quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A Pianista (conto de Alma Welt)


                                                              

          Retomo a minha vida no Brasil., em meu ateliê da rua... Aqui sinto-me realmente em casa. Creio que não poderia viver muito tempo longe das margens da rua Augusta, esse “rio” inglório, que, no entanto me é tão familiar, como se estivessem aqui as minhas raízes.

              Um amigo gaiato, um dia, a propósito disso, disse, parodiando o    postulado eclesiástico : “Ex Iardinis nulla salvis.” Fora dos Jardins não há salvação. Ah! Doce amigo! Ah! amigos e amigas da minha vida. Como os amo, eu, que no entanto sou tão solitária. Essa é a contradição da minha vida: não poder viver nem sem, nem com o ser humano muito perto. Tal como o alcoólatra avançado, em relação ao álcool. Remédio e veneno, ao mesmo tempo. E como amam esse veneno! Como amo o ser humano, do qual sinto que devo me defender, não ferozmente, mas suavemente... para poder continuar falando dele... e para ele, e ouvindo-o com paixão... e desconfiança.

              Não quero mais envolver-me amorosamente, por um bom tempo. Se  possível. Eis que toca o interfone.

             –Sim, pode subir. Obrigada, seu Ermírio.( seu Ermírio é um  novo porteiro, nordestino, muito simpático, que me pediu para escrever versos de cordel, o que farei, certamente. )

               Abro a porta para uma moça encantadora. Judia, de olhos cor de mel, rosto como um camafeu hebraico ( existe isso?), cerca de 28 anos, muito branca, leitosa... e voluptuosa em sua sensualidade oriental. Sim, porque essa moça é sabra, como ela se define, após cinco minutos de conversa. E...  uma pianista!. Ela diz:

               –Hesitei um pouco, Alma,  em procurá-la. Sabia que você é descendente de alemães, Welt, não é mesmo? Eu fui muito influenciada por meus pais, em Israel, para evitá-los, aos alemães. Meus pais herdaram de meus avós esse trauma, que certamente não é meu. Não quero que seja. Já estive na Alemanha, tocando. É a terra ideal da Música. Sobretudo para o piano. Fui bem acolhida. Salvo por um único espectador que retirou-se, ostensivamente de um recital meu, em Hamburgo. Na verdade, aquilo me chocou e estragou aquela cidade para mim. Pareceu-me toda ela nazista, disfarçada, e que aquele homem representava o verdadeiro rosto daquela cidade. Mas, nas outras, não voltei a ter essa sensação... estranhamente, aliás. Não sei, desconfio um pouco da minha própria formação... No entanto, assim que a vi, na galeria, Alma, assim, tão loira, tão alemã no aspecto... e tão bela, não tive medo de você, senão uma enorme atração... e admiração. Eu estava no seu vernissage. Você brilhava, era uma estrela. Não ousei aproximar-me. A noite era sua e eu queria observá-la, incógnita. Foi o que fiz a noite inteira. Voltei no dia seguinte à galeria, para olhar melhor os seus quadros.  Maravilhosos! E eu passei a querer vê-la em seu ateliê e ... fazê-la ouvir-me tocar, para si.

    

 

              Olhei Tova, seus olhos brilhavam, ela estava emocionada. Toquei suavemente o seu rosto. Essa pequena judia me conquistara imediatamente. Será que foi por causa de suas homenagens à minha pessoa? Não, ela me atrairia mesmo sem isso... Esse rosto tão doce. Essa nostalgia no olhar, que parece sonhar com a terra prometida... do amor, ou da musica. Esse rosto espiritualizado, de artista. Sim, eu queria ouvi-la tocar. Imediatamente, se possível. Disse-lhe:

                —Sim , Tova, quero ouvi-la tocar. Sinto-me honrada, por isso. Estou ansiosa. Quando? Quando posso ouvi-la?

                 Ela olhou em volta e disse: — Você não tem um piano aqui, que pena.  Seria sublime, neste momento, após ter-me tocado o rosto...Mas... você não pode vir comigo agora? Venha, venha até o meu piano. Vou tocar para você, só para você.

