sábado, 27 de outubro de 2007

Entrevista com ALMA WELT

CAFÉ LITERÁRIO entrevista a poetisa e musa gaúcha

Nosso repórter, escalado para entrevistar esse novo fenômeno da nossa literatura, a contista e poeta (além de pintora), Alma Welt, gaúcha radicada em São Paulo, voltou com um ar meio siderado, quase em estado de choque, e adentrou a nossa redação com um sugestivo assobio. Contou-nos que foi difícil, a princípio, deslanchar a entrevista, pois a beleza da moça é, no mínimo, perturbadora. Descreveu-nos uma mulher de 28 anos, alta, muito branca, loura “luminosamente” natural, “rasgados” olhos verdes. A perfeição de sua pele, sem uma única mancha ou sinal, despertou no nosso pobre repórter aquela comparação em desuso: “pele de alabastro”. Além disso, a boca da moça, seus lábios cheios na medida certa (há uma medida?) eram de uma beleza “hipnótica”, como seus olhos verdes (de gata?). Tivemos que calar o entusiasmo do nosso repórter, exigindo dele, logo, a entrevista por escrito. Suspeitamos que o infeliz está irremediavelmente apaixonado. Tivemos que mandá-lo pra casa mais cedo, pra tomar um banho frio. Mas vamos ao que interessa. A entrevista:
CL: Alma, posso chamá-la assim ? É o seu verdadeiro nome, estou certo? Lendo seus livros temos a impressão de ser um pseudônimo, de tão adequado ao seu conteúdo. Welt ( mundo, em alemão) nos remete ao Anima Mundi, de Jung. O que você tem a dizer sobre isso?
ALMA: Meu pai já era um admirador de Jung, desde sua juventude, e é possível que tenha pensado nele ao batizar-me com este nome, já que o nome de família é Welt. Meu pai esperava muito de mim, não sei bem porquê, já que sou a caçula apenas das mulheres. Tenho duas irmãs mais velhas e um irmão dois anos mais moço, Rodolfo (Rodo), que é o que mais aprecio, embora seja bem diferente de mim.
CL: Percebe-se isso no seu conto “O Testamento”, aliás, belíssimo. Mas a personalidade do rapaz parece apenas esboçada nesse conto. Para dizer a verdade, uma espécie de Dimítri Karamázov, muito sintetizado. É intencional essa analogia não explícita? Pois a sua própria figura, Alma, no conto nos remete ao irmão caçula Aliocha, enquanto o seu Monsenhor Ângelo é nitidamente o stáriets Zósima. Estou certo?
ALMA: Sim, sim. É possível. Mas foi um processo inconsciente. Não pensei nisso quando escrevi o conto. Talvez as semelhanças sejam devidas à estrutura arquetípica da própria estória e dos tipos humanos que a compõe. Quando se escreve assim como eu, num fluxo espontâneo e contínuo de inspiração, ocorre que os personagens, naturalmente, ocupam posições demarcadas, como peças num tabuleiro invisível existente na vida. Daí, também associarem meus contos à psicologia junguiana, que conheço pouco.
CL: Alma, no entanto é notável, na sua maneira de escrever, a presença de uma cultura livresca, assimilada. E surpreendentemente, da natureza clássica dessa cultura. Como você a adquiriu? Você é uma grande leitora?
ALMA: Bem, eu li alguns clássicos. Não foram tantos assim, mas os li bem. Posso dizer que conheço bem a Ilíada e a Odisséia de Homero, mas por traduções, é claro, além dos líricos gregos de Safo a Píndaro. Conheço a literatura de Dostoiéwski e de Edgar Allan Poe, além de Hoffmann, meus preferidos. Mas não cabe aqui citar todos os autores que li. Meu pai era um grande leitor. Um erudito. E tinha uma grande biblioteca em nossa casa, na estância. Aliás, essa biblioteca ainda existe, como tudo o mais em nossa casa, que permanece como ele a deixou, de uma maneira um pouco mórbida, na verdade.
