quarta-feira, 15 de agosto de 2007

A Herança em perigo (de Alma Welt)



A Herança em perigo
(trecho do romance inédito A Herança, de Alma Welt)

(Epígrafe):

"Espremo os tubos sobre a paleta
lanço estes versos no papel
e as tintas e as palavras me remetem
à nossa estância
que ainda está ali
como um fantasma
navegando
na amplidão do Pampa.

Como uma nave
o casarão batido pelo minuano
recusa-se a afundar!"

(Versos finais do poema Pampa, de Alma Welt)


A Herança
(Começo do romance inédito de Alma Welt)

Capitulo primeiro

A Herança em perigo


Rôdo, meu irmão, quer vender a nossa estância. Não posso suportar sequer a idéia disso acontecer. Faço as malas apressadamente, sem esquecer, no entanto, de jogar por cima das roupas meus cadernos de poesia e de anotações.

Durante a viagem, de ônibus me percebi em estado de grande ansiedade e fiz, então, um esforço para sintonizar-me naquele presente, mesmo sendo ele de transição, com a paisagem correndo veloz através das janelas. Depois de um dia inteiro e de duas baldeações, chego afinal à estaçãozinha para pegar o trem antigo que corta as nossas terras, em pleno pampa. Meu amado Pampa, eterno, imutável.

Quando afinal a charrete vem me buscar na pequena estação, eu já estou retornada à minha infância e primeira juventude. Comovida e tensa, cumprimento nosso caseiro, Galdério, cujas rugas emergem agora de um imenso bigode grisalho, e cujas bombachas me remetem ao meu universo verdadeiro. Estou em casa.

No caminho, embalada pelas coxilhas, e pela fala cantadíssima do nosso caseiro, percebo-me numa espécie de sonho, em que, ao fundo escuto os ruídos e a música do fandango e a canção da Nau Catarineta, que ouvia na infância, como um anti-acalanto, se posso dizer assim, que me tirava da cama e me fazia correr para a balaustrada, para observar a festa dos adultos, acompanhar aquela estória maravilhosa da nau quase maldita, que encontra a sua redenção pela fé inabalável do seu capitão.

Agora, a nau que se encontra em perigo é o nosso próprio casarão, que parece navegar, imóvel, no plano astral do Pampa, batido pelo minuano, na estação fria.

Mas estamos em pleno verão. E os dias estariam maravilhosos se essa ameaça não pairasse por dentro, em minha alma. Nossa estância em perigo, nossa casa prestes a se perder. O que está acontecendo com Rôdo? Como pode o meu irmão trair-me assim? Não foi ele auto-designado como o fiel guardião do espólio do nosso pai? Da nossa herança sagrada, das nossas raízes mesmo?

Anseio encontrar-me imediatamente com ele, e temo chegar gritando como uma fúria, o que definitivamente não faz o meu gênero.

Ao avistar Rôdo, entretanto, na varanda, de pé, com as suas bombachas, e os cabelos pretos revoltos, majestoso em sua beleza jovem, meu coração se abranda, se aquece, e eu me distendo. Corro a abraçá-lo. Ele me aperta contra o seu coração, e eu me remeto novamente à nossa infância, quando nossos abraços eram mais freqüentes que o normal. Seu cheiro, seu perfume, a maciez dos cabelos pretos de Rôdo, meu primeiro amor, na verdade...

Mas logo me desprendo, afasto-me à distância dos braços e olho-o nos olhos, fuzilando-o.

—Rôdo, que se passa? Como podes pensar nisso? Vender a nossa estância! Prefiro a morte, fica tu sabendo. Queres matar-me? Queres matar-nos a todos?

-Alma, não exagera! Tu és sempre extremada nos teus sentimentos. Vê: não temos saída, já estamos quase hipotecados, e não temos mais recursos. Estamos falidos. Essa é que é a verdade. Não consigo tirar mais um tostão da propriedade. Os tempos mudaram. Tu és artista, não sabes nada desse universo, do mundo prático, das dívidas imensas que acumulamos desde antes mesmo da morte do Vati. Tu te iludes. Não temos mais saída.

–Mas, Rôdo!— quase gritei—Tu prometeste, tu juraste defender a nossa herança, o legado do Vati, a nossa biblioteca, o piano, o jardim, o parreiral, o pomar, nossa macieira, mas sobretudo esta casa. Ai, Rôdo, eu não posso suportar essa idéia, de perder tudo!...