                —Sim, Tova, deixe-me tirar esta roupa de trabalho. Estou suja de tinta. Espere um pouco.– Entrei no meu quarto e me troquei rapidamente. Percebi-me escolhendo uma bela roupa e passando um leve baton. Porque  estou me enfeitando? Bem, o momento exige. É um momento precioso, de homenagem e encantamento. Merece o meu cuidado. Uma pianista... e concertista internacional! Como a minha vida é maravilhosa, por esses privilégios! Devo ser grata!

                     Saímos juntas e descemos no elevador, olhando-nos nos olhos em silêncio. A esta altura, sinto conhecê-la há séculos, e parece ... que ela a mim.   

                     Entramos em seu carro e tocamos para o Jardim Europa. Paramos em frente a uma belíssima casa em estilo normando, com o telhado azul, de ardósia. Ao abrir a porta já avisto o enorme piano de cauda. Tova encaminha-se rapidamente para ele, abre a tampa do teclado, senta-se na banqueta, mas logo levanta-se, encabulada e pergunta: —Você quer alguma coisa, Alma? Uma água, um suco, ou um café? E o que você gostaria de ouvir?

                  –Não, Tova, quero somente ouvi-la. Toque...  o que você escolher para mim.

                    Tova abaixou os olhos, pousou os dedos sobre as teclas e tocou. Tocou divinamente um prelúdio de Chopin, que eu ouvia desde a infância. Aquilo me fez dar um gemido e um soluço. As lágrimas saltaram. Tova tocou e tocou. Deu todo um concerto para mim. Satie, Ravel, Fauré, mais Chopin, Debussy, depois Poulenc. Eu estava no céu. Quando ela parou, eu chorava tanto, que ela ficou preocupada, e levantou-se da banqueta e correu a abraçar-me.

                  Ficamos abraçadas muito tempo, em lágrimas, as duas. Sempre fui muito chorona. Mas de emoção, de ternura, de alegria! A arte é tudo, o amor é tudo, o resto é nada...

                  Afinal, com os ombros úmidos, nos desenlaçamos e olhamo-nos sorrindo, muito tempo. Tínhamos nos encontrado.

                 Perguntei: –Tova, com quem você mora aqui? Essa é a casa dos seus pais?

                —Não, Alma, moro aqui com o meu marido. Não uso aliança, pois modifica o peso da minha mão, ao tocar. Há quem diga que isso é um absurdo... ou o cúmulo da sutileza técnica... mas é assim, comigo. Quanto a ele, não está no momento. Ele é banqueiro, Alma, passa o dia no Banco, ou na Bolsa de Valores. Só volta à noite. Temos o resto da tarde para nos conhecermos. Depois se você quiser ficar para jantar... meu marido, Davi, é muito cortês. Certamente gostará de conhecê-la. Eu já falei de você para ele, mas ele não viu a sua exposição. Ele não tem tempo para muita coisa.. Na verdade, só para o dinheiro. Eu não me importo. Ele me deu esse maravilhoso piano e posso tocar à vontade. Ele não interfere. Desde que eu vá a todos os Bar Mitzva de seus sobrinhos e casamentos de sua família. E dance a Hava Nagila, toda vez. No mais...Paga-me as passagens de avião, hotéis e tudo o mais para os meus concertos. Na verdade não posso me queixar de nada. A não ser de uma certa solidão espiritual e artística, nesta casa. Você sabe, dinheiro e arte fazem uma união espúria, mas antiga e necessária. Cresci tocando um piano de armário, em Israel. Mas desde que sentei frente a um Steinway negro... não posso deixar por menos. Você sabe... mas, Alma, deixe-me contar algo importante: pedi a Davi que me dê um quadro seu de presente.

Um grande quadro, que já escolhi. Ele é um pouco avarento, mas disse-me que negociará com você. Não quero que ele regateie, eu morreria de vergonha. Quero que ele pague o que você pedir. Nem um tostão a menos.

