segunda-feira, 19 de novembro de 2007

As pequenas flores do riso ( de Alma Welt)

(dos Contos Secretos, de Alma Welt)



Não suporto mais. Preciso voltar ao sul. Este apartamento, que eu chamo de ateliê, dentro de um condomínio burguês, em plena Oscar Freire, no meio dessas lojas sofisticadas, tudo isso começa a me enojar. Eu sei, meu estúdio é belo, eu o fiz assim. Mas nada disso tem a ver com as minhas raízes, que estão no campo, isto é, no Pampa, no meu casarão, no meio do meu jardim, do meu pomar e do vinhedo do meu avô; que me esperam, eu sei. E sei, porque se me ausento por longo tempo noto-lhes o ar de decadência. E se ali demoro, vejo tudo reflorescer, vivificar-se. Rôdo não se importa tanto: ele não pára, suas ausências são mais prolongadas que as minhas, ele roda o mundo. Ele diz: “Alminha, por quê perdes tempo nessa cidade? Ela te engolirá! São Paulo não é uma cidade, é um vício, uma dissipação. Prefiro os meus cassinos e pousadas, interligados pelas mais belas paisagens do mundo, que percorro, com o rosto ao vento, no meu Porsche. Por quê não vens comigo? Eu te farei viver outras aventuras. Lembras-te de quando éramos crianças? Eras tão curiosa e aventureira quanto eu, e devassávamos nosso pequeno pampa, num raio de pelo menos cinco quilômetros em torno do casarão. Alma, estás te desperdiçando, o que esperas? O prêmio Nobel da Literatura Sedentária? Vamos, venha comigo!”

Eu me abracei a Rôdo, e o cobri de beijos. Mas, isso foi sempre assim! Cada vez que o meu irmãozinho me dá um conselho, ou se estende num comentário sobre mim, sobre nós, eu me enterneço e beijo-o, beijo-o, até ele se cansar e me afastar, rindo, e dizendo-me “pegajosa”. Ai! Rôdo, como alguém pode ser tão exemplarmente viril, como tu? Eu te vi puxar uma faca, uma vez, quando ameaçado por um peão que me desrespeitara, e não demonstravas medo no olhar, mas, sim, fúria. E eu, entre sincera e brincalhona, exclamei o clássico “meu herói!” e cobri-te de beijos. Naquela noite me possuístes, e eu me senti tua para sempre. Que mais posso querer? Eu sou, ou fui, a amada de meu irmão-herói, que aventura mais posso querer?

Entretanto faço as malas, mais uma vez, para retornar às fontes. Preciso daquelas águas, daquelas flores. Minhas “pequenas flores do riso”, como eu as chamo. Ali, naquele jardim plantado por minha mãe, e sua melhor herança, as crianças parecem estar no seu elemento, seu habitat. Anseio olhar mais uma vez para Patrícia, Pedrinho, Hans e Christian, meus adorados sobrinhos, por ali, correndo, colhendo flores e as desperdiçando, como animaizinhos brincalhões, como filhotes. Ali, assim, eu tenho certeza de que a vida é bela, e que meu coração sofre apenas pelo progressivo esmaecimento dessa imagem, desse manancial.. A vida é um afastamento gradativo de uma fonte inefável de beleza: a Era do Sonho de nossa infância; e dói, dói estar tão consciente dessa viagem, sem volta, a não ser no mesmo sonho, prerrogativa divina, da ternura de Deus, que ele nos legou. Ele nos deu o Sonho, não perderemos nada, no final. E regressaremos, por fim, às pequenas flores do riso.
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22/08/2005

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