CL: A propósito, Alma, nota-se uma grande nostalgia da casa paterna em certos poemas seus, que me lembram o tom leopardiano do “Vaghe stelle dell’Orsa”...sul paterno giardino scintillanti”.
ALMA: Sim, sim, é bastante arguta essa tua ilação. Realmente, eu mesma pensei nisso a posteriori.
CL: Seria Leopardi, também, uma das suas influências literárias?
ALMA: É possível. Mas não estou preocupada. Sempre se sofre influências da grande arte ao nosso redor. Mas creio que o importante é o timbre e o teor da assimilação dessas influências. Eu amo a literatura, bem como a Pintura e a Música clássicas, e vivo imersa num mar de referências que me sufocaria se não estivessem naturalmente digeridas. Elas me perspassam como os raios de sol atravessam a atmosfera, agindo sobre ela e aquecendo-a. Desculpa-me a imagem um tanto pretensiosa...
CL: Não, Alma, está perfeitamente expressa. Concordo com você . Percebe-se essa assimilação perfeita de sua herança cultural. Você não parece pedante em sua literatura, mesmo quando cita autores famosos como Nietzsche, por exemplo. Aliás, percebe-se que você o leu bastante, ou gosta muito dele. É certo isso? Fale-me da “alegria mais profunda que a dor”.
ALMA: Sim, devo reconhecer que Nietzsche me impressionou muito. Já era um preferido do meu pai., talvez por sua ascendência germânica. Tu notaste a aposta que faço na profundidade da alegria, que é o aspecto mais simpático de sua doutrina. Mas nada de super-homem, nem de “vontade de potência”. Essas coisas são perigosas, embora deva reconhecer que foram distorcidas em seu propósito inicial, pelos nazistas com a colaboração da irmã dele, Elisabeth. Meu pai me falava sobre isso. Devo frisar aqui que meu pai era aristocrático mas não nazista. Aliás, ele tinha horror ao nazi-fascismo, o que já não se pode dizer de seus pais, meus avós. Mas a leitura de Dostoiévski me despertou a simpatia pelos pobres, humilhados e ofendidos, e fui procurá-los também na literatura brasileira e os encontrei em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, que li bastante. Aliás devo dizer, que também para mim, como para muita gente, o Grande Sertão: Veredas é o maior livro do mundo, junto com os Irmãos Karamásovi.
CL: É curioso, Alma, isso tudo vindo de uma escritora com apenas 28 anos. Você não é muito contemporânea, você sabia? E além disso, você acaba de dizer, em outras palavras, que conhece o povo e sua miséria através da literatura, quando basta olhar em torno, neste nosso país, para depararmos com a pobreza e seus horrores. O que você me diz disso?
ALMA: Tu não poderias esperar de mim que me metesse na periferia para conhecer o povo, mas andei na caatinga nordestina, e narrei isso num conto: “Na trilha dos menestréis”. E você deve levar em consideração a intuição do artista. Um poeta ou escritor não precisa ter estado na África para descrevê-la e contar maravilhosas aventuras passadas em seus desertos ou em suas savanas. Há grandes exemplos disso. Meu pai, quando criança, lia os contos de um escritor alemão provinciano que nunca saiu de sua aldeia na Bavária, e escrevia, antes da Segunda guerra, best-sellers populares ambientados no Far-West americano, estórias vívidas e verossímeis de índios pele-vermelhas e cowboys, que eram exportadas até para os Estados Unidos. Os americanos as adoravam. Poderia, também, citar o famoso poema de Emily Dickinson: I never saw a moor...( eu nunca vi uma charneca )... (bem posso imaginá-la).