                —Tova- disse eu- pressinto que será penosa essa transação. Não sou boa comerciante. Não aceito que pechinchem, nem sei cobrar bem o meu trabalho. Por isso, os marchands fazem isso por mim. Vou lhe dizer o que fazer: trocar o meu trabalho pelo seu. A minha arte pela sua. Dê-me mais um concerto como esse, e escolha o quadro que você quiser. É o mais justo... e satisfatório. E assim não meteremos dinheiro no meio desse nosso encontro tão bonito. 

                    Tova sorriu e segurou a minha mão. Eu senti que naquele momento eu subira ainda mais no seu conceito. Seus olhos brilhavam.

 

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                   Ficamos esperando o rei Davi, bebericando. Pontual, ele chegou num carro com motorista, e com a indefectível pasta de homem de negócios. Esperávamos na sala, um pouco solenemente... e coradas. Davi olhou-nos, pousou a pasta na mesinha de centro, e trauteando uma cançoneta, estendeu-me a mão, ao mesmo tempo que me olhava e beijava sua esposa no rosto. Reparei nos traços de ave rapinante, no nariz, tipicamente judaico e nos seus olhos azuis acinzentados. Não deixava de ser um belo tipo de judeu. Não como Paul Newman, mas...

                   Tova então disse:

               –Davi, esta é Alma, a artista de que lhe falei. Fui buscá-la no seu ateliê. Davi, Davi, você precisa ver o seu ateliê, que lindo, que quadros! Por falar nisso, já escolhi o quadro que quero. E você não precisa se preocupar. Já me entendi com Alma quanto ao pagamento.

                Davi ficou de olho parado. Olhou-a e a mim, por um momento, depois disse:

               –Bem, Tova, posso saber os termos dessa transação? Sim porque ainda não fui informado do preço da obra, formas de pagamento, descontos, e tudo o mais, não é mesmo? Mas não falemos disso agora. Vamos jantar primeiro. Alma, você vai experimentar a nossa comida Kosher. Você vai gostar. Acomode-se. Tova mande servir o jantar – disse ele tirando o quipá do bolso do paletó e pondo-o na parte de trás da cabeça, em equilíbrio meio instável. 

                O repasto transcorreu agradavelmente, em termos, pois o Davi era  reticente e irônico. Tinha um olhar de raposa e estava louco para me espicaçar. Como sempre faço nessas situações, desarmo meu oponente reunindo toda candura de que posso dispor, e adiciono uma pitada de ambigüidade. Os predadores se desnorteiam. Já não sabem se sou uma ingênua total ou uma irônica mais sutil que eles. Sempre dá resultado.

                 Mas, Davi, sentindo em mim uma presa difícil, ficou mais instigado ainda. Como bom banqueiro fora do expediente, resolveu tentar me comprar, só por dever de ofício... e para comprovar sua visão do mundo que se resumia numa única premissa: Todo mundo tem seu preço... e só os loucos não podem ser comprados. Tive pena da pobre Tova, que eu agora percebia prisioneira de uma armadilha configurada por um grande Steinway negro, e um estoque inesgotável de partituras, além, é claro, de contratos com teatros e salas de concerto famosos, no mundo todo. Olhei Tova, e ela sorria tristemente... a bela refém da arte, suave lírio do Hebron.        

                  Alma—disse Davi—O que você faz para viver? Me desculpe perguntar.  Sim porque é impossível viver de arte, mormente neste país. Veja Tova, tem meu patrocínio, naturalmente. Claro que ela merece tudo isso. É uma grande pianista, como você, provavelmente, já pôde perceber. Mas e você, Alma, já tem algum patrocinador? Pode-se ir muito longe com isso. Você sabe, os artistas precisam de partituras e pianos, de tintas e de telas, não é mesmo? Tenho muito afeto por vocês artistas e até os invejo, um pouco. Vocês criam, não é mesmo? Vocês têm esse dom. Nós, homens de negócios, só transformamos, ou transferimos. Nada criamos, na verdade. Vocês têm o sopro divino. Ninguém pode tirar isso de vocês. Mas, sem um bom empurrão, o boneco de Deus pode permanecer imóvel, paralisado. É preciso pegar no tranco, como diz o povo, não é mesmo? O que quer você , Alma, da vida?  Fale-me de você.     

