sábado, 1 de setembro de 2007

Minha Doutora Jensen (crônica de Alma Welt)

Quando estive internada na Clínica(...) em Alegrete, eu conheci a querida doutora Jensen, da qual falei em algumas cartas. Essa mulher admirável, cinqüentona, bela, vivida, culta, e dedicada (uf! não há adjetivos suficientes ou predicados para descrevê-la ) se tornou uma amiga profunda, mais do que minha médica. Que digo? Uma verdadeira mãe para mim, que me descubro carente, já que perdi a minha muito cedo, além de não ter sido muito próxima dela por... digamos, falta de afinidades e incompreensão mútua. Além disso eu era demasiado fixada no Vati, meu pai, que me supria de tudo, até de carinho físico, que Ana Morgado, a Mutti, não sabia dar.

Mas, prosseguindo, a doutora Jensen apegou-se a mim, creio, tanto que aceitou o convite de Rodo, meu irmão, para que viesse passar suas férias aqui na estância, e assim podermos continuar minha terapia, unindo o útil ao agradável. Foi um período esplêndido, e eu contei alguns momentos importantes, para a Andréa* nos e.mails que lhe enviei em Janeiro daquele ano.

Depois dos primeiros dias de sua estadia, em que a par das sessões de terapia, nós cavalgamos lado a lado, pela pradaria (e ela revelou-se uma excelente amazona) eu convidei para nadar comigo no poço da cascata. O dia estava maravilhoso, claríssimo, e a água cristalina. Já contei a vocês que não consigo nadar com qualquer coisa sobre o meu corpo, maiô, biquíni, calcinha, nada. É uma idiossincrasia que tenho. Assim, enquanto a doutora tirava sua roupa, ou melhor, emergia com seu maiô um pouco antiquado, por baixo, eu já estava nua, e como sou muito branca, devo dizer que isso aparenta uma nudez maior, mais ostensiva. Quer dizer: eu fico espantosamente nua.

A doutora Jensen, embasbacada, pôs a mão na boca e olhou para todos os lados e disse, temerosa.

–Alma, não faça isso, podemos ser visitas!

Eu dei uma pequena gargalhada, percebendo na sua exclamação, como a minha nudez parecia contagiosa, isto é, comprometia a digna senhora, e por associação ou simples proximidade a deixava nua também. Então eu disse:

—Doutora, não há perigo. Conheço bem isto aqui. É privativo. Ninguém vem aqui (não era verdade). A senhora deveria tirar também seu maiô. Experimenta. É muito mais gostoso. É voluptuoso nadar pelada... é outra coisa! Vamos, doutora, vamos, tira!

Ela hesitava sorrindo com a mão na boca. Afinal abaixou a parte de cima do maiô, mostrando seios bastante bons, apesar de sua idade. Como sou muito atrevida, eu os toquei levemente com a palma, fazendo-lhe um carinho. Ela corou até a raiz dos cabelos. Então eu puxei o seu maiô para baixo até os tornozelos e ela, com a mão já cobrindo o púbis de fartos pelos negros, levantou um pé, depois o outro, permitindo portanto que eu a despisse. Então, lentamente ela retirou a mão dali e ficou assim, os ombros ainda um pouco recolhidos, ofegante, rindo, deslumbrada com a sua própria audácia, encantada com essa experiência nova na sua tão rica vida.

Eu pensava comigo: tão simples, tão primordial, a nudez! Como nos afastamos do natural... quê houve conosco? Haverá isso mesmo, os ecos de um “pecado original”, e um anátema, em nós? Por quê a vergonha de algo tão belo?

Mergulhamos na água deliciosa e brincamos por uma hora. Eu mergulhava, tocava-a e ela dava gritinhos como uma guria. Ela estava feliz, diferente do que era, sem autoridade, sem sequer a sua sabedoria... que se tornara desnecessária. Éramos, naquele momento, duas crianças do paraíso.

Então saímos da água, deitamos na maior das pedras da margem do poço. Olhando o céu, molhadas, ofegantes, felizes. Eu não era, nem por sombra, a sua paciente semi-louca, que soluçara algumas vezes diante dela, e até em seus braços. E ela não era a doutora sábia, ultra profissional, experiente. Éramos tão somente duas gurias felizes e inocentes.

Então, a doutora suspirou, ergueu-se num cotovelo, virou-se sobre mim. Mirando-me nos olhos e disse:

—Alma, querida, quero beijar-te, é o que quero, agora.

Ela aproximou seu rosto e beijou profundamente, docemente, meus lábios, com a mão no meu seio, e num momento eu me derreti de amor por essa mulher madura, pela minha doutora Jensen.

Ficamos algum tempo nos beijando, acariciando mutuamente nossos seios e púbis, nossas vulvas que sentíamos ensopadas, como duas coleguinhas de colégio interno, até que ela sobressaltou-se com um grito estridente de um pássaro junto com uma rajada de vento, olhou para cima, as nuvens se adensando, escurecendo e levantou-se para pegar as suas roupas.

Vestimo-nos nos olhando e em torno. E sorrindo. Voltamos abraçadas sob a chuva, e alguns relâmpagos e trovões, e no caminho do casarão, para o almoço que nos esperava, ela foi ficando séria e quase triste. Parou, olhou-me nos olhos e disse:

—Alma, minha querida, não posso mais ser sua terapeuta. Não é mais possível, nem sequer permitido. Tudo mudou, não tenho mais autoridade moral para orientá-la , ultrapassamos a barreira estabelecida pela terapia, pela ética médica. Nenhuma análise resistiria ao que aconteceu entre nós. Tenho obrigação de afastar-me e recomendá-la a um colega.

Eu fiquei estarrecida. Estendi minha mão suplicante, para ela. Eu não pensara nisso! Eu não queria perdê-la! Eu exclamei:

—Doutora! Não! Não me abandone! Eu preciso da senhora. Eu...

Minha analista, a majestosa doutora Jensen, fez um gesto para me deter, enquanto a chuva recrudescia e o mundo trovejava, virou-se de costas, os ombros encolhidos, ofegante. Então, subitamente aprumou-se, virou-se com os braços estendidos para mim e, bem alto, acima dos fragor da chuva, dos ventos e dos trovões, gritou:

—DANE-SE O MUNDO! ALMA! MINHA ALMA... EU TE AMO!


12/11/2006
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Nota
*Andrea- Alma conta toda a sua experiência de internação numa clínica, e sua relação psicanalítica com a doutora Jensen, numa série de cartas por e.mail, à sua amiga Andrea, uma jornalista, numa correspondência que forma um romance epistolar-virtual (Cartas a Andrea) que a poetisa manifestava o desejo de um dia ver publicado, por reputar a sua obra mais reveladora. É curioso notar que a poetisa chegou a publicar algumas dessas cartas num outro site literário da Internet, de onde foi expulsa, depois de sete meses de imenso sucesso, num estranho episódio, que motivou um grande escândalo, por ocasião da notícia de seu falecimento.

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