sábado, 1 de setembro de 2007

A Filósofa

24/05/2006

Dos Contos Secretos de Alma Welt


Contatei uma professora de filosofia, pois sinto necessidade de aprofundar-me nalgumas questões concernentes ao Orfismo, que surgiram de maneira surpreendente nos meus textos. Mas, é claro, eu a escolhi por tê-la visto na graça de sua beleza encantadora e jovem, na televisão, numa palestra sobre o amor erótico, que se tornou mais sugestiva e instigante graças à figura privilegiada da mestra, e o seu charme feminino, coisa rara nesse mistér, altamente intelectual, perdoem-me as feministas mais extremadas.
Tássia, a filósofa, tem uma delicada figura, muito branca, de olhos castanhos, e cabelos negros anelados, de ondas miúdas, de egípcia antiga, ou de grega, que me faz pensar numa figura imaginária de Cleópatra, já que os bustos em mármore, atribuídos como retratos da rainha egípcia, não correspondem à imaginação geral, contemporânea. A professora em questão veste-se de preto, pois como diz ela com uma auto-ironia charmosa e irresistível, “o preto deixa as mulheres com um ar inteligente”. Apaixonei-me por ela depois dessa “coquetterie ” intelectual, ao mesmo tempo tão feminina. A mulher bonita, que tem tal coragem de, aparentemente, não levar-se muito a sério, é irresistível, e conquistou-me imediatamente. Tratava-se, agora de conseguir aproximar-me dela, de cativá-la com meus próprios charme e beleza, pois a moça sendo uma estrela nascente, anda muito requisitada, além de dar aulas de filosofia numa grande universidade. Comecei por telefonar para a emissora de televisão para tentar conseguir o número de seu telefone, o que não foi fácil, pois não estavam autorizados a fornecê-lo. Afinal, consegui o seu site e com ele o seu e.mail. Comecei por mandar-lhe mensagens misteriosas e instigantes, demonstrando um conhecimento profundo de certas áreas da filosofia, para despertar nela a curiosidade sobre a minha pessoa. Ela percebeu, senti, pela sua primeira resposta, estar tratando com uma poeta, o que pra mim foi gratificante, já que isso é mesmo o que sou. A filosofia e a poesia são atividades da mente, muito afins, e freqüentemente se confundem, em certa medida, embora não devamos esquecer as impressionantes palavras do grande crítico inglês Herbert Reed, a propósito de Shakeaspeare: “o Poeta, não é um filósofo, nem um moralista, vivendo ao seu bel-prazer, somente em sintonia com o cristal terrível de uma mente intuitiva”.

Depois de algumas semanas de troca de correspondência poético- filosófica, em que não deixei de insinuar minha atitude de admiradora um tanto sensual de sua pessoa, coisa que procurei fazer de maneira muito camuflada e sutil, para não levantar a lebre, isto é, para não assustar a moça filósofa, um tanto arisca, na verdade. Tássia, no entanto, se mostrava encantadora na nossa correspondência, como se no fundo desse corda à sua admiradora um pouco além de intelectual, pois a vaidade feminina estava presente nela como em todas as mulheres bonitas, e ela traía a sua sensualidade, nos seus e.mails, embora buscasse um certa seriedade, como o psicanalista atraído pela sua cliente, que ele não curará nunca, para mantê-la na sua teia, no labirinto de sua paixão camuflada. Assim, chegamos, Tássia e eu, às confissões, às confidências gradativamente mais eróticas, de nossas vidas, já que o erotismo era uma de suas especialidades, em filosofia, pelo menos. Mas eu já imaginava esta linda mulher na cama, sim, no meu leito, onde faria sua mente portentosa parar por um segundo infinito de orgasmo, nas minhas mãos hábeis, experientes, afinal.

Chegou, enfim, o dia de nos conhecermos pessoalmente. Já nos correspondíamos havia meses, e estávamos, por assim dizer, “no ponto”, eu queria crer. Combinado o local e a hora, uma discreta casa de chá no centro da cidade, a meio caminho de nossas residências, mas não como um terreno neutro, mas bem ao contrário: muito íntimo e reservado, sugerido por ela, o que considerei ótimo sinal. Sentada numa mesa a um canto mais reservado, que escolhi, esperei minha nova musa, com certa impaciência e expectativa. E afinal, de repente ela entrou, linda, um tanto produzida, o que considerei um ótimo sinal de deferência, embora seja mesmo para as outras mulheres que nos vestimos. Mas naquele momento, meu coração deu um salto, e meus olhos se encheram de lágrimas de emoção. Levantei-me estendi as minhas mãos para ela, que igualmente emocionada, segurou e aproximando-as de seu seio como para mostrar-me suas batidas aceleradas. Ela tinha um ar de encanto e surpresa por defrontar-se com a beleza inesperada de sua admiradora, de sua discípula como ela já me considerava, com ligeiro auto-engano. Abraçamo-nos apertado, sentindo os nossos respectivos perfumes naturais, sob nossas colônias discretas, se é que isso é possível. Sim nós nos farejamos como duas fêmeas, essa é que é a verdade, e nossos cheiros combinaram, não se repeliram: nós seríamos uma da outra! Era só questão de mais um dedo final de conversa, que, no entanto, não foi possível, ou sequer necessária. Sorvendo o chá em silêncio, nossos olhares não se desviavam, mergulhados um no outro. Não cogitamos de filosofar, nada precisava ser dito, depois de meses de correspondência, a partir daquele encontro que se revelou puramente sensitivo, sensível, emocional, e... apaixonado. Sim, ela também estava apaixonada, era evidente, malgrado uma aliança de casada em seu dedo, que me surpreendeu. Ela segurou minhas mãos sobre a mesa e disse:

—Alma, querida, como me surpreendeste-( ela também era gaúcha!)- com a tua beleza! Eu esperava uma moça bonita, mas não isso... Tu és linda, inimaginavelmente linda-(fiquei mais comovida ainda)- e não me furtarei a qualquer coisa contigo. Vamos sair daqui, vamos para a tua casa. É possível, você é solteira, mora sozinha?
Eu estava em lágrimas de emoção e felicidade. Minha linda filósofa me amava, e esse era o coroamento de minha vida, dedicada à poesia e ao amor. Eu estava consagrada e ainda me esperavam dias ou noites de prazer inaudito, no leito, com minha musa, onde eu provaria na prática o verdadeiro conhecimento de seu tema predileto: o amor erótico.
Saímos dali abraçadas, minha mão em sua cintura fina, delicada, e à saída paramos de repente para um beijo em nossos lábios, para espanto arregalado de um garçon. Caminhamos de mãos dadas até o seu carrinho, numa transversal próxima e rumamos para os Jardins. Ela ansiava conhecer o meu ateliê de que já lhe falara nos meus e.mails. Eu sabia que ela, também artista plástica, a julgar pela capa de um livro seu, que me deu com dedicatória, ficaria deslumbrada com a beleza do meu ateliê, tão elogiado pelos eventuais compradores e marchands.
Sei que estou sendo muito superlativa nesta narrativa, onde tudo é belo, grande e positivo. Mas que posso fazer se a minha vida é assim? Na nossa época em que o grotesco, o doentio, a miséria e o crime predominam na nossa literatura, e na realidade quotidiana de tantas pessoas, eu sei como soam estranhos tanta beleza e encanto com o ser humano. Mas nisso é que consiste a mensagem de minha vida, desta Alma privilegiada, que soube ser digna de tantos privilégios de nascença. Jamais me verão blasfemar contra a beleza da vida, do amor e da arte. Se vivo como uma idealista romântica, tenho direito a isso, pois a minha copiosa e sincera obra, pela força de sua beleza assim me legitima. Dito isso continuo a narrar a minha aventura romântica com a filósofa.
Chegadas ao meu prédio, entramos pela garagem, subindo então pelo elevador de serviço aos beijos, apesar da câmera perigosa no alto, que ignoramos. Ao entrarmos no apartamento, Tássia realmente deslumbrou-se, com tudo, com minhas telas e as ilustrações, minhas e as do Guilherme de Faria para os meus poemas editados em folhetos. Mas não podíamos nos conter mais, e ela, mulher casada, surpreendeu-me tomando a iniciativa e puxando-me pela mão para o meu próprio quarto. Ali nos desnudamos, embevecidas pela beleza dos nossos corpos. Afinal, vocês notem, eu escolhera uma filósofa pela sua beleza, não sou hipócrita: “A Beleza é a verdade, a Verdade é a beleza”, diz o verso do grande John Keats, eu mencionei isso a ela, que me calou os lábios, com seus dedos, sabiamente, e me puxou ao leito sobre si, como um suave lençol branco de verão.
Passamos a nossa noite de delícias, mergulhando na nossa carne deslumbrada, e sugando os sumos copiosos da nossa paixão, que eu não imaginaria efêmera, jamais.
Adormecemos abraçadas, coladas, os lábios muito juntos, sentindo nossos respectivos alentos pela madrugada adentro, e eu derramava lágrimas de felicidade. Eu não estava só. Eu nunca mais estaria só, que esse tinha sido sempre o meu supremo temor. Ao amanhecer levantei-me nua, para ir preparar o nosso café da manhã, que seria digna da minha princesa filósofa. Entrei com a farta bandeja para servi-la na cama e a encontrei linda, nua, sentada no leito, me esperando com um sorriso triste, enigmático, que estranhei. Após a lenta refeição que funcionou como um suspense um tanto alarmante, ela parou de sorver o café, fez um longo silêncio, os olhos nos meus, sem abaixá-los, e disse:
—"Alma, minha querida, devo deixar-te. Tivemos a nossa noite de amor, e jamais me arrependerei disso. Vou carregar essa noite comigo para sempre e jamais a renegarei. Mas não posso continuar com isso. Amo meu marido e sou-lhe mais fiel do que imaginava. Ele não merece que o deixe, que o traia. Passamos muitas coisas juntos, grandes sacrifícios: ele ajudou-me a fazer o meu doutorado, sustentando-me durante os anos difíceis de estudo. Devo partir, Alma, antes que não consiga mais, pois a tentação é enorme, eu poderia ser feliz contigo, para sempre. Mas sou uma estóica, agora vejo, e não uma hedonista, ou uma epicurista, como eu pensava. Se ficar contigo, o remorso dentro de mim vai minar nossa felicidade, eu o vejo claramente. Em pouco tempo tudo estaria perdido. Eu sei, é duro deixar-te agora, que estamos tão apaixonadas". – Ela tocou com os dedos as minhas lágrimas, que corriam, e provou-lhes o sal, com sua língua – Mas, ah! –(ela suspirou)- deve ser assim, tu sabes.
Eu soluçava, enquanto ela assim falava. De cabeça baixa, eu entreguei-me a uma dor profunda, em meu peito, onde corria como um filme, em flash-backs, os momentos cruciais da minha vida, a partir de minha expulsão do paraíso infantil, de minha macieira, com meu Rôdo, e todas as infinitas perdas de uma vida amorosa renitente, em minha busca teimosa da felicidade. Que não terminaria nunca...

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