainda. Eu pensei:
“Ela já foi fisgada. Ou, pelo menos começou bem...”
–Obrigada, Aline, tu também és linda, e ...acho que vamos nos dar bem. Tu queres alguma coisa antes de começar-mos a trabalhar? Um café, por exemplo, ou um suco?
–Não, Alma, obrigada. Pode preparar seu material. Começamos assim que você quiser.
Coloquei uma grande tela quadrada, no cavalete. Não pintarei nenhuma “odalisca” na horizontal. Vou enquadrá-la numa composição contemporânea, que não sei ainda como será. Mas ela estará de pé, ou acocorada. Talvez no ato de despir-se.
Aline começa a tirar a roupa, muito simples: a camiseta sobre os seios que despontam, sem sutiã. Que belos! Senta-se no chão e tira o tênis, depois a calça jeans. Fica um instante de calcinha e olha em torno onde botar a roupa. Coloca-as sobre um banco, ergue os olhos, fita-me e abaixa a calcinha. Tira-a com infinita graça. Percebo que ela se esmera na graciosidade dos gestos. Isto é um bom sinal. De sua elegância natural, que eu já notara à sua entrada, ou de uma intenção inconsciente de sedução: melhor ainda...
Fica então imóvel, os braços caídos, esperando. Aproximo-me e toco seus braços. Ergo-lhe um e deixo-o em determinada posição, depois o outro. Em seguida ponho minhas mãos em seu rosto e viro-o suavemente para um lado. Noto que ela é uma profissional: tem prática. Fica imóvel, congelada, exatamente na posição em que a deixo. Afasto-me e olho-a inteira. Como é bela! Que corpo! Morena clara, formas suaves, esguias. Pernas longas e bem torneadas. Que pés! Que mãos! E o seu púbis! A maravilhosa curva suave do seu ventre encontrando um montículo de pelos que deixam descobertos a vulva perfeita, como uma concha rosada, nada para fora, como uma adolescente. Uma promessa de prazer. Sacudo a cabeça como para espantar um pensamento, e ela com o rabo dos olhos parece perceber esse meu gesto. Capto uma curva quase imperceptível nos cantos dos seus lábios. Ela está sorrindo por dentro. Safadinha! Ela sabe... ou ela quer provocar-me. Começo a manuseá-la profissionalmente, mas com muita delicadeza. Observo seus seios, seu peito que começa a ofegar. Isso ela não saberá disfarçar... Seu coração, sua respiração a trairá. Ela está excitada. Ou, de alguma forma, emocionada. Afasto-me, olho-a com atenção profissional, mas sempre com um laivo de doçura, que ela captará. Viro-me e vou procurar um CD. Fico de costas para ela por alguns segundos, escolhendo entre a pilha, e ao mesmo tempo saboreando o seu olhar pelas minhas costas, que adivinho. Que sinto, na verdade. Demoro-me quase um minuto antes de voltar-me subitamente para ela, a tempo de pegar os seus olhos voltados para mim, que então, quase assustados, se desviam! Essa garota é adorável. Fui maravilhosamente sorteada. Ela será o meu amor. Eu me prometo!
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Continuo pintando desde cedinho, todos os dias. Mas enquanto Aline não chega, percebo que o meu trabalho tem o timbre da espera. Quando ela entra, ainda pela manhã, meu dia realmente começa. A vida começa... Caí na minha própria armadilha. Passo muito tempo esperando-a. Ela chega e me ilumina. Não terei então luz própria? Suspeito que não. Essa é a qualidade do amor... iluminar-se do amado. Preciso de Aline. Necessito Aline. Meu amor. Meu amor...Como é belo o seu nome, Aline, como é perfeito o seu som. Olho seus olhos, sua testa, seu narizinho, sua boca carnuda na medida certa. Seus cachos... como é bela, meu Deus! Queria engoli-la . Queria-a dentro de mim, para sempre. Mas ela... está fora de mim. Ela é um pouco rebelde. Ela se irrita, às vezes. Ela é brusca, em certos momentos. Ela percebe que eu a desejo... que eu a quero. Vai começar a tiranizar-me. Ai, meu Deus... Vou sofrer. Ela vai fazer-me sofrer. Ela já o faz... Ela joga charme. Ela se exibe ao posar. Ela se excita ao ver como a olho, como a desejo. Em certos momentos enquanto posa, percebo um ligeiro brilho na portinha de sua vulva, que ela não pode esconder. Ela fica molhada. Ela se trai. Ah! querida, tu já estás caindo na minha teia... ou eu na tua, não sei mais.
E os seus seios, meu Deus! Apontados para a frente, perfeitos, brotam na horizontal como se estivessem na vertical, como uma menina. Ainda não sentiram o peso da gravidade. Seu corpo é uma obra de arte, como o meu também é, essa é que é a verdade. Pintá-los é tão somente registrá-los, conservá-los assim para sempre. É um dever que sinto. Não, não seja hipócrita, Alma. É teu prazer, é tua luxúria. O gozo do espelho...
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Aline dorme ao meu lado nua, neste verão escaldante. Fico horas a olhá-la, a degustar a sua imagem, com as minhas retinas de “expert”. Não! Com o meu olhar amoroso, isto sim. Quantas vezes ponho-me a beijar cada centímetro de sua pele, e também de algumas mucosas mais acessíveis. Oh! Meu Deus, meu Deus. Estou ficando louca de amor. E de paixão. Já começo a sofrer por antecipação. Sofro de tanto amá-la, de tanto desejá-la. Serei eu uma doente? Carente? Não sei mais. Nada me faltou na infância. Fui tão amada... Mas, e minha mãe? Talvez esteja aí a razão dessa minha febre amorosa. Minha mãe não me amava do jeito que eu queria, pois não aceitava plenamente meu jeito de ser. Ela não me queria artista. Isso a assustava. Ela tinha medo disso: da artista. Ela não compreendia o meu excessivo amor pela beleza. Ela não aceitava ver-me chorar pelo belo, pela poesia. E muito menos pela alegria. Para ela isso era uma espécie de aberração... Uma heresia... no seu acinzentado mundo interior, cristão, igrejeiro. Ela tinha gerado uma pequena rebelde, pagã, dionisíaca, germânica por um lado, lusa nostálgica pelo outro; ambos os lados temidos e rejeitados por ela.
Ah! Como ela quis, sutilmente ou não, reprimir-me! O que foi pior: tentar reprimir-me com sutileza. Como me magoava, às vezes! Como me decepcionava, desapontava, ou me fazia envergonhar-me após um momento de euforia...
Mas, também ela me amava...à sua maneira. Um dia abraçou-me, dizendo: “Alma, Alma, o quanto vais sofrer, minha filha. O mundo não é belo com tu pensas. Estamos no vale de lágrimas, tu pareces não saber, minha filha. Mas tu verás. Tu perceberás que viemos a este mundo para sofrer pelos nossos pecados. Alma, Alma... A vida não é prazer, a vida não é uma festa, minha filha.”
Ah! Mamãe, tu nunca pudeste me convencer disso. Não, ainda não acredito em ti. Tenho pena de ti, mamãe. Tu não soubeste viver. Não soubeste amar, rir e gozar plenamente. Tu acreditaste num velho catecismo. Os padres...eles te enganaram, ou foram teus pais, meus avós portugueses, que o fizeram. Mamãe, mamãe, eu sinto tanto por ti! Talvez fosses muito infeliz com o Vati. Eu nunca soube direito, mas, talvez, ele não fosse o teu verdadeiro amor. Isso explicaria tudo. Essa tua amargura, esse teu estoicismo espartano, essa austeridade na casa compartilhada com Dioniso, o grande bode luxurioso que era o Vati. Só isso explicaria tanta contradição...
Quanto a mim, tomei o partido da alegria vital, e do prazer, representado por meu pai. Sinto muito, Mutti, nunca estive do teu lado. Talvez devesse ter ido mais fundo, para te compreender melhor. Mas agora é tarde, não te beijei o rosto em tua agonia, e não derramei muitas lágrimas ao pé do teu caixão, como o fiz, mais tarde, diante do caixão do velho. Eu sinto muito...
