quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Pequeno conto de amor e sangue (de Alma Welt)


Pintura de Guilherme de Faria


Ando muito inquieta, ansiosa. Todavia, não pensem vocês que sou mais uma vítima da t.p.m. que assalta tanto as mulheres. Não sou dada a isso. Aliás, devo dizer, que me orgulho do enorme prazer que a menstruação me causa, sabendo que isso já constitui um fato raro. Sinto uma verdadeira volúpia em sangrar, e confesso, sinto-me tão plena nessas ocasiões, que chego a deixar o sangue escorrer pelas minhas pernas muito brancas, apreciando o contraste, e imaginando a surpresa de um possível observador, voyeur, dessa cena insólita e até mesmo chocante.
Estando, portanto, nesse estado, e sensualizada ao extremo, não propriamente fragilizada, mas comovida comigo mesma, coloco a contragosto um absorvente nada íntimo, agora, pelo menos para vocês, meus leitores, e saio para ir ao vernissage do talentoso pintor que descobri, na galeria que também expõe o meu trabalho.
Chego à galeria, lotada, denotando o grande sucesso, ou pelo menos o prestígio do pintor, e vejo, perdoem-me a imodéstia, alas se abrirem para me deixar passar em direção ao expositor, que interrompe o diálogo com uma bela moça, para me estender as duas mãos. Por um momento pensei ser esse gesto sinal de uma possível homossexualidade, visto que os homens só estendem as duas mãos para uma moça, quando são gays, ou então, quando velhos e paternalistas. Não que isso fosse importante, pois gosto dos gays, mas a verdade é que neste momento, estou cheia de segundas intenções, esta é que é a verdade.

Leonardo é um homem maduro, mas extremamente jovem, no aspecto geral, desbarrigado, e com aquelas atraentes têmporas brancas, a barba por fazer, e os cabelos revoltos, caóticos mesmo. Veste um jeans perfeito, que valoriza sua cintura de toureiro, e sua bundinha empinada, mas ao mesmo tempo viril. Sinto-me terrivelmente atraída por este homem, por este artista, e venho, já alguns dias, premeditando entregar-me a ele. Mas, pasmem, tem que ser assim: menstruada, sangrenta... ou nada. Sei que posso parecer louca, mas vocês leitores já me conhecem, e, portanto não tenho mais motivos para pudores.

Fico ali, depois dos cumprimentos, e elogios mútuos, conversando demoradamente com ele, olhos nos olhos, tendo sido aberto um vácuo, ou melhor uma clareira em torno de nós , eu percebi, num certo momento, e que podia estar denunciando uma paixão recíproca, nascente, que as pessoas tendem a respeitar. Com nossos copos de vinho na mão, tornando nossos lábios ligeiramente mais rubros e úmidos, e as palavras mais escolhidas, olhos nos olhos, nossas mãos esquerdas, instintivamente se procuraram e ficamos assim, de mãos dadas, conversando sobre... nada. Não saberei jamais dizer do que falávamos. Sei que arrancaram, a uma certa altura, o pintor de mim, e o resto do vernisage passamos a olharmo-nos de longe, ansiosamente, ou a vagar como sonâmbulos pelos outros convidados, que devem ter considerado, pelo menos a mim, no mínimo bêbada, pois não conseguia mais concatenar uma conversa, responder a uma pergunta, mal reconhecendo as pessoas.

Afinal, como eu esperava, senti a sua enorme mão, forte, no meu braço, conduzindo-me para fora da galeria e a seguir empurrando-me para dentro do seu carro esporte, partindo em disparada. Não me lembro mais do itinerário nem do que ele falava no caminho. Mas recordo algo do elevador, onde ele já me “atacou”, beijando-me com sofreguidão, enquanto agarrava-me os seios, com um vigor excessivo, ligeiramente doloroso, enfiando a outra mão entre minhas pernas, sob a calcinha, e arrancando o meu absorvente que atirou para trás por cima do ombro. Neste momento a porta do elevador se abriu diante de um casal burguês estupefato à nossa saída. Eu mal tivera tempo de recolher do chão o absorvente encharcado de sangue, carregada em seu ombro, como uma sabina de elevador, em pleno flagrante de rapto. Eu apenas não esperneava, como se espera de uma cena como essa.

Percebemos, apesar de tudo, que o casal não entrou imediatamente no elevador, e ficou ali parado, olhando-nos de olhos esbugalhados, enquanto Leonardo, diante de sua porta, procurava a chave nos bolsos sem retirar-me de seu ombro, como um fardo precioso, que não pudesse pousar, enquanto eu, de cabeça para baixo, fazia um singelo e cândido aceno de mão para o casal.

Mas, infelizmente pude ouvir, no último momento, o que tive de lutar para não deixar contaminar, estragar a minha noite maravilhosa e sangrenta:

–PUTA!

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Nota da editora:

Este conto revelou-se um dos preferidos dos leitores no site Leia livro onde Alma o publicou. Há quem o considere uma obra-prima pela maestria e precisão de linguagem com que foi escrito, além da graça do episódio em si, que se percebe ser uma crônica, verdadeira como tudo o que a Alma escrevia, pois ela mesma era o tema e personagem de suas estórias, contos, poemas sonetos e romances, sempre de tom confessional ou autobiográfico. Entretanto, a qualidade maior de seu texto reside no fato de que ele transcende a mera individualidade e alcança o universal pela profundidade da sua visão e abrangência de sua experiência vital. (Lucia Welt)

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