Caí num imenso pranto. Sentia-me desfalecer. Rôdo amparou-me. Pegou-me então em seus braços, como fazia quando atravessávamos o brejo, e carregou-me como a uma criança, para depositar-me no sofá da sala. Abandonei-me por um momento, como se isso fosse abrandá-lo, demovê-lo do seu intento, que eu sentia poderoso, já que a idéia da venda estava instalada dentro dele, já havia muito tempo, eu percebia.

Fiquei soluçando, até adormecer, exausta, num torpor de dor e cansaço acumulados, da viagem e do medo que me acompanhava.


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Acordei com o rosto do meu irmão, muito próximo do meu, com seus olhos pousados sobre os meus lábios. Teria ele beijado a minha boca, em meu sono? Ai, Rôdo, é tarde...

Passei-lhe a mão nos belos cabelos negros, sedosos, levemente ondulados, como se o pampeiro os agitasse sempre. Meu irmão, meu irmãozinho... Preciso falar-lhe, convencê-lo. Deve haver uma saída. Não me considero uma pessoa apegada a bens materiais. Mas, a estância? É nossa herança espiritual... materializada. Não, não é possível, será minha morte, a nossa morte. Estarei condenada para sempre àqueles Jardins vazios, de São Paulo, onde posso ter somente o meu ateliê, com conforto, cercado de galerias de arte, somente para prover a minha subsistência, para continuar criando a partir do manancial interno desta herança, deste solo, onde estão fincadas minhas raízes? Não, Rôdo, eu não permitirei. Lutarei contra tudo e até mesmo contra ti, se me traíres, se nos traíres.

Levanto-me e peço a Galdério para selar uma égua. Saio galopando por esta amplidão, a campina infinita. Galopo muito tempo acompanhada ao longe pelo olhar de meu irmão, que me vigia como outrora, quando esta galopada era feliz. Ai, que posso fazer, senão galopar? Como lutar, que sei eu da vida, dos papéis, das dívidas... desse mundo sórdido e triste das realidades comezinhas do mundo prático, real? Sou uma artista, sou poeta, ai de mim! Sou então, tão vulnerável? Eu não sabia que podia ser assim atingida, no meu cerne, onde brotam as minhas forças criativas, no meu coração, na minha alma. Vão me matar! Vão me matar se isto tudo se perder, esta casa, estes livros, o Steinway do Vati, com sua música que ainda ressoa. Minhas memórias sobreviverão? Sem seu lastro ouro, não se desvalorizarão? Eu sei, esta pergunta contradiz a essência mesma da memória, sua permanência em espiritualidade, mas... a matéria, então, não é nada? Porque existe, então? E é tão bela! Tanto quanto o espírito, não menos. Essa é a verdade.
Como artista, eu amo a matéria tanto quanto a alma que nela se instala. Por isso a descrevo, a pinto, a enraízo nas telas e nos versos. Descrevo a beleza amada, de tudo, a minha própria beleza. Quero fixá-la. Quero-a eterna. Quero crer na ressurreição da carne, com Deus, ou entre os deuses do Olimpo, não sei mais! Entre os deuses do Pampa!

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Ao jantar, na grande mesa, Rôdo numa cabeceira, eu na outra, percebo que estamos nas posições de nosso pai e mãe, em suas cadeiras, com a mesma imensa distância que os separava. Matilde, nossa cozinheira manda sua sobrinha nos servir. Matilde está muito calada, depois de chorarmos muito, abraçadas. Agora parece uma sombra e não tem coragem de aproximar-se dessa mesa vazia, com seus guris ( como ela diz )sentados assim, separados pela própria mesa vazia, vazia, para sempre.

Onde estarão Lúcia e Solange, nossas irmãs, tão omissas? Já aceitaram prontamente a perda da nossa estância. Aliás, Solange e Geraldo, seu marido ansiavam por isso, cheios de rancor, e cobiçosos dos despojos do nosso patrimônio, como harpías. Logo chegarão, disse Rôdo. Logo estarão aqui, insuflando a venda, reivindicando, disputando. Ai! não vou suportar. Eu lutarei, não vou permitir que espoliem tudo. Não levarão um livro, um disco! Não ousem cobiçar o piano. Nada deve sair daqui, agora vejo. Talvez eu possa contar com a cumplicidade da minha querida Lucia, e do meu cunhado Alberto, o pobre borracho...

Sim, eu mesma jamais me imaginaria, defendendo com unhas e dentes estas coisas. Mas eu sei que o Vati me quer assim! Sei que ele era apegado aos seus livros, ao seu piano, aos seus quadros, mais que às nossas terras mesmo! São a sua herança espiritual. Os símbolos do seu amor pela cultura de todos os povos. Pela arte universal, pela música dos Mestres. Ai! Não posso deixar isso se dispersar. A essência de uma coleção é a personalidade, o espírito do colecionador, que assim se plasma. Uma coleção dispersa é a traição de uma vida, um ato de canibalismo, de mutilação, de depredação. Uma alma estraçalhada, como um corpo!

