quarta-feira, 15 de agosto de 2007

As Origens (de Alma Welt)



As Origens
19/06/2007

(Trecho do primeiro capítulo do romance A Herança, de Alma Welt (1972-2007)

Sento-me sob a minha macieira e ponho-me a devanear. Começam a vir ao meu espírito imagens longínquas, de um outro tempo que não o meu, mas que está nas minhas raízes, talvez tão fundas quanto as desta árvore que contém meu coração, não só gravado em sua casca, mas no seu cerne.

Transportam-me imagens rurais de uma Polônia alemã, sim, dos Sudetos, bem antes da segunda Grande Guerra. Meus avós, agricultores alemães, voltando para o seu chalé, em estilo bávaro, mas humilde. Trazem enxadas nas costas, e percebo-lhes as grossas mãos calosas. O lenço cobrindo a cabeça de minha avó, de aspecto rude, a cara embolachada, donde emergem olhinhos azuis, no meio da gordura avermelhada do rosto redondo. Meu avô, altíssimo, magro, de enormes mãos ossudas, segurando um cachimbo que o acompanha até no trabalho, no campo. Seus olhos azuis esverdeados, parecem obtusos, mas ao mesmo tempo obstinados. A mesma obstinação que o arrancará dessa terra polonesa onde se sente oprimido, como todos os agricultores que queriam sentir essa terra como alemã, em pleno seio da Polônia. Essa revolta o trará, muito antes da guerra, para o sul do Brasil, terra prometida, de que ouvira falar, um tal vale do Itajaí, palavra exótica que mal sabiam pronunciar. Aquele nefasto Hitler iria se aproveitar disso, com pretexto, para invadir a Polônia e destruí-la. Sua luta, sua campanha de ascendência ao poder já insistia nesse tema duvidoso.

Meus avós, eu os acompanho em meu retrospecto sonâmbulo, ali sob aquela árvore ancestral, cujos primeiros galhos correspondem a este casal de camponeses rudes, corajosos afinal, que iriam primeiramente parar na região de Blumenau, em Santa Catarina, numa colônia alemã, não tão distante de uma outra, açoriana, onde nasceria a jovem Ana Morgado, amada ardentemente, desde a infância, pelo meu pai, o jovem Werner Friedrich, sonhador, que queria estudar, sair dessa vida agrícola, ser músico ou médico e resgatar a linda açoriana, como ele dizia, daquele universo, para ele restrito, e carregá-la consigo para o mundo, tão mais vasto. Sonhava voltar à Europa, ele que havia nascido ali, naquele vale ideal, de algum modo brasileiro, alemão, português, italiano. Namoro rural típico, não fora o espírito predestinado ao cosmopolitismo do jovem Werner, cuja rebeldia foi tolerada pelos rudes alemães, porque revelava o herdeiro de uma tradição mais ampla, que incluía a música de Bach, Mozart e Beethoven, e a sabedoria de Goethe e Nietzsche, que ele descobrira praticamente sozinho, na biblioteca do pároco, o pastor da igreja Luterana daquele vale.

Agrada-me pensar que o embrião desta Alma aqui, já estava naquele vale... e naquele sonho do jovem casal de namorados meio clandestinos. Sim, porque não foi fácil esta união, e incorreu numa fuga, pois as duas colônias não se bicavam, e as famílias, tão diferentes, à parte as raízes rurais, que isso sim, era o único ponto comum. Ana, pequena católica, igrejeira, devota da virgem, da qual carregava a imagem numa medalha ao pescoço, como pôde ela apaixonar-se pelo jovem teuto-brasileiro? Na verdade mais alemão que qualquer um, no seu universalismo cultural que prenunciava uma erudição que havia de se tornar espantosa. Como pôde ele apaixonar-se pela “portuguesinha” ingênua, mas ao mesmo tempo austera e dura, cuja religiosidade ainda continha tanto fetichismo, com tantas imagens veneradas, e tantas restrições morais, que na verdade eram o único ponto de encontro das duas culturas?

Mas meu pai, este era libertário, de larga visão... e aventureiro. Haveria de raptar a “rapariga”, filha dileta dos Açores, de pele muito branca e cabelos negros, que reapareceriam apenas no meu irmão Rudolf, o mais belo de todos, a meu ver. Mas antes de mim viriam Solange e Lúcia, nome caros aos brasileiros.

Quantas aventuras, na verdade, antecederam este estágio! O jovem Werner conseguira dos velhos, ser mandado à Alemanha para estudar. Aquela Alemanha da ascensão do futuro Führer, que, graças a Deus, produziu imediata aversão no jovem esclarecido.

Mas este jovem obstinado, concentrou-se nos estudos, apesar de tudo, da conturbação social daquela ascensão irresistível, daquele tirano, cujos berros ecoariam até aquele vale ideal, lá no Brasil, e fariam meus avós colocarem braçadeiras para desfilar em honra do fanático que prometia libertar os sudetos da Polônia e da Tchecoslováquia, tanto quanto anexar a Áustria. Meu pai não veria essa cena deprimente, do meu avô com aquela braçadeira da suástica, e o braço direito estendido, gritando “Heil!” enquanto marchavam pelas ruas de Blumenau, tolerados até com certa condescendência pelo resto da população, num momento político sob a égide de Getúlio, que até então, não disfarçava sua simpatia pelo colega do III Reich. Foi preciso a guerra terminar, e os segredos escabrosos do nazismo virem à tona, para meu avô reconsiderar suas posições e renegar aquela ideologia. Pelo menos o fez. E botou uma pedra sobre o assunto, como, ao que parece, todo o povo alemão.

Daqueles anos, eu soube muito mais tarde os passos do meu pai, pelas cartas à minha mãe, que descobri nos seus guardados. Cartas e cartões postais, apaixonados, românticos, com linguagem cada vez mais elaborada, denunciando uma cultura crescente, que sem saber o distanciaria da pobre rapariga açoriana, mais afeita a um banco de jardim de praça, singelo, diante de uma igrejinha de aldeia, como a que escolheu para se casarem, ao seu retorno.

O jovem, alto, de louros cabelos, e olhar azul brilhante, voltaria com uma bagagem insólita: uma biblioteca imensa, que ele parecia ter digerido perfeitamente, tal a extensão do seu saber e as bases de uma erudição que ele iria fazer crescer cada vez mais ao longo de sua vida. E o piano? Um Steinway negro, maravilhoso, que trouxera de navio e que ele dedilhava com técnica apurada, aprendida sabe-se lá onde e como, com que tempo? Como pôde ele acumular tanto saber, e ainda tocar daquela maneira romântica, tendo se formado em Medicina, e se tornado mesmo um cirurgião (atividade que, na verdade, ele quase não exerceu )?

O que mais me impressionaria em minha infância, seria o seu ouvido musical absoluto, e o seu conhecimento das obras do Romantismo, inclusive o mundo da ópera alemã, francesa, e italiana sobretudo. Sim, meu pai era um romântico e passaria essa tendência inata para mim, sua filha predileta. Mas antes, muita coisa aconteceria naquele seu retorno, às vésperas da conflagração que mudaria o mundo.

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