CL: Mas, Alma, não quero que pareça uma crítica, que, afinal, não é minha função, mas você não usa o povo brasileiro, como material, ou mesmo pano de fundo, a não ser num ou dois contos seus, no “Meu pequeno vizinho”, lindo conto, e singelo, parecendo uma crônica, e no belíssimo “Na Trilha dos Menestréis” O seu Jeová, o negro do conto “A Harpia”, a meu ver a sua obra prima, é um tanto idealizado, embora se perceba que isso é intencional, dado o caráter simbólico do personagem, dentro de um conto que é, todo ele, uma magnífica alegoria. Mas, mesmo naqueles, você não focaliza propriamente a pobreza, a privação, e a injustiça da nossa monstruosa distribuição de renda.
ALMA: Realmente, CL, mas parece-me que tu estás me cobrando uma tomada de posição política, quando já fiz, há muito tempo, minha opção por uma tomada de posição filosófica. Estou interessada, sobretudo em temas psicológicos e essenciais da condição humana, como bem disse o meu prefaciador, o pintor e poeta Guilherme de Faria. Ele, nesse prefácio, enumera esses temas, segundo a sua visão bastante arguta.
CL: Mas, Alma, conte-nos, então, como você foi descoberta por um pintor famoso, que, recentemente, revelou-se poeta de cordel. Como você conheceu o Guilherme de Faria?
ALMA: Ah! Isso foi um encontro providencial, que contei no meu conto “Anagramas”. Ele é um amigo da grande gravadora Renina Katz que conheci um pouco antes e da qual fiz o primeiro anagrama.
CL: Sim, Alma, aquele espantoso anagrama em que aparece toda uma teogonia órfica. Admirável e instigante, lembro-me dele. Mas, continue.
ALMa: Pois é , Guilherme tendo tomado conhecimento através da Renina, do anagrama dela, feito por mim, e tendo tido um sonho enigmático, a princípio, procurou-me para que eu o ajudasse a desvendar esse sonho. Fiz o seu anagrama, que, afinal, foram cinco anagramas completos, que decifrados, explicaram o significado do seu sonho de maneira surpreendente até para mim. A partir disso tornamo-nos amigos.
CL: Perdoe-me a indiscrição, Alma, mas apenas amigos? O seu conto sugere muito mais, não é verdade? Não terá sido o começo de uma paixão?
ALMA: Realmente, não posso negar, mas prefiro não falar disso.
CL: Mas, Alma, eu insisto: você está apaixonada?
ALMA: Pode-se dizer que sim. Estou feliz. Ele é um homem maravilhoso, e um artista famoso, que tem apenas uma parcela de sua imensa obra conhecida do público. Além disso ele é um fantástico poeta de cordel, que escreve estórias profundas sobre o pano de fundo da caatinga nordestina, com espantosa autenticidade, visto não ser nordestino e nem sequer ter ascendentes nordestinos. Ele é paulista de 400 anos. O que mais uma vez comprova aquela tese da intuição do artista.
CL: Sim, estou disposto a concordar com você, Alma. E também a marcar uma entrevista com o Guilherme. Mas previno-a que farei perguntas indiscretas a ele, sobre você. Aceita?
ALMA ( rindo, e que bela risada ): Sim, CL, aceito. Sei que ele só dirá coisas bonitas a meu respeito.
CL: Quando você deu essa risada, agora, lembrei-me da gargalhada da Greta Garbo na Dama das Camélias, acompanhada de um glissando do piano que alguém tocava nessa cena (quando ela disse: “Pode ser o grande amor da minha vida! ) Você certamente viu esse filme...
ALMA: Sim, e lisonjeia-me a tua comparação. Nunca tinha pensado em ter qualquer semelhança com ela.
CL: Sim, Alma, há, e impressionante. Não que vocês se pareçam fisicamente. Ma, o timbre de suas feminilidades, e a presença. Bem, não quero encabulá-la.
ALMA: Obrigada, CL. Tu és gentil. Mas, longe de mim...
CL: Vamos então, mudar de assunto. Você reparou que nenhuma vez você cita a televisão ou sequer um aparelho desses nos seus contos? Não é insólita essa omissão, numa época como a nossa?