Vati, Vati, eu te defenderei! Mas como? Como? Que posso fazer?
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A ARA

Trecho do segundo capítulo de A Herança (romance inédito de Alma Welt)

Com meus pequenos sapatos de verniz, eu corria pelos campos em torno do nosso casarão, freqüentemente perdendo-o de vista. Com um aventalzinho antiquado e inútil sobre a saia muito comprida, eu mais parecia uma menina do século anterior: longos cabelos, com uma fita, às vezes tranças. Eu corria ou simplesmente passeava a esmo, colhendo flores, soprando ao vento as sementes do capim, devaneando, até ouvir o som do piano do Vati, que era a maneira de voltar à terra... para continuar a sonhar. Eu corria até a biblioteca, para pôr-me embaixo do grande Steinway ( que agora, no meu retorno, pareceu-me bem menor). Ficava ali, deitada de bruço sobre um tapetinho muito macio, que o Vati colocava para mim. Com o queixo apoiado nas mãos, eu observava seus pés nos pedais, cuja utilidade me parecia um mistério, e deixava-me embalar pelo som maravilhoso de Chopin, Shumann, Shubert, Lizst, Debussy, Scriabin, Satie e Poulenc. Eu me erguia então, para, ao lado dele, observar as suas mãos, seus dedos ágeis, habilidosos de velho cirurgião-músico. Ao terminar, eu, às vezes colhia as suas mãos pousadas, inertes sobre o teclado, e as observava cuidadosamente, examinando-lhes os mínimos detalhes, o que parecia diverti-lo. Um dia eu as beijei após o seu concerto para mim. Sim, porque eu considerava que era só para mim que ele tocava... e ele deixava que eu pensasse assim. Depois, ele me punha no colo para conversarmos sobre música, sobre os compositores. Contava-me estórias e anedotas de suas vidas, e eu me transportava para aquele mundo, onde me via companheira deles, e precocemente, suas amadas. Sim, todas elas. Eu me identificava com suas musas, que meu pai descrevia com reverência, denunciando o seu fascínio pela mulher... pela beleza da mulher-musa, que ele próprio não desfrutava, mais tarde eu percebi. Minha mãe era tudo, menos isso... Sua retidão inflexível, a gradativa amargura, sua visão prática da vida, regida por um excessivo sentimento de dever, devotada à família e ao homem que a escolhera. Sim, porque ela deixara-se escolher, passivamente, e eu nunca pude sentir nela um grande amor pelo Vati, como eu projetava, em minha imaginação incendiada pelo mundo romântico dos artistas: músicos, poetas e pintores daquele maravilhoso século XIX.

Depois, ele passava a colher nas estantes os grandes tomos, para mostrar-me as ilustrações de Gustave Doré, ou de Flaxman (no caso da Ilíada e Odisséia), e freqüentemente lia para mim alguns trechos escolhidos daquelas obras. E eu derramava lágrimas de encantamento, e mais, por aquilo estar sendo transmitido por ele, com aquela carga afetiva, com aquele sentimento de identificação e de doação que ele tinha para comigo. Eu era a sua esperança, agora eu sei, o seu repositório de sonhos, e se possível, da cultura artística que ele não tinha mais a quem legar, já que as minhas irmãs não se emocionavam com aquele universo, e viviam metidas na cozinha, ou nos trabalhos práticos em torno da Mutti. Rôdo era um caso à parte. Mas elas eram excelentes bordadeiras sem alma, e seus trabalhos não me interessavam. Eu preferia imaginar a infindável teia de Penélope, no tear, reconstruindo as aventuras do seu amado Odisseu, como ela as imaginava a partir das narrativas vagas dos soldados retornados, para segui-lo naquele seu acidentado percurso em direção à ela mesma. Eu me identificava com ela, essa rainha que eu sabia detentora da verdadeira fidelidade: a da imaginação cúmplice, e do verdadeiro devotamento, o da alma apaixonada, que eu não via em minha mãe.

Felizmente, ela, Ana Morgado, tinha o bom senso, pelo menos, de não interferir nessa relação de pai e filha, cujas afinidades eram quase absolutas, à exceção do mundo obscuro, para mim, incompreensível, da Medicina, que eu rechaçava de minha imaginação, como coisa sanguinolenta, feia e crua. Nunca pude compreender, com os meus sentidos, o fascínio que ele tinha por isso que eu considerava a desmitificação da carne, já que eu a via e queria assim: perfeito invólucro da alma, cheio de beleza e personalidade, de brilho e sensualidade.

Minha mãe temia sobretudo isso: a sensualidade precoce, que ela via em mim. E procurava reprimi-la, sem conseguir, já que exalava de mim pelos meu poros, pelos meus movimentos, pequena estudante de euritimia e de balé, duas disciplinas opostas, que o Vati experimentava conjugar em mim. Mas, mesmo sem isso, essa sensualidade, antes de tudo, era inata nos meu movimentos, e vindas da beleza que me acompanhava sempre, como todos diziam, desde o meu nascimento. Muito branca, como até hoje, com meus olhos verdes, rasgados, e o cabelo louro com reflexos arruivados, essa beleza era o que produzia uma certa complacência, até mesmo em minha mãe, que do contrário trataria de castrar-me completamente, ou de reprimir-me todos aqueles vôos, que na verdade, pelo menos ela tolerou. À exceção daquele dia aziago...

Em Rôdo eu tinha um companheiro de aventuras, e um confidente, pois para as experiências novas e os achados, havia em nós cumplicidade. E nas descobertas físicas, sim, de nossos próprios corpos, que se atraíram tão cedo.

Rôdo, naqueles dias descobrira o beijo, nos meus lábios... e isso disparara nele um desejo crescente que ressoaria no meu próprio desejo nascente pelo corpo do outro, do belo ser humano, puro, criança como eu. Seus beijos tornaram-se mais longos, até deixarem meus lábios dormentes e intumescidos. Minha mãe fixava os seus olhos nos meus lábios vermelhos, eu percebia. Ela desconfiava? Sim, pois ela nos surpreendeu afinal, sob a nossa macieira. Solange nos delatara, e sob aquela árvore, que eu considerava por instinto um símbolo da minha vida, e em cujo tronco eu gravara um coração, com as iniciais A e R , que produziam a palavra que resume a consistência e o segredo da alma: ar, atmosfera, sopro, inspiração, entusiasmo; ela nos surpreendera, nuzinhos, deitados lado a lado, com minha mão sobre o “pintinho’ de Rôdo, enquanto sua pequena mão cobria emocionadamente, minha “conchinha”, como nós dizíamos.

Surpreendidos, fomos agarrados por Ana Morgado, pelos cabelos e erguidos. Instintivamente demo-nos as mãos, que foram brutalmemte separadas, e arrastados pelos pulsos, enquanto com palavras rascantes, quase aos gritos, ela nos ordenava que cobríssemos nossas “vergonhas” com a outra mão. Conduzidos impiedosamente sob as risadas de alguns peões, no trajeto, até em casa, expulsos do nosso pomar, que nos seria proibido por muito tempo, talvez para sempre.

Em casa, presenciamos o drama e as lamentações, os protestos de vergonha e pecado, da Mutti, enquanto meu pai ria complacente, bonachão, sábio, tentando acalmá-la, apaziguá-la. Lembro-me mais de suas palavras, do que da catilinária de minha mãe:

—Ana, que exagero, não sabes que as crianças são assim? Nunca leste Freud, sua ignorante... É normal a curiosidade infantil, é normal, não sabias? Deixa-as, não as traumatize! Não as escandalizes. Fazes mal, sabias?

“Vem, minha flor”, ele me abraçou e me alçou ao colo, nuínha e em lágrimas, e passou a mão na cabeça de Rôdo. “Não os toque, eles estão nus!” minha mãe gritava. E meu pai: “Vão se vestir e voltar a brincar. Mas chega de experiências, hem? Chega, Ana pára com esse drama! Deixa as crianças em paz!

Sua imensa autoridade, pacificadora, serena, sua sabedoria, sua generosidade... me salvaram. Imagino que também a Rôdo. Meu irmão se tornaria um terrível namorador, erótico como um sátiro, e eu... não menos. Minha alma de ninfa se salvaria, eu não me tornaria uma prostituta como minha mãe, no fundo, antevia. Mas eu amaria e desejaria tudo: homens e mulheres, com igual intensidade, panteísta, pan-amorosa, eu me salvaria talvez pelo excesso, não sei. Mas, ao mesmo tempo, aquela dor me acompanharia para sempre, como uma injustiça, uma imputação de pecado original, que eu não reconheceria nunca, e contra a qual eu me rebelaria sempre, não como bravata, mas do fundo da alma indomável, com que o próprio Deus me dotara.

01/08/2005

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