                 
               –Davi – disse eu- da vida eu quero a Vida, a Arte e  a Natureza. “O  amor que move o sol e as estrelas.” E como já tenho tudo isso, nada mais quero, que ambição, deslocada, se não é pecado, é  defeito de caráter, não é mesmo?

               —Não, não é mesmo, Alma. Nunca ouvi falar que ambição fosse defeito de caráter. Meus pais eram bons moralistas, e cresci ouvindo deles: “Davi, você não tem ambição o bastante, Davi. Você precisa tê-la em dobro, menino. Não se pode crescer, não se vai longe sem ambição, Davi. Essa lição, afinal me serviu e... veja onde estou. Tenho o meu próprio império e até mesmo minha própria pianista, não é mesmo, Tova? No bom sentido, naturalmente. Note que pus no mesmo pé, o império e a pianista, e sua música. É motivo de orgulho, claro, ter-me casado com Tova e... ela não pode se queixar de falta de incentivo, não é mesmo, Tova?

                Tova permanecia calada, com um sorriso triste, meio constrangido até, percebendo, provavelmente, o equívoco de um combate assim entre dois contendores com armas tão diferentes.  Eu descortinava naquele momento, toda a história patética e melancólica, da pequena prisioneira na torre do grão-duque, que passava o dia a cantar, ou melhor, a tocar seu instrumento, na esperança do cavaleiro andante passar embaixo, no sopé da torre, para começar a verdadeira vida, do amor, senão da arte. Meu coração encheu-se de compaixão pela bela princesinha judia e eu quis por um momento, não ser mulher e artista, mas um cavaleiro armado da cabeça aos pés. Por empatia, imediatamente me senti muito próxima de Tova e resolvida a salvá-la por amor. Sempre fui doida. Respondi a Davi, em lugar de Tova:

                –Senhor banqueiro, Tova deve estar muito contente com o seu patrocínio e até mesmo grata, não é mesmo, Tova? A gratidão é a virtude dos nobres. Quem disse isso? Bem, não importa. Mas você conhece a fábula do lobo e do cachorro. Aquela, da marca da coleira. Pois é, também não vem ao caso — (eu, de repente, me arrependi do que estava falando. Eu certamente estaria magoando a pobre Tova. Eu não deveria subestimá-la para defender-me de Davi. Isso não seria bonito ou válido. No entanto continuei):– Bem, devo ser uma loba sarnenta, não é mesmo? É tarde demais para ser um pastor alemão. Mas, falemos de Arte: Tova tocou divinamente, hoje. Senti-me muito honrada, com um concerto completo só para mim. Jamais podia esperar uma coisa dessa em minha vida. Por isso quero trocar a minha maior e melhor tela por um novo concerto, já que o de hoje me foi ofertado de graça. Não sou tão generosa quanto ela, pois se o fosse já lhe teria ofertado também uma tela.

                 Tova ficou um tanto espantada e confusa, mas abriu afinal a boca, já que esteve calada o tempo todo até agora.

                 —Alma, Davi, parem com isso! Vocês estão duelando há quase uma hora. Nunca vi coisa igual. E o pior é que me  elegeram para pivô dessa discussão velada. Não concordo nem com um nem com outro. Não vejo as coisas assim... Mas confesso que estou perturbada com esse diálogo de vocês. Não quero que nada perturbe a torre de marfim que construí para poder exercer a minha arte. A música para mim é tudo. Eis a questão. Os mestres precisam ser celebrados. Nós, músicos, somos seus sacerdotes, apenas isso. Devemos cultuá-los, para que não morram nunca. Para que sua música não morra. Veja o que aconteceu aos antigos deuses. Os homens deixaram de cultuá-los, eles não morreram mas adoeceram e se transformaram em neuroses. As doenças do espírito. Não é isso que Jung dizia? Mais ou menos isso, me parece. Sou uma sacerdotisa  da Música, se não uma Vestal dos grandes Mestres porque durmo com o Davi. O resto não me interessa. Mas agradeço o seu carinho, Alma, e o seu “patrocínio”, senhor meu marido. Agora vamos à sobremesa, que está divina. Comamos e bebamos, que amanhã, talvez morramos. Lembram-se da cantata Carmina Burana?