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Desperto mais uma manhã ao lado de Aline. Espreguiçamo-nos como duas gatas preguiçosas, mas logo quero tocá-la, acariciá-la um pouco. Preciso certificar-me de que ela é real, e não um produto materializado da minha fantasia. Então, beijo-a e logo me levanto para preparar o café da manhã para nós. Quero sempre trazer-lhe o café na cama. Quero servi-la. Ela se admira um pouco disso, pois estava preparada para ser somente uma modelo, e portanto, de algum modo servir-me em troca de um salário, ou cachê. Mas não, ela ainda não sabe o quanto vou amá-la. O quanto, portanto já a amo. Preciso tomar cuidado para não assustá-la com a voracidade da minha paixão. Aline é ligeiramente arisca, não muito. Tive sorte. Se ela não se rebelou, e não rejeitou as minhas carícias logo de saída.... a coisa está bem encaminhada. Como é bela! E como é graciosa! Ai! meu Deus, preciso controlar-me para não desenvolver ciúmes dessa garota em relação àquele seu namorado, o tal de Pedro. Mas... precisamos traí-lo. Sim, nós mulheres temos esse direito. Não sei porquê, mas algo me diz que é o que nós mulheres deveríamos sempre fazer. Isso representaria uma certa rebelião em relação à nossa subserviência ancestral aos homens. Porquê não? Oh! meu Deus, tudo isso são justificativas. O que me impulsiona é o meu desejo. Somente isso. Sou uma faminta...
Por outro lado, meu desejo reveste-se das tintas do verdadeiro amor. Sim, eu tenho tanto amor para dar!. Preciso derramá-lo ou ele me consumirá. Esta moça, esta mulher, é como eu, mas pode ser mais que um espelho. Terei todo cuidado para diferenciá-la do meu reflexo. Ela merece toda a atenção. Ela é delicada, feminina como poucas. Por isso escolheu essa profissão. Ela sabe, adora ser olhada, devorada mesmo com os olhos. Não, isso não é apenas profissional. Tem a ver com a sua libido, sua pulsão exibicionista. Quer dizer, o seu desejo!
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Aline já está enredada na minha teia. Percebo que já a seduzi completamente. Ela revela uma disposição voluptuosa em dar-se, em ser amada, admirada, acarinhada sensualmente. Quando demoro em tocá-la ela se aproxima, como uma gata, ronronante, e toca seu rosto, começando por sua testa, em qualquer parte do meu corpo, arbitrariamente, de maneira insólita. Se estou muito ocupada, tira por exemplo a paleta das minha mão e pegando-a nas suas, passa-as no seu rosto, nos seu cabelos, com um olhar lânguido, irresistível. Então, largo os pincéis, largo tudo e a abraço, conduzindo-a numa dança exótica, meio tango, meio pas-de-deux, ao nosso leito. Fico então a beijá-la, a lambê-la dos pés à cabeça, por horas. Depois detenho-me sobre o seu púbis, ralo, cuja penugem negra, macia, tem um cheiro peculiar, um perfume adorável, e banho-a com a minha língua, demoradamente. Titilando o seu clitóris, que desponta com uma cabecinha, de um pênis minúsculo, mas túrgido em toda a sua possibilidade. Fico enternecida com esse pequeno membro que quer mostrar-se potente, pobrezinho, e medito por um segundo na sua natureza ancestral, do tempo em que éramos unos, homem e mulher. Lembro-me que sempre me espantei com os mamilos dos homens e reparava, ainda na infância, como eles se tornavam tesos, nos peões sem camisa, quando lidavam com as rêses. Eles nunca me enganaram. Quanto aos seus grandes membros, sim, eu reparava neles, bem disfarçados sob as folgadas bombachas. Bem que eles me chamavam “chinoquinha”, entre eles, eu ouvi, algumas vezes. Talvez percebessem a minha atenção, a minha sensualidade que aflorara tão cedo. Não foi à toa que ocorreu aquele incidente com meu irmãozinho Rodo. Não contarei por hora, esse segredo... da minha infância. Quero concentrar-me em Aline, minha doce Aline, que agora dança o mais belo balé do mundo em minhas mãos. Como nos amamos! Sim, porque ela me ama, eu percebo. E não mais conseguimos disfarçar em público, agarradas, abraçadas. De mãos dadas a todo minuto. Por outro lado, percebo uma certa condescendência nos estranhos, somente talvez porque somos jovens e belas. Não ousariam chamar-nos por aqueles nomes pejorativos, que não repetirei, frutos da vulgaridade das mentes banais.
Sim, o que sempre me chocou foi a vulgaridade do homem comum. Prometi a mim mesma, nunca mencioná-lo, nunca sequer descrever o homem vulgar, nos meus escritos, nos meus poemas. Ele não entra em linha de conta. É como se não existisse. A minha vingança, sutil, é omiti-lo completamente. “Você vive numa torre de marfim”... dirão alguns. Não, a vida somente é verdadeira em seus termos ideais, e o mito a perpassa cotidianamente, sem que esse homem comum sequer o perceba. Como poeta sempre vivi em sintonia com o mito, percebendo a alegoria riquíssima dos acontecimentos aparentemente simples da minha vida, nada banais, pois que na minha vida o banal não existe, já que o desvelo, ao seu sentido mais profundo, em cima mesmo do momento. Tenho pena das pessoas que não sabem ler as entrelinhas de suas vidas, o significado oculto de tudo que lhes acontece, sem perceberem que a vida é muito mais rica para todos, e o herói e a heroína estão dentro de nós, assim como todas as grandes aventuras, até mesmo as epopéias.
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Aline revelou-me hoje, que continua seu namoro com Pedro, o que não chegou a me surpreender. Eu já previa isso. Eles tem se encontrado em dias alternados entre os dela comigo. Na verdade, houve dias em que esteve com ele... e comigo em seguida. Ela confessou-me que isso a erotisa duplamente. Deixar-se manipular por mim, após ter sido possuída por Pedro, menos de uma hora antes... Bem que eu percebia o cheiro e os resquícios do macho. Mas, eu também me erotisava com isso. Agora ela se abre e conta tudo. Ela costuma descrever para ele o seu idílio comigo e nossas ardentes tardes ou noites. Ele se excita e exige dela detalhes, de preferência obcenos. Está participando à distância, de uma espécie de ménage-a-trois imaginária. Agora quer me conhecer pessoalmente, já que faço parte, sem querer, de suas fantasias. Quer que nos encontremos, os três, num barzinho, que escolheu, para conhecer-me. Garante, disse ela, que não será invasivo, e que me respeitará. Manda dizer que me admira como artista e que tem imensa curiosidade em conhecer-me, pelo que Aline tem revelado, e pela felicidade crescente dela, que não lhe passou despercebida, e sobretudo não os afastou, e sim uniu-os ainda mais. Assim, dissera ele.
Aceito, intrigada. Como será esse Pedro? Aline mal o mencionava, essa é que é a verdade. E essa discrição de sua parte, em relação a ele, faz-me supor uma enorme cumplicidade entre eles. Como não pensei nisso antes? Bem, vamos lá. Aceito o encontro, e ainda pego-me arrumando-me e enfeitando-me com esmero, para esse evento.
No dia e hora combinados, encaminho-me para o tal barzinho, e ali encontro-os já instalados numa mesa, de mãos dadas. Ruborizo imediatamente contra minha vontade, ao vê-los assim. Pedro levanta-se e puxa gentilmente a cadeira para mim. Reparo que é um belo homem de seus trinta e poucos anos, de cabelos pretos anelados e barba espessa, curta, cerrada. Um rosto, assim... de fotógrafo. Ou de voyeur ? Esse pensamento arrepiou-me. Senti-me imediatamente observada, medida, eu diria mesmo devassada pelo seu olhar observador. Ele sabia tanto de minha intimidade, pelos relatos de Aline, desde o seu primeiro dia de pose, das impressões de Aline sobre a minha pessoa, naquele primeiro encontro, do qual ela fizera para ele um relato completo que o intrigara, que isso me deixava agora, ali, terrivelmente exposta. Sua imaginação já percorrera o meu corpo todo, e agora, ele ali, naquela mesa conferia-me sob as minhas roupas, eu percebia. Sentia-me nua, e instintivamente apertava meus braços contra os meus seios, os cotovelos sobre a mesa e as mãos tocando o meu longo pescoço. Que bobagem! Sou uma adulta, preciso me lembrar disso, e não um adolescente. Ele, o macho, não me intimidará. Eu sei como eles são, os homens... Ah! Aline, porque você fez isso com a gente? Porque aceitei, também, esse encontro, que me coloca numa situação tão vulnerável? Esse rapaz já conhece tanto sobre mim, e eu quase nada sobre ele. Que sei eu do seu caráter? É verdade que seu aspecto não me desagradou, muito menos o seu olhar, em que vislumbrei uma certa doçura, e muita inteligência. Mas...o que quererá ele?