ALMA: Não, não mesmo. Como disse, estou interessada no essencial. Mas, infelizmente, não é verdade que eu não cite a televisão nenhuma vez. Citei-a, uma única vez, até agora, no conto “O Violino de Mozart” onde a personagem (eu mesma) vê o seu amado Gino numa entrevista na televisão. Mas eu poderia passar sem essa. Seria até mais interessante a omissão total desse veículo, como para tornar os meus contos mais atemporais. Além disso, a televisão já é suficientemente falada e discutida.
CL: Mas, Alma, sejamos sinceros, se a Globo, por exemplo, quisesse um texto seu para um caso especial, ou para o Brava Gente, você não aceitaria?
ALMA: Aceitaria, claro. Nenhum momento fiz qualquer crítica a essa mídia, e eu mesma já derramei muitas lágrimas com algumas novelas ou mini-séries. A sua versão do Grande Sertão: Veredas em mini-série foi admirável. Bem com O Primo Basílio e Os Maias. Gostei muito, também, das versões para a televisão das peças do grande Ariano Suassuna: O Auto da Compadecida e A Mulher Vestida de Sol. Foram primorosas e endossadas pelo próprio autor, segundo se soube.
CL: Então, Alma, mudemos mais uma vez de assunto. Já que você tem opiniões bem definidas sobre tudo, ou quase tudo. Estou enganado?
ALMA (rindo): Não estás enganado. Quando se tem uma visão do mundo, os detalhes técnicos, podem às vezes não importar. Se tu me perguntares sobre petróleo, vou logo dizendo que emporcalhou o mundo, e não adiantará tu me falares nos grandes interesses das grandes companhias e a relação desses interesses com a economia mundial. Trata-se a meu ver, de um combustível obsoleto e poluidor, que poderia há muito tempo ter sido substituído pelo hidrogênio, retirado da água do mar, fonte inesgotável, ou ainda pela energia elétrica através de baterias giroscópicas. Bastava para isso, vontade política, ou mesmo uma superação da chamada estupidez humana.
CL: Alma, você agora me surpreendeu. Então você tem opiniões técnicas e políticas, ou pelo menos ecológicas. Vejo que por aí há um veio a ser explorado.
ALMA: Não, prefiro que não, se tu não te importares. Sinto-me quase infantil quando falo dessas coisas. Sou apenas teórica e um tanto idealista nesse campo, e não gosto me sentir assim, já que não atuo de maneira prática nessa área. Sou apenas uma artista: pintora e poetisa.
CL: Sim, Alma, você é uma das últimas a aceitar esse epíteto: “poetisa”, que soa como uma coisa antiga, da época das “diseuses” e de Florbela Spanca, ou mais tardar de Cecília Meirelles, com quem, aliás, a sua poesia tem um visível parentesco. Você as aprecia?
ALMA: Sim, muito. Florbela Spanca especialmente, pela intensidade de sua paixão. Mas ela tem um tom mórbido e ressentido contra a vida, com o qual não me identifico. Ela me soa como uma mulher apaixonada e delirante, mas infeliz. Enquanto que eu sou apaixonada e feliz, apesar de algumas quedas, acidentes de percurso. Mas até hoje sempre subi, sempre saí do buraco, para alcançar novamente a alegria, sem a qual não poderia viver.
CL: Sabe, Alma, esse é o aspecto que mais me impressionou no seus contos e nos seus poemas. Essa aposta na alegria. Confesso que antes de conhecer a sua obra, eu não acreditava que a alegria desse muito assunto. Acreditava naquele axioma: “os povos felizes não têm história”. Mas você me fez ver uma certa profundidade e riqueza na alegria e na felicidade, e entender aquele verso de Nietzsche que você cita; “ a alegria é mais profunda que a dor”. Devo agradecer a você por isso. Mas ainda tenho a curiosidade de saber , como uma moça tão sensível como você, a julgar pelos seus textos, e mesmo pela sua pintura, pode ser feliz num mundo como o nosso. Percebe-se nos seus contos que você derrama lágrimas a torto e à direito, que você é muito chorona. Estou certo?
ALMA(sorrindo): Sim, é verdade. Derramo lágrimas com facilidade, mas se você reparar bem, quase sempre por comoção com a beleza, com o amor , com a arte. Lágrimas de felicidade, na maioria das vezes. Um sentimento do mundo que inclui, em mim, uma aposta na beleza e na grandeza do Homem. Não sou uma pessimista, e me comovo positivamente com o ser humano. E convivo intensamente com os deuses.
CL: Sim, Alma, é espantoso, nos seus textos como você parece conviver com eles, dentro de você, embora de maneira psicanalítica, como é possível na nossa época. Mas percebe-se que você se relaciona de maneira perturbadora, para você mesma, com suas supostas encarnações passadas, às quais você parece temer ou reagir, o que aumenta o mistério e o suspense de alguns contos como aquela maravilhosa “ Trilogia de Adèle”. Será isso uma técnica literária para fisgar o leitor? eu me pergunto.
ALMA: Se isso é uma pergunta, só posso lhe dizer, que sou absolutamente sincera, na minha arte. E sobretudo expontânea. Meu texto é fluente, nada premeditado, e penso que por isso posso incorrer freqüentemente numa certa ingenuidade. Não descarto essa possibilidade, disso que o meu prefaciador , o Guilherme chamou de “candura”. Mas, que eu saiba, ela é uma virtude, como ele muito bem colocou. Não devo me envergonhar dela, mesmo sendo uma escritora, não é mesmo?
CL: Bem, queria agora mudar o rumo da nossa conversa para abordar um aspecto que me intriga em sua literatura: o caráter sensual e mesmo erótico, freqüentemente explícito de alguns contos e poemas seus. Quero comentá-los porque eles me agradam. Vejo em você, sob este aspecto, uma alma pagã, bastante livre no domínio sexual, embora assombrada por outros espectros, como a sombra do mal, difusa, e a presença de encarnações passadas, nem sempre bem recebidas, e sim temidas.
ALMA: Surpreende-me essa tua captação tão arguta de um aspecto tão íntimo da minha natureza literária (e pessoal também, claro). E já que tu queres falar disso, posso apenas dizer que essa liberdade, mais do que assumida, é inerente à minha natureza, de maneira instintiva, desde a minha infância, para escândalo da minha mãe, que quis de todo modo reprimi-la, sem conseguir, claro. Eu falo sobre isso no meu conto “As Férias da Infância da Alma”, dos Novos Contos. Devo dizer que gosto muito do erotismo e considero que ainda não me dediquei a ele, verdadeiramente, na literatura. É possível que eu ainda escreva um livro de contos realmente erótico.
CL: Como Anaïs Nin, por exemplo? Você leu o seu “Delta de Vênus”?
ALMA: Sim, mas achei insatisfatório. O meu livro será mais explícito e escabroso, espero.
CL: Puxa, estou curioso e ansioso para lê-lo (risos). Mas diga-me, Alma, você leu o Marquês de Sade? Você o cita, num certo conto, mas de maneira sumária e genérica.
ALMA: Sim, eu li o Marquês. Mas o seu “120 Dias de Sodoma” eu joguei fora. Aquilo era sórdido demais e me chocou. Quanto aos outros livros como Justine, Filosofia da Alcova, O Marido Complacente, etc, apreciei certos aspectos. Mas realmente, não é o meu favorito. Prefiro, por exemplo Choderlos de Laclos, do “Ligações Perigosas”.
CL: E Henry Miller, você o leu?
ALMA: Sim, e gosto muito dele, mas não justamente das suas descrições eróticas que são muito grosseiras com a figura da mulher. Compreendo a revolta de June, contada por Anaïs Nin no seu maravilhoso Diário. June, aquela linda mulher queria, e merecia ser verdadeiramente tratada como musa, e Henry se recusava a isso. E ele suspeitava que ela se prostituíra para arranjar-lhe o dinheiro da viagem para a França. Ora, isso não importava, ou fazia dela, no mínimo uma espécie de “prostituta santa”, que ele não soube apreciar. Era um terrível machista, no fundo. Já Anaïs, sim, soube apreciar o mistério da beleza tão grande daquela mulher, a ponto de apaixonar-se por ela, de maneira mais profunda e sensível do que ele. Mas parece que ela acabou também rejeitada pela June, depois de um breve caso entre as duas, interrompendo uma maravilhosa cena de cama.
CL: Alma, a propósito, você escreveu um livro de poemas sáficos, como você diz, o “Narcísicas”, de surpreendente lirismo para os nossos tempos. Soa na verdade, como uma poetisa grega antiga, dos tempos da musa de Mitilene. E depois, o seu livro de Sonetos repete a descrição dessa paixão, mas de outra forma, aliás muito interessante, pela progressão da estória através da seqüência
dos sonetos. Eu pergunto: essa estória é real? Aconteceu com você? Aline existe?
ALMA: Não gostaria de falar sobre isso, mais do que já falei na própria poesia, nas Narcísicas, e nos Sonetos. Foi um caso muito doloroso, mas que eu contarei também num conto, que aliás, já estou escrevendo.
CL: Mas, Alma, seus leitores vão querer saber um pouco mais, desde já, sobre essa misteriosa Aline. Você não poderia comentar alguma coisa sobre ela?
ALMA: Já que tu insistes, direi apenas que esse caso quase me derrubou. Entreguei-me demais a esse amor, como os leitores poderão perceber nos meus poemas, e isso quase me foi fatal. Ela retirou-se, subitamente, da minha vida, o que me tirou o chão e o alento. Desci muito fundo, no inferno da alma, e tive que fazer um esforço muito grande para subir. Mas não renego nada. Saí afinal mais fortalecida , ou pelo menos calejada.
CL: Alma, essa sua experiência rendeu belíssimos versos de amor, de um lirismo incomum na poesia contemporânea, a meu ver. Confesso que disputei esta entrevista, justamente pela admiração que esses versos me causaram.
ALMA: Fico gratificada e comovida com isso. Mas se penso novamente nesse caso e nesses versos ponho-me a chorar. Vamos mudar de assunto, sim?
CL: Está bem, que pena... Eu poderia perguntar-lhe ainda tanta coisa, mas nosso espaço está chegando ao fim. Fale-me daquele insólito livro de poemas
“Amar Humores”. Como você o concebeu?
ALMA: Bem, o que tu queres realmente saber? A minha motivação? O humor misturado ao erotismo, de uma ótica feminina, claro. E satirizando, às vezes, a ótica masculina. É um alvo talvez um pouco difícil, e posso não ter conseguido. Mas é um texto espontâneo como todos os meus textos. Confio muito no que jorra da minha intuição. E aquilo sou eu, como, aliás, todos os meus poemas, contos e pinturas. Só posso falar de mim mesma, mas fazendo-o assim, de peito aberto, tenho a esperança de ser compreendida por outras mulheres e mesmo pelos homens. Só se pode ser universal, a partir da nossa aldeia, do nosso bairro, do nosso quarteirão, quer dizer, da nossa pele. Não é, mais ou menos, o que dizia Nelson Rodrigues? De qualquer maneira quero falar de mim, de minhas experiências amorosas e até mesmo eróticas, pois o ato de escrever já me basta. Eu sei que é narcisismo, e daí? Isso me dá imensa satisfação e isso por si, já me justificaria perante mim mesma. Mas, se há um editor e leitores, então, meu exibicionismo fica ainda mais legitimado, não achas?
CL: Eis aí uma declaração franca e perturbadora. Mas, na verdade, posso dizer, sem ser um crítico literário, que a qualidade dos seus textos o justificam plenamente, para além da necessidade confessional que você mesma declara haver neles. Certamente haverá muitos leitores e fãs. Eu mesmo já sou um deles. Nossa entrevista chegou ao fim. Posso dar-lhe um beijo?
ALMA: Sim, tu és doce, afinal...

Nenhum comentário: