sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Alma nostálgica, ou Carta da "Mentira Vital" (de Alma Welt)



(das "Cartas a Andrea", de Alma Welt)


Andrea querida

Minha morena, estás escorrendo, não é? Guarda um pouco desse caldinho para mim. Já imaginaste quantos hormônios e feromônios contém esse precioso fluido? Degustá-lo, bebê-lo deve reforçar a nossa feminilidade gloriosa. Por falar nisso, hoje não teve terapia, e passeei horas a cavalo com minha doutora Jensen, pelas pradarias. Fomos muito longe, e na nossa intimidade também. La Jensen é o máximo, que mulher incrível! Ela já esteve até na África, trabalhando, e sua experiência internacional de vida é algo que daria um filme maravilhoso.

Ela faz tudo para pôr-me para cima, o que no meu caso não é simples, pois ela sabe que não sou um caso de baixa auto-estima, mas tenho uma síndrome bem mais sutil e complicada. Ela diz que eu, como artista me auto-glorifico, chego mesmo a me auto-mitificar, e que isso é comum aos bons artistas, e que não é aí que reside portanto o meu “pathos” que ela denominou lisongeiramente de “weltiano”, universalizando o meu caso. Ela citou, enquanto cavalgamos a passo, a teoria da “Mentira Vital” de Otto Rank, segundo a qual, as crianças por volta dos quatro anos, ao tomar contato com as próprias fezes de uma maneira diferente, como algo decomposto que lhes sai de dentro, têm uma súbita consciência da própria morte, que lhes seria fatal pela angústia mortal se assomasse totalmente ao consciente. Então, segundo Rank, mecanismos naturais de defesa interpõem uma espécie de comporta entre inconsciente e consciente, estancando essa consciência fatal. Daí pra diante vivemos como se a morte não fosse nunca a nossa, e sim algo que só ocorre no outro. A isso ele chamou de “mentira vital”, que nos permite viver. Mas segundo ele, o Artista sofre de um defeito desse mecanismo de defeza, uma espécie de rachadura na comporta, por onde emanam eflúvios da consciência de morte, produzindo uma angústia criativa. Entretanto, essa rachadura tende a se alargar, como uma fenda numa comporta de represa. “Si non è vero...” Ai! Andreazinha, paga-se um alto preço por se ser artista. Eu às vezes queria ser apenas mulher, ou melhor, uma guriazinha de cabeça ôca, casadinha e com filhos, como minha mãe queria. Mas agora é tarde. Ao pôr-do-sol, no meu pampeiro, ao lado da doutora, eu soltei um gemido, e as lágrimas começaram a descer. Uma saudade, Andréa, uma nostalgia de tudo, do que vivi e do que não vivi! E queria me dissolver naquele poente como nos meus amores passados, presentes e futuros. E em ti, guria, que só conheço por dentro, e tão pouco, mas que és tão terna e compreensiva com esta doida Alma inquieta.

Então, a doutora apeou, estendeu-me os braços e disse: “Apeie, Alma, sentemos nesta relva e vamos esperar as estrelas surgirem. Elas relativizam tudo com a sua grandeza, com a sua distância e impassibilidade. Com sua eternidade, talvez. Vamos simplesmente olhá-las, como mãe e filha, abraçadas, minha querida”. Assim ficamos, eu chorando baixinho abraçada à minha doutora sábia, que chegou tarde demais para ser minha guru, e que parece querer somente consolar-me de uma dor perante a qual ela se sabe impotente. Uma mãe terna e velha, que não pode mais proteger a sua filha do mundo, da vida, da dor da vida.

Ao voltarmos para casa já anoitecida, Rodo nos esperava na varanda, sentado na cadeira de balanço, tomando um chimarrão, com música de piano, Chopin, no aparelho, o que só aumentou minha nostalgia. Fiz um esforço e pus música de fandango, e puxei meu irmãozinho para dançarmos juntos para a doutora Jensen que deu boas gargalhadas. Rimos muito, Andréa. E eu senti que por hoje me salvei. Sobrevivi. Quero minhas crianças, Andrea. Não podem me tirar minhas crianças. Também sou uma, não podem me deixar sozinha...

Tua Alma que ama e sofre

08/01/2006

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