Após a apresentação e as primeiras palavras de conversação gratuita, canhestra a princípio, Pedro começou logo o seu jogo. Um jogo de provocações, na verdade. Perguntou-me pelo meu namorado, ou marido, e ouviu a revelação da minha viuvez precoce. “Ah!” exclamou ele. “E depois?’- “Depois o quê?” repliquei eu. “Não houve outros homens?” “Ah! sim, houve, alguns”, eu respondi com um ar casual.
Pedro pediu bebidas. Parecia acreditar que o álcool o ajudaria a arrancar-me a verdade que procura Mas, o que procura? Ele é esperto. Faz pausas desinteressadas para disfarçar o caráter de interrogatório que essa conversa pode tomar. Logo mudou o jogo, e começou a exercitar o seu charme, tornando-se galante comigo, ao mesmo tempo que intensificava as carícias em Aline. Percebo o seu jogo. Ele quer excitar-me, ou provocar o meu ciúme. Sim, ele tem a fantasia tão comum nos homens, da ménage-a-trois, e já percebo o seu desejo sobre mim. Ele me achou bonita, claro, e gostaria de ver-me na sua cama, juntamente com Aline. Nós mulheres somos alimento, somos iguarias para o homem. Essa é que é a verdade. Como disse André Breton: “A mulher é o alimento corporal mais elevado”. Sim, é preciso aceitar isso, até mesmo com orgulho. E com volúpia. Aquela situação começava real mente a instigar-me. E eu não rejeitaria a idéia dessa relação a três, se de repente, Pedro não começasse a revelar o seu machismo, e a afirmar sua posse sobre Aline. Começou a agir assim, logo que percebeu que eu era uma mulher inteligente, talvez mais inteligente que ele. Ah! Isso ele não podia suportar...
Estabeleceu-se afinal uma situação de antagonismo. Pedro, percebendo que eu não seria manipulável, uma mulher-objeto, e que meu amor por Aline tinha ultrapassado o ponto aceitável (para ele), isto é, era perigoso por ser muito mais que simples desejo, passei a ser uma espécie de ameaça realmente, a rival que ele, no início, não temera. A guerra estava declarada.
Levantei-me na primeira oportunidade, antes que começassem as hostilidades. Suas últimas palavras, contudo, ressoariam mais tarde, dolorosamente, em meu espírito: “ Alma, você precisa de um homem que a dome, ou você perderá logo logo a sua beleza.”
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Aline encontra-me no ateliê, algumas horas depois. Está estranha, olha-me meio de esguelha. Quer saber se estou magoada, se Pedro machucou-me muito com suas agressões veladas. Está em cima do muro. Não quer perder-me, nem a ele também. Agarro-a subitamente e prenso-a contra a parede, num gesto decidido, mas nem por isso viril. Beijo-a ardentemente, e agarro-lhe os seios com força. Ela geme, assustada. Eu grito-lhe:
-“Tu também pensas, Aline, que eu sou menos mulher porque te desejo? Não vês que eu te desejo assim, porque te amo? Quem é aquele homem, para me julgar? Que sabe ele do meu amor, do nosso amor? Ai! Aline, eu sofro. Eu sofro de te amar tanto assim...e nada poder. Não poder ser completa para ti. De ter que dividir-te com aquele idiota. Ah! Quase fiz o seu jogo!... e pensar que acreditei, por momentos, que poderia dividir-te com ele... na mesma cama!. Não, não é possível. Quero-te inteira, Aline, e ouso pedir-te agora que o deixe. Venha, venha, Aline, vamos para o nosso leito. Eu te possuirei, de algum modo! Eu te possuirei!
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Ai, Rodo, como me lembro de ti. Nestes dias de depressão, transporto-me em espírito para a nossa estância, para o nosso pomar. Ali, sob aquela macieira onde fomos flagrados, nuzinhos, tão crianças. Eu tinha a mão sobre o teu pequeno membro... teu pintinho, como dizíamos. E a tua mão sobre a minha conchinha, eu a sinto ainda hoje. Se tivéssemos tido tempo, consumaríamos o nosso maravilhoso pequeno incesto. Teria sido uma solução? Às vezes penso que sim. Eu não me sentiria para sempre assim carente, incompleta. Eu não amaria assim mulheres, tanto quanto a homens, e minha vida seria, talvez, mais fácil. A minha vida amorosa, pelo menos.
Bem, não posso me queixar. O Vati defendeu-nos, filosoficamente, e com o seu maravilhoso senso de humor minimizou os danos. Neutralizou o drama que a Mutti fez do caso, depois de traumatizar-nos tanto com aquele flagrante humilhante. Nunca esquecerei que fomos arrastados pela mão, os dois, peladinhos e chorando, obrigados a cobrirmo-nos com a outra mão, pequenos Adão e Eva, expulsos do paraíso, afastados da nossa macieira querida, que ostentava o nosso coração e iniciais ingenuamente gravados.
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Aline está dividida. Perdeu sua espontaneidade comigo. Parece sentir-se culpada agora, na nossa relação. O Pedro conseguiu envenenar o seu espírito. È o seu recurso, sua arma desleal, para arrastá-la para si. Eu sei: “no amor e na guerra, vale tudo”, diziam os antigos. Mas, ai, não posso lutar com armas assim. Vou perder-te, Aline. Estou te vendo escorrer entre os meus dedos, e sinto o vazio instalar-se no meu peito.
E o meu amor? Ele não deveria bastar-me? Ah! Não, isso não existe. É ideal demais. Quero-te inteira, Aline, quero teu corpo, tua beleza, tuas carícias. Teu cheiro Aline, teu perfume! Vou morrer à mingua, meu corpo sofre, como a minha alma!
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Enfeito o ateliê com flores. Aline vem encontrar-me. Sei que vai despedir-se. Ela chorou muito ao telefone. Diz que precisa ver-me uma vez mais. Eu sei que me ama, e a espero com as flores que o meu amor merece.
Ao tocar a sineta, abro imediatamente a porta e ela cai-me nos braços, aos prantos. Agarramo-nos desesperadamente, como se mãos invisíveis tentassem nos separar. Nossos beijos são ávidos, nossas línguas se enroscam, nossas lágrimas se misturam. Jogamo-nos no chão, arrancando nossas roupas, no centro do ateliê, em meio às telas, num ardoroso sessenta e nove. Queremos entrar uma dentro da outra. Ah! Porquê querem nos separar?
Não deixaremos. Não deixaremos! Entraremos uma na outra. Seremos uma só! Ai!
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Estou no fundo, em meio às trevas. Meu corpo está pesado como meu espírito. Movo-me lentamente nas sombras, no subterrâneo da alma.
Volto à estância, em pleno inverno dentro de mim. Aqui sopra o minuano frio que corre no Pampa, com a minha chegada. Sinto que trago o pampeiro comigo. Ele me segue. Arrasto-me em meio às brumas, entre as árvores do meu pomar. Procuro a minha macieira. Preciso chorar, meu rosto colado ao seu tronco, sentindo com meus dedos a cicatriz do coração com os as nossas iniciais gravadas. Rodo e Alma.
