sábado, 6 de outubro de 2007

Salomão ou Lear, de saias (de Alma Welt)

(dos Contos Pampianos, de Alma Welt)


Estou só, à frente desta estância, comandando o andamento da casa e da vinha. E isto me sobrecarrega, já que não quero abrir mão de minha pintura e poesia. A posição de “diretora”, ou administradora deste pequeno universo, me coloca em situações inusitadas, de um certo poder, até mesmo sobre o destino de um número de criaturas que passaram a depender de mim, como outrora, do Vati. Este “cargo” deveria caber ao Rôdo, por acordo entre nós, após a morte de nosso pai, logo estou um tanto revoltada com meu irmão, que parece fugir de suas atribuições. Preciso explicar que Rôdo está viajando, há mais tempo do que deveria, a meu ver, com seu carrinho esporte, pelo mundo, correndo, jogando...

Os peões e suas famílias parecem me ver como uma espécie de rainha. Os homens tiram o chapéu na minha presença, e as mulheres curvam ligeiramente o joelho quando vêm até mim, na varanda, diante da minha cadeira de balanço. Eu lhes ofereço o meu mais doce sorriso, mas eles parecem receber isso como a benevolência da rainha e saem cheios de gratidão, mesmo quando me mostro impotente quanto a alguns problemas seus, de ordem pessoal, somente porquê interpreto a situação para eles, com palavras simples, e que ajudando-os a enxergar mais claramente, eles a resolvem por si mesmos. Estou dando-me conta da grande responsabilidade desta posição em que o destino me colocou, e tento fazer jus a ela. A verdade, é que, às vezes, esperam de mim um poder absurdo, e isto me deixa um tanto perturbada, principalmente com a tentação, em mim, de exercê-lo mesmo, em sua totalidade, mudando destinos, fazendo escolhas por eles. Mas debato-me, interiormente, quanto a isso, e tento refrear-me. Ah! A tentação do poder! Será legítimo o poder, dado a um ser humano, por circunstância, por nascimento... será destino, o poder? Eis, a meu ver, um dos mistérios humanos.

Galdério, nosso caseiro, está à vontade, como uma espécie de primeiro ministro, intermediando ordens minhas, ou pondo-as para serem executadas, e espera de mim uma autoridade sem contestações. Parece partir do princípio de que sou realmente infalível, ou que mesmo que erre, meus juízos e decisões trazem a marca da legitimidade, de uma herança... divina. Lembrei-me recentemente, de que há poucos anos, em São Paulo, numa interessante conversa com o grande poeta urbano Roberto Piva, este contou-me o seguinte episódio, sugestivo, de sua experiência:

—Alma,-disse ele- no final dos anos cinqüenta, na casa do Vicente e da Dora Ferreira da Silva, este, de repente, perguntou-me: “Piva, você sabe por quê o comunismo não vai durar cem anos?” “Não, Vicente,” - eu respondi, surpreso- “ por quê não vai durar cem anos?” E Vicente respondeu: “Porque o comunismo não está no inconsciente coletivo.” Afinal- continuou Piva,- ele foi profético, pois a União Soviética durou apenas 75 anos. O comunismo nunca consolidou-se na mente da grande massa, pois, em termos políticos, ou melhor, de poder, o que o homem do povo tem no seu “inconsciente coletivo” é a figura do rei, da rainha, do príncipe, da princesa... e do cavaleiro andante.

Este diálogo real, contado pelo poeta paulistano, meu amigo, me fez meditar, quanto a outras decorrências do poder, por exemplo, a estória exemplar do rei Lear, da peça de Shakeaspeare, em que este monarca, já muito velho, abdica do seu poder em favor das filhas, dando ensejo imediatamente a uma “guerra civil” em seu reino, luta fratricida, entre as irmãs com seus exércitos, disputando esse poder, enquanto o velho rei decaído e louco, ia de roldão no meio do fogo cruzado, por assim dizer (acompanhado apenas do fiel mas queixoso bobo da corte, uma espécie de corifeu desta tragédia).É interessante notar que a única filha leal ao pai, e portanto ao rei, Cordélia ( o coração) representa a anima deste homem velho, que perdeu a sabedoria, pois o poder se herda, se ganha ou se perde pela força, mas ai daquele que abre a mão espontaneamente do poder, mesmo que por velhice, pois cria o caos em torno de si, já que contrariou uma lei natural do universo, por vezes perturbadora, nada racional.(Lembrei-me do título do grande filme de Kurosawa, baseado nesta tragédia, “Ran”, que em japonês, sugestivamente significa “Caos”). Isso me faz pensar também, na situação de Fidel Castro, que contestado no seu poder por grande parte do mundo, dadas as dificuldades inimagináveis da economia do seu país devido ao bloqueio, e também, claro, pela opressão a determinados setores, nem assim abre mão do seu poder, em função de uma democracia, pois deve ter lido Shakespeare e sabe, que ao fazê-lo, precipitará uma sangrenta guerra civil, que, na verdade, a meu ver, virá de todo modo com sua morte, natural ou não.

Mas estou divagando, voltemos ao meu pequeno reino.

Hoje de manhã recebi uma moça camponesa, uma das minhas colhedoras de uvas, guria encantadora em sua beleza rústica, de grandes olhos sombreados pelo chapéu e o lenço que o cobre para amarrá-lo num laço sob o queixo. Uma espécie de corpete realça-lhe os seios, e lhe empresta um ar antigo, que remete-me mais depressa à minha condição de princesa, ou de rainha mesmo. Imbuída do meu papel, ou reconciliada com ele, graças as divagações que expus acima, eu ouço a queixa da camponesa:

— Dona Alma, quero me casar com o Léo, o guri encarregado dos batoques dos barris, e meus pais me proíbem, pois seu trabalho é desprezado e sofre chacota entre os peões. Dizem que ele só sabe tapar buracos ( ela pôs a mão na boca, acompanhada por mim mas com um sorriso, nesta reação). Mas o Léo, está tão desesperado, que me propôs... ai!, não tenho coragem de dizer ( ela cobriu pudicamente as faces com as mãos).

Tive vontade de rir, e creio que soltei uma pequena gargalhada que logo controlei, instigando-a:

—Quitéria, guria, o que o Léo pode ter te proposto? Abrir um buraco, em vez de fechá-lo?(Ela corou, com a mão na boca, mas eu logo me arrependi da brincadeira, pois a situação delineava contornos mais sérios). Querida, tu deves tomar cuidado, pois quando um homem propõe isto a uma moça simples, está sempre fazendo um teste, mesmo que ainda não saiba disto.

Quitéria ficou um pouco confusa, mas creio que captou o que eu quis lhe transmitir. No código de valores dessas criaturas, que temos que levar em conta, a virgindade é coisa seríssima, e depois do leite derramado, só resta esperar a benevolência ou o bom caráter do rapaz, que se mostre disposto a reparar o erro casando, ou então sofrer castigos e freqüentemente o desprezo da própria família, coisa que virtualmente as destroem. Mais antigamente houve casos em que o próprio pai pôs a filha na zona, como castigo e repúdio perpétuo, crueldade inimaginável nos dias de hoje, mas que teoricamente não foi apagada do código internalizado de certos pais-peões, de irmãos, e até mesmo (pasmem) de certas matriarcas camponesas. Na minha infância ouvi contar, principalmente na cozinha da estância, pela boca de Matilde, tragédias como essas. Desconfio que minha babá, depois cozinheira, falava disso para me alertar, de medo que eu própria malbaratasse minha virgindade, e nunca mais pudesse casar. Pobre Matilde, se ela soubesse o que realmente penso de tudo isso... Não, ela não poderia compreender.

—Querida,-eu completei-resista, resista. E espera, que quando teus pais perceberem a força do amor de vocês, se ele existir, o casamento virá, naturalmente, por si só... (eu jamais seria capaz de seguir, eu mesma, tal conselho, pois sou impaciente e precipitaria as coisas com alguma loucura.)

—Mas dona Alma, o caso é que meu pai vai me casar dentro de uns dias com o senhor Paco, só porque ele tem um pedacinho de terra que a senhora lhe deu, e chega de lá montado num cavalo dele mesmo. Eu não quero, dona Alma, eu não amo aquele homem! Eu tenho horror daquele homem!( Ela caiu num súbito pranto).

Fiquei consternada por constatar, que até os dias de hoje ainda ocorriam entre os camponeses da nossa estância, casamentos impostos, arranjados, sem levar em conta os sentimentos das moças. O século dezenove adentrara o século vinte inteiro e chegara ao terceiro milênio. Era inacreditável! Aquela mocinha estava votada ao estupro, e nada poderia poupá-la desse destino anunciado, essa é que era a verdade! Senti um súbito aperto no peito, por empatia, por identificação anímica de mulher, e só pude chorar por ela, abraçando-a, fraternalmente. O que poderia eu dizer a ela, diante daquelas circunstâncias? Poderia eu instigá-la a fugir com o guri, o pequeno peão tão desprezado pelo seu humilde ofício? Não! Mas se eu tinha algum poder, que me delegavam, eu o usaria com alguma sabedoria, se eu invocasse a Deus esse dom.

Ao pensar assim, a solução me foi imediatamente apontada, como um juízo salomônico. Eu disse:

—Quitéria, vou tentar algo, mas tu deves guardar segredo dessa nossa conversa. Dê um jeito de avisar o Léo, para que me procure, imediatamente.

A guria, um tanto surpresa, saiu correndo, semeada de esperança, depois de beijar-me as mãos, comovedoramente. Eu meditava no que deveria dizer ao pequeno batoqueiro. Passados dez minutos chegou ele, bastante tenso e desconfiado. Saudou-me um tanto constrangido, de olhos baixos, como se esperasse ser repreendido. Eu lhe disse:

–Olá, Léo. Hoje pode ser o teu dia de sorte. Mas antes deves me responder algo com toda a sinceridade. Amas alguém, uma moça aqui da estância, sim ou não?

O jovem, nada feio, um tanto matuto, mas bem apanhado para um peão ignorante, hesitou um pouco, e respondeu:

—Sim, dona Alma, mas não sei o que... (calou-se, de olhos baixos).

—Bem Léo, é a Quitéria o teu amor? É verdade que a amas?

—Sss...sim, dona Alma, mas não atino como sabes...

—Então, Léo, prepara-te porque vais casar-te com ela, que é minha protegida. E por isso vão ganhar como presente meu, de casamento, um pedaço de terra, bem fértil, e com uma querência nele, um pampeiro, e duas vacas, umas galinhas também. É o meu presente de casamento. Vou passar a escritura em nome dos dois, desde já, confiando na realização desse casamento e de que ele será muito feliz. Mas tens que me prometer, que a tratarás como uma princesa, que é isso o que as mulheres são, sabias?

Léo ficou um instante boquiaberto, depois ajoelhou-se subitamente e agarrando-me a fimbria do vestido, sem levantá-la, curvado, beijou-a quase deitado aos meus pés. Eu tive que tocar-lhe os ombros para instá-lo a parar com aquilo. Ele estava deslumbrado, e chorava, de emoção, de gratidão, me pareceu. Diante de sua reação, fiquei convencida do acerto da minha decisão.

Dentro de um mês, na véspera do casório de Léo e Quitéria, chegou Rôdo de mais um giro pela Europa, e vendo os preparativos para a festança, com fandango e churrascada à vista, questionou-me, diante do meu empenho na organização daquele evento.

—Sou a madrinha do casal, Rôdo, pois dei um empurrãozinho para o casamento acontecer. Dei-lhes um palminho de terra e umas coisinhas mais, para o Léo, que era o escolhido de Quitéria, ficar em pé de igualdade com um rival. Como contava com o amor da moça, a balança pesou a seu favor diante dos olhos dos pais dela. Foi só isso, Rôdo, o que fiz... uma pequena ajuda ao amor.

Rôdo abanou a cabeça, e ralhou comigo, sorrindo:

—Alma , Alma, és incorrigível! Nesse passo vais dilapidar todo o nosso patrimônio, distribuir aos poucos todas as nossas terras e até a vinha. Não vês que logo todos os peões vão querer se casar, escolhendo-te para madrinha? Não conheces o povo! Além disso, quem te dá o direito de interferires no destino alheio? E se o casal for infeliz, amarrado a um pedaço de terra? Mais cedo ou mais tarde te culparão.

Fiquei por um momento confusa com as palavras de Rôdo, mas logo reafirmei minha decisão, defendendo-a:

—Rôdo, meu irmão, tuas palavras são de falsa sabedoria, pois são só razão, lhes falta coração. Deve-se confiar mais nos impulsos do coração. Tens o pessimismo de um cético, e crês pouco no ser humano. Deve ser por isso que és um jogador, um blefador. Não vês que um único ser humano salvo, ou aliviado de sua dor, justifica uma vida inteira de erros? Meu coração está pleno, julguei com sabedoria neste caso, quase como Salomão ao ameaçar repartir entre desiguais e deixar o amor fazer pender a balança na direção certa. Não como Lear, se é o que tu pensas, que abriu mão do seu poder, doando tudo de uma vez. Não, meu irmãozinho querido, não queiras me confundir. Estou feliz, como eles, e isso é suficiente prova do meu acerto.

Rôdo sorriu ternamente, afinal, e me abraçou profundamente, enquanto eu, apertada em seus braços, com a cabeça em seu ombro, pensava no quanto eu amava aquele guri, tão diferente de mim...

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