sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Meu pequeno vizinho (crônica de Alma Welt)

Estou trabalhando há horas numa grande tela. Tenho a cara e as mãos sujas. Luto com as tintas, tentando domá-las, às vezes dando-lhes rédeas, deixando-as reinar em manchas quase aleatórias. Do balanço entre o casual e o deliberado, nasce uma pintura mágica, que deve parecer ter nascido sozinha, pronta, e com a sensação ilusória de facilidade quase divina. Esta é a arte que busco, quando noto uns olhos atentos ao meu lado.
Um menino pretinho, de grandes olhos, que, sem sorrir, observa-me e ao quadro. Espantei-me com a sua presença, antes de perceber que eu esquecera a porta aberta quando levara o lixo para o corredor logo de manhã cedinho.
Meu primeiro movimento foi fechar a porta; depois, agachando-me para pôr os meus olhos nos seus, disse-lhe:
-E então? Você gosta de pintura?
-Eu gosto é de limpeza...- respondeu ele, com um lento e cantado sotaque mineiro.
Caí numa gargalhada. Entendi logo que se tratava do filho da faxineira do vizinho. Desconcertada mas enternecida (talvez eu esperasse o veredicto favorável de uma criança pura e inocente para ter a certeza da aprovação divina do meu trabalho). Peguei-o pela mão e levei-o à cozinha, para preparar-lhe um café da manhã.
Daí por diante ele apareceria quase todos os dias, certamente para o café com leite e as bolachas que o deliciavam. Mas depois permanecia vendo-me pintar. Eu já não lhe perguntava o que ele achava. Pensava ser mais prudente deixá-lo manifestar-se espontaneamente. Comecei a lhe dar uma paleta com as cores que uso, para que ele pintasse uma telinha sobre a mesa. O resultado foi surpreendente. Toda criança é artista. Justamente porque transfigura a realidade em signos simplificados, emblemáticos e poéticos. Tudo se torna arquétipo na visão infantil. É na verdade uma visão sagrada, imemorial, arcaica como a humanidade.
O quadrinho de Jonas (esse era o seu nome) me encantou. Pressenti nele um futuro primitivo rural. Sua mãe vinha do campo, da lavoura, e ele herdara atavicamente essa visão de campos lavrados, bois e montanhas de Minas Gerais. Como podia ele lembrar-se do que não vira com seus próprios olhos? Ele tinha nascido aqui na cidade. E vivia suspenso em apartamentos, correndo por feios corredores de prédios, povoados somente por latas de lixo. Crianças, raramente ele as via, pois passavam às vezes direto para os elevadores, acompanhadas por seus pais. Eu, sua vizinha, solteira, parecia encantá-lo. Olhava-me muito. Creio que via a criança dentro de mim, porque eu pintava. Sim, devia ser isso! Não sou exatamente o tipo físico ou mental que chamavam em outros tempos de femme enfant, mas todo artista é uma criança e passa a vida a recuperar essa criança em sua obra. Eu, por exemplo, hei de pintar um dia como uma menina de seis anos se tudo der certo.
Lembro-me de quando levei meus desenhos e pinturas, no começo de minha carreira, para mostrar ao professor Bardi. Ele disse: “Alma, não se iluda. O maior pintor brasileiro de todos os tempos é José Antonio da Silva. Tudo o mais é pintura européia”.
Agora eu estava disposta a incentivar Jonas a ser um pintor primitivo como eu gostaria de ser, sem poder. O tempo passou, o menino pintava em meu ateliê todos os dias. Era também o meu ajudante e com o tempo ele já me faria falta. Já não podia passar sem ele. Era moldureiro, encaixotador, e até faxineiro. Pegou na vassoura com prazer depois que lhe contei uma anedota de Portinari. O pintor foi encontrado certa manhã, por um visitante, grande colecionador, com a vassoura na mão, varrendo o ateliê. O visitante, surpreso, perguntou-lhe: “Mas, mestre, o senhor, varrendo o chão? E Portinari respondeu-lhe: “Sim, meu caro, a vassoura é um grande pincel”.
Jonas adorou essa história e agora varria o ateliê todas as manhãs. Eu estava encantada. Percebi o valor das metáforas na vida de uma criança. Na vida de todos nós, na verdade.
Jonas se tornou um pintor, voou, sumiu. Partiu com sua mãe para Minas um dia. E eu, olhando algumas magníficas telas que ele me deixou, sabia que ele não mais se perderia e que voltara às montanhas que eu imaginava, para reencontrar suas raízes.
Um dia, minha vizinha, abalada, tocou a campainha para me trazer uma coisa. Sua ex-faxineira escrevera-lhe e ela me passou a carta que transcrevo aqui, corrigindo-lhe o português:

"Senhora, não lhe escrevi antes pois a vida tem sido muito difícil, desde que voltei para cá. Agora é impossível. Meu Jonas me foi levado no ventre da baleia. Dois tiros lhe tiraram a vida. O quadrinho que tinha na mão tinha um furo no meio, sobre o seu peito ensangüentado. Envio-lhe o quadro, sua última pintura, para que o entregue à pintora que foi sua mestra. Ele a amava muito, como se pode ver no quadro. Diga-lhe que sou grata como mãe, pois meu filho foi feliz enquanto viveu a sua curta vida e eu sei que ele aprendeu essa felicidade com a pintora que ele venerava. Sua religião era a arte, e ela, a sua santinha. Os quadros de meu filho ficaram conhecidos aqui na região. Estava ficando famoso, pelo menos entre nós. Mas, por algum mistério, insistia em me ajudar na limpeza todas as manhãs, manejando a vassoura com prazer, assobiando uma música estranha, mas bonita, uma tal de cantilena, de um homem que vira lobo, que a pintora lhe ensinou. Agora não posso mais. Não sei como viver sem meu Jonas, mas sinto também demais dar essa notícia a ela. Não tenho coragem. Faça isso por mim, entregue-lhe o quadrinho, que não posso mais olhar para ele com aquele furo no meio".

Agradecida,
para nunca mais,
sua, Dasdô.

Meu coração partiu-se, minhas lágrimas corriam olhando aquele quadrinho, onde se via uma moça loira com uma vassoura enorme na mão, em frente a uma tela no cavalete, entre montanhas azuis e verdes.

Nenhum comentário: