terça-feira, 4 de setembro de 2007

Depois do epílogo (de Alma Welt)

Depois do Epílogo

(Dos Contos secretos de Alma Welt)

Hoje, após um pequeno incidente, que narrarei, ocorreu-me o pensamento de que as verdadeiras estórias começam depois que terminam. Isto pode parecer um paradoxo, à primeira vista, mas deixem-me explicá-lo.
Acordei esta manhã com o interfone soando, um tanto cedo, me pareceu, e estremunhada, levantei quase revoltada, ao mesmo tempo que curiosa. Seu Ermírio, o porteiro, pergunta-me se Aline está aqui, pois sua mãe quer falar com ela, quer subir imediatamente, ele diz, um tanto receoso. Peço-lhe que segure a megera lá em baixo, o mais tempo possível, para que eu possa me arrumar para recebe-la. Detesto que me peguem desprevenida. Sinto-me feia ao olhar do outro ser humano, e passo a nos odiar, a ambos
Depois de um banho rápido, escovando ao mesmo tempo os dentes, enxugo-me passando uma escova nos cabelos. Pronto, posso receber a importuna, e anuncio isso ao interfone. Passado um minuto, dona Aurélia estoura na minha sala-ateliê.
–Alma, bom dia, menina, me desculpe, mas vim pedir-lhe que você receba Aline de volta, a seu serviço. Não agüento mais ver minha filha tão infeliz. Nunca a vi assim ao terminar um contrato, ela chora dia e noite. Eu não consigo ter um diálogo com minha filha há muito tempo, você sabe. Na verdade desde que o pai dela nos deixou. Ela só conversa com sua avó, minha sogra, dona Giulia. Mas não me contam nada. Elas me descartam, me rejeitam, essa é que é a verdade. Mas sou mãe, e não posso ver minha filha infeliz. Porque a senhora não quer continuar com ela como modelo? Ela só falava na senhora... como é bonita (estou vendo), e como pinta bem. Há algo estranho... mas não posso ver minha filha sofrer. Você não pode chamá-la, para mais uma série de quadros? Ela é tão bonita, e posa tão bem!
—Dona Aurélia- eu disse- estou tão infeliz quanto ela. Minha vida, como que parou... (eu hesitei, percebendo o perigo crescente das minhas palavras). Mas, não dependeu de mim, dona Aurélia, esse desenlace da nossa relação... profissional. Foi os ciúmes do Pedro, ao ver meus quadros, ao ver a beleza de Aline melhor celebrada, que nas fotografias dele. Foi isso, dona Aurélia. Uma lástima... mas, talvez reversível, pois estou empenhada em conseguir que o Pedro permita a ela voltar a trabalhar para mim. Quem sabe isso volte a acontecer ( suspirei profundamente).
Servi um café a dona Aurélia que saiu um pouco mais animada. Eu mentira um pouco. A verdade é sempre uma lâmina de dois gumes. Nunca pode ser dita sem chocar ou magoar alguém nesta vida. Ou “uma faca só lâmina”, como disse o verso do grande João Cabral. A mentira é bem mais benigna que a verdade. É, pelo menos, a tentativa de pôr um grande pano quente sobre as dores, ou sobre a crueldade dos fatos.
A verdade é que a visita surpreendente de dona Aurélia renovou minha esperança de reatar com Aline, de voltar a ter a minha amada junto a mim novamente, mesmo que ainda tivesse de continuar a compartilhá-la com aquele Pedro. Como a vida é patética! Ou será minha vida, que é assim, devido à minha carência, a minha vulnerabilidade? Eu estava disposta a mais humilhação, como o preço a pagar pela presença preciosa de Aline, junto a mim, nas minhas mãos, novamente. Ah! A cobiça do amor, a fome, a sede, do desejo! Como somos movidos pelas nossas paixões! Sim, mas como me sinto viva, no torvelinho!
Eu mentira à dona Aurélia sobre a natureza real da minha relação com Aline. Ela, evidentemente, ainda não desconfiava de que sua filha, modelo, pudesse ser... amante da pintora, vamos falar claro! É muito difícil encontrar uma mãe que aceite isso, estou bem consciente. Mas, a mim cabia lutar pelo meu amor, pela realização do meu desejo, mesmo incorrendo numa certa omissão da verdade, quer dizer, mentiras mesmo. Eu sabia agora que Aline sofria. Eu iria, portanto, tê-la de volta.
Fui procurar Vânia, em sua casa, minha amiga querida que há tempos eu na via, que já fora minha namorada, e que Aline não conhecia, por isso mesmo. Sabendo que ela não me negaria nada, pedi-lhe um grande favor: que ela telefonasse para a agência de modelos que me fornecera Aline, se cadastrasse como pintora, pedisse o catálogo de modelos, escolhesse Aline, e a contratasse. Depois deixasse o resto comigo. Vânia concordou, dizendo:
—Alma, querida, o que eu não faria por ti, meu amor! Quero que você seja feliz, e a ajudarei no que for preciso. Mas quero, em troca, que esta noite você passe aqui comigo. Só mais esta noite!
Concordei sem hesitar. Ela bateu palmas e deu pulinhos de alegria. Eu me enterneci e a beijei nos lábios. Tive que detê-la, a seguir, para podermos trabalhar o meu plano.
Vânia, comigo ao lado, orientando-a, ao telefone e depois ao computador, realizou todos os trâmites da transação e conseguiu o contrato de Aline. Com a ajuda entusiasmada de minha amiga, que estava se divertindo, preparei sua sala um tanto burguesa, como um ateliê, para isso levando para lá numa perua de frete, cavalete, telas, e farto material de pintura. Uma vez preparado o cenário, combinei com ela, que recebesse Aline no dia e hora combinados, vestindo um guarda-pó de pintora, novo, que eu comprara e manchara bastante de tinta, e com uma paleta saturada na mão, e um pincel. Não é preciso dizer que levei dúzias de pincéis de todos os calibres, e espalhei-os pela sala em potes sujos. Pintei com esboços figurativos inúmeras telas procurando disfarçar o meu estilo, como se fosse uma pintora bem diferente de mim. Creio que fui bem sucedida, e pendurei algumas dessas novas obras, substituindo os quadros fracos que havia por ali, e pelo chão, encostadas nas paredes.
Depois de tudo preparado, pus–me no meio da sala transformada em ateliê, deixei cair minha roupa, e fiz então uma pose charmosa de modelo nu, com os braços estendidos em direção à minha querida amiga. Eu me sabia o seu prêmio, enquanto ela corria para mim e me tomava em seus braços, cobrindo-me de beijos!

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No grande dia, acordei nos braços de Vânia e despertei-a também para prepararmo-nos para receber Aline. Após um demorado banho, juntas, em que brincamos muito, em meio a gritinhos, vestimo-nos e penteamo-nos condignamente. Coloquei o guarda-pó manchado de todas as cores, sobre a roupa de Vânia, desmanchei-lhe um pouco o cabelo, e dei uma pincelada em sua bochecha, enfim, fantasiei-a de pintora. Ríamos muito enquanto fazíamos esses preparativos.
Finalmente, à hora combinada, soou o interfone e Vânia pediu para a Aline subir. Eu, com o coração acelerado e profundamente emocionada, permanecia no quarto, mordendo o travesseiro para não gritar.
Vânia recebeu Aline, que estendeu-lhe a mão, apresentando-se, lançou os olhos em torno e perguntou se podiam começar. Imediatamente começou a desnudar-se colocando seu indefectível jeans, camiseta e calcinha sobre uma cadeira, enquanto era observada com certa surpresa e deslumbramento por Vânia, depois ela me revelou. Então permaneceu inerte como uma boneca, com os braços caídos, pronta para ser manipulada para encontrar e armar a pose. Aí estava um momento importante do meu plano.
Vânia delicadamente virou-a para a parede oposta, de costas para a o corredor que levava ao quarto, e começou a cantarolar com sua linda voz, que era a senha combinada por nós, enquanto a manipulava por trás, colocando-o numa pose em que ela não podia ver o que se passava atrás de si. Ao ouvir o canto de Vânia entrei descalça na sala silenciosamente, pé ante-pé, substituindo Vânia que recuou, também silenciosamente e sumiu no corredor. Ela, na verdade ficaria observando, meio escondida. Eu comecei a manipular, emocionadamente a minha Aline, tocando suas espáduas e pernas, mas por trás, para que minhas mãos não fossem vistas por ela, cujo rosto permanecia imóvel, devido ao seu grande profissionalismo. Então, com meus toques muito suaves, sensuais, pareceu-me que ela começou a reconhecer o meu estilo, a maciez das minhas palmas, a sabedoria dos meus dedos. Sua respiração se alterou, seu peito começou a arfar, sua respiração se acelerando, denunciando sua emoção crescente. Minha respiração acompanhava essa aceleração, eu quase não consegui continuar com aquilo, cuja meta era fazê-la descobrir, e... render-se.
Mas foi o meu cheiro (um dia ela me diria), subitamente reconhecido por ela, que a fez voltar-se com um grito de alegria e cair nos meus braços colando sua boca à minha.
Ali, sobre um tapetinho fôfo, no meio daquele cenário de falso ateliê, observadas, em lágrimas de enternecimento e também de uma ligeira inveja pela minha linda e querida cúmplice, eu possuí Aline, minha amada, que assim voltara para mim, com todas as forças e recursos de minha imaginação apaixonada!

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