sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Nosso muro proibido (de Alma Welt)

Quando guria, ainda em Novo Hamburgo, antes de mudarmo-nos definitivamente para a estância, eu, e Rôdo aproveitávamos ao máximo o casarão em que vivíamos, quase sem sair à rua, além do período escolar, graças a um imenso quintal com jardim, horta, pomar, e muitas flores, que chegavam até um imenso muro de pedras que era o limite intransponível, dos nossos “domínios”, como gostávamos de falar, entre nós, pomposamente, quando fantasiávamos de nobres, nas nossas brincadeiras. Eu era, naturalmente, sempre uma princesa, e Rôdo o meu fiel cavaleiro, já que nunca era o irmão somente, mas o amado.

Sim, era intransponível o grande muro, pois nos era proibido galgá-lo, transpô-lo, como uma das poucas regras peremptórias do nosso pai. Ou era de nossa mãe, esse mandato? Não sei bem. O fato é que esse muro representava, ou ocultava um mistério, que instigava nossa curiosidade. Do jeito que o Vati nos criava, essa restrição nos parecia instigante, e não demoraríamos a transgredi-la.

Uma noite, fui ao quarto de Rôdo, que ficava, por sua escolha, na pequena mansarda do casarão, pois era o único menino, enquanto eu tinha que dividir o quarto com minhas duas irmãs. A Mutti não queria que eu subisse à mansarda em momento nenhum, sendo essa, outra restrição que eu não respeitava. Ela, na certa, temia algo que naturalmente se passava entre nós, a nossa profunda cumplicidade, eu supunha. Ali, naquela noite sentada na cama de meu irmão combinei com ele transpormos o muro, na noite seguinte, quando todos tivessem se recolhido aos seus quartos.

Assim combinados, na noite seguinte, eu esperaria Solange e Lúcia adormecerem, e sairia do meu leito, pé-ante-pé, para encontrar-me com ele no fundo do quintal. Ele daria um rápido assovio, cuja modulação combinada era a nossa senha, pois necessitávamos uma certa ritualização para a nossa aventura, que estava, é claro, dentro do contexto de nossas fantasias cavalheirescas. Era uma noite quente, de verão, eu trajava um vestido leve, e meus indefectíveis sapatinhos de verniz, que ficariam esfolados ao escalar o muro.

Rôdo fez-me subir nos seus ombros depois de fazer um estribo com as mãos para eu apoiar meus pés. Devo dizer que Rôdo aproveitou para empurrar-me pela bundinha, por baixo da saia, com evidente intenção, que me produziu uma espécie de cócegas, agradável, eu achei. Mas eu estava tomada pela curiosidade e emoção da aventura, pela perspectiva de conhecer o lado obscuro do quintal, da quadra, do mundo... ou simplesmente do vizinho desconhecido. Logo estávamos no quintal de uma casa estranhamente iluminada com luzes vermelhas, um tanto escura, mas que, misteriosamente, não parecia soturna, e sim alegre, pois vindos de dentro ouviam-se risos, gargalhadas e suspiros nada tristes.

Eu estava excitada, e meu coração batia acelerado. Dei a mão a Rôdo, e caminhamos em direção à porta dos fundos. Assim que adentramos, ali, numa fascinante cozinha, fomos interceptados por uma moça espantosa, muito pintada, com os seios praticamente de fora, e roupas transparentes, que fumava um cigarro com piteira, coisa que eu jamais vira antes. Com um ligeiro ar de surpresa, a moça abriu um indescritível sorriso manchado e disse:

—Ora, ora, o que temos aqui! Dois lindinhos! De onde vocês saíram? Fugiram de casa? Ou vieram buscar seu papai?

Entreolhamo-nos, confusos, intimidados, Rôdo e eu, e de mãos dadas batemos em retirada, saímos correndo pelo mesmo percurso, sentindo-nos perseguidos pela gargalhada da moça, uma gargalhada estranha, que anos depois eu iria identificar como “vulgar”, mas que naquele momento me soou assustadora. Galgamos aquele muro de volta, pelo mesmo método, mas com maior rapidez, e atravessamos nosso quintal, para logo estarmos de volta ao quartinho de Rôdo, no sótão, para podermos conferir nossas impressões e emoções. E sussurrando, para não despertarmos ninguém, eu tinha muitas perguntas:

—Rôdo, quem era aquela moça? Como ela conhece o Vati? Porque ela perguntou se viemos buscá-lo? Papai estava lá? Ele não está dormindo no quarto, com a Mutti?

Rôdo, olhou-me de maneira enigmática, sem sorrir, e respondeu-me:

—Alma, acho que o papai conhece aquela casa, sim. Ele sai, às vezes, de noite. Aquela moça sabia quem somos. Sou capaz de apostar que ele não está em sua cama. Eu pediria para ires verificar, dizendo que tiveste um pesadelo. O Vati te poria na cama com eles, até a Mutti te expulsar, como sempre. Mas não vou faze-lo. Tenho certeza que ele não está lá. E prefiro que fiques comigo, que passes a noite aqui, que durmas junto de mim. Algo me diz que é o que devemos fazer. Vem Alma deita aqui, e vamos dormir abraçados, como os adultos fazem.

Aninhei-me nos braços do meu irmãozinho, guri magnífico, que sabia sempre como agir, me parecia. Sabia sempre o que fazer, e quanto a mim... sentia-me segura em seus braços, fizesse ele o que fizesse, eu sabia que meu coração acompanharia suas ações, pela vida afora.

22/05/2006

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