Nosso casarão está deserto, a sala vazia, o piano mudo. Perambulo à noite pela nossa biblioteca, olhando as lombadas das obras outrora tão queridas. Um instinto me faz erguer a mão em direção a um grande tomo, e puxá-lo, pesadíssimo: “AS AVENTURAS DO BARÃO DE MÜNCHAUSEN”, ilustrado por Doré, e abri-lo a esmo, justamente numa página ilustrada: o barão, alçado no ar, de um poço de areia movediça, com seu cavalo abarcado pelas suas pernas, pela força do seu braço que o puxa pelo rabicho de sua nuca. Ó visão inspiradora! Ó emulação salvadora! Sinto que vou puxar-me igualmente pelo cabelos, também para cima, para cima!
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Volto a São Paulo, ao meu ateliê nos Jardins, ainda muito lenta, como em começo de convalescença. Ao entrar, a visão dos meus quadros, das muitas telas, prontas ou inacabadas, me consola. Como amo este ateliê! Este pequeno universo que construí sozinha (se é que isso é possível). Na verdade, ele é fruto da minha bagagem de infância, de sonhos, e de meu ideal de arte e beleza, herdados do Vati, sonhador como eu, mas que tinha, talvez, os pés mais firmes no chão da nossa estância. Ah! Vati, tu voavas era na música, ao teu piano que dedilhavas tão bem! Ainda ouço as sonatas, Vati, e os prelúdios, mas não mais as sinfonias cuja marcialidade agora me repugnam....
Torno a colocar os meus CDs preferidos no aparelho, escolhendo primeiramente o Trio em mi bemol maior, Opus 100, de Schubert. Ouvindo novamente essa obra-prima, começo a compreender algo inexprimível dentro de mim mesma, algo que atribui sentido à minha paixão perdida, e me reconcilia comigo mesma, nesta espécie de fracasso que senti em minha vida, com essa experiência à primeira vista desastrosa. Sei que vou desfiar em seguida uma série de obras musicais queridas, chegando afinal àquela “Ária da Campainha”, da Lakmé de Léo Delibes, que produz em mim uma estranha identificação com a estória da pequena jovem pária da Índia, que atravessa a floresta fazendo soar o seu sininho. Esta ária cantada pela personagem Lakmé, na interpretação superlativa da soprano chinesa Ondine Diu Ber, me deixa como que purificada, limpa espiritualmente, talvez pela pura ação da beleza, em meu espírito. Somente a grande música é capaz de agir assim, despojando-nos de nossas paixões talvez supérfluas, pela ação catártica daquelas já sublimadas pela Arte. Para finalizar coloco no aparelho uma versão para piano e grande orquestra sinfônica, do Feitiço da Vila, de Noel Rosa. Isso acaba de me fazer querer viver novamente, sorrir, desabrochar... Pressinto que, em menos de um mês, na certa, voltarei a amar .
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Lanço um quadro novo, uma imensa tela cuja superfície imaculadamente branca me sugeriu uma espécie de virgindade selvagem, se posso assim dizer. Estou novamente lançada à uma aventura que nunca me decepcionou. Tudo é possível no espaço ideal de uma tela, onde o espírito se funde com o acaso para permitir todos os vôos. Neste estado de exaltação, altamente prazerosa, passo a achar tudo o mais, fútil, menor, mesmo as minhas mais dolorosas e recentes paixões. Mas... não renego nada. Posso amar Aline agora já sem dor. Posso amar tudo e todos, bastando que me mantenha fiel à minha arte, nunca a renegue ou me afaste perigosamente dela, ou de mim mesma como o fiz. Reconcilio-me com o imenso privilégio de ser artista, esse ser caro aos deuses, a ponto deles, amiúde o atormentarem, para testarem seu amor... e sua coragem. Sim, coragem é a suprema virtude exigida do artista, para criar e para viver, eu sei. E ai daqueles que cospem e blasfemam sobre o dom supremo de criar, espelho da divindade. Esses sim, não escapam ao seu próprio Hades interior. Esse é o segredo da vida, e da Alegria, nessa nossa passagem... Mas, chega de filosofar. Quero viver, viver, amar e gozar novamente, usufruindo os dons com que fui cumulada .Ah! alegria criadora, volto para ti!
Após algumas bravas pinceladas, sou obrigada a interromper o trabalho: o interfone toca insistentemente.
FIM
04/06/2004