                     

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               Depois de ter sido levada até o meu prédio por  Davi e Tova, e me despedido deles como novos amigos, fui deitar-me. Mas somente depois de  digerir com a mente os acontecimentos e diálogos, pude afinal conciliar o sono, murmurando Tova... Tova...

               Acordei com uma sensação de fome, e instintivamente levei a mão ao pescoço. Sorri aliviada e fui fazer o café, para em seguida poder começar a pintar.

               Depois de uma hora de trabalho, o telefone toca. É Tova, com sua voz macia, sussurrante, que pergunta-me se passei bem a noite. Diz que quer ver-me hoje, se possível. Digo a ela que hoje não posso, pois tenho que terminar umas telas encomendadas, mas que a sua encaminharei para sua casa brevemente. Vou cuidar da embalagem e do despacho, o frete será pago  pelo banqueiro, certamente. Tova pareceu ficar um pouco frustrada. Pelo jeito quer mesmo ver-me ainda hoje. Digo então, que venha ao meu ateliê no fim da tarde, assim não perderia o dia de trabalho.

              Passo um dia maravilhoso, pintando ao som das minhas árias favoritas das óperas que amo. Parei de pintar com o Lamento de Federico, da L’arlesiana de Francesco Cilea (è la solita storia del pastore ...) que me confrange o coração com uma estranha nostalgia. Começo a chorar copiosamente. Isso me acontece freqüentemente. Choro demais, de comoção, com a beleza, com a poesia, com o sentimento do mundo, do amor. E sinto uma dor profunda pelo sentimento do belo. Por que sou assim, por que  a vida me dói, suavemente, sobretudo pela sua beleza? Uma saudade, uma nostalgia de não sei quê, rege minha vida. Será de vidas e amores passados? Certamente que sim. Ai, quanta dor, quantas perdas, quanta beleza fruída... e perdida. Nesses momentos queria também morrer, não de qualquer desespero, mas de suave tristeza, “malinconia”.

                Afinal, no fim da tarde, tendo o dia rendido boas pinceladas e um satisfatório avanço nas telas começadas, toca o interfone, e, atendendo, mando subir  minha nova amiga. Percebo, com certa surpresa, meu coração bater mais forte , quando abro a porta para recebê-la.

               Tova entra, suave, deslizando... Abraçamo-nos e reparo na sua boquinha de lábios túmidos, sensuais. Não resisto, beijo-a nos  lábios. Ela sorri e retribui. Em seguida atraio-a com meus lábios, rodando as duas pelo ateliê numa estranha valsa, até a porta do quarto. Ó lírio de Israel, ó Terra Prometida, agora entendo seu chamado ancestral...   

 

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               De repente tive vontade  de rir, pensando em Davi. Ele não poderia comprar-nos. O que tínhamos uma com a outra, ele jamais poderia ter. Era também inexprimível. Nada comparável a uma relação homem-mulher, mas muito mais sutil e profunda.

               Eu sentia agora que deveria reinvindicar essa jovem judia como minha. Seria mais belo, e também mais divertido. Eu iria disputá-la com Davi. Diria a ele:

              “–Davi, seu banqueiro, sua mulher agora me pertence. Ela não quer mais a sua coleira, eu a retirei, e agora ela passeia livre pelo meu atelier. Ali não há um Steinway negro, mas ela dedilha meu corpo com uma virtuose, e a musica escorre”.  Ai, que fantasia imaginar-me dizendo isso ao banqueiro!...

                Não, não direi nada. A hora é de ação. Firmar o meu domínio pela minha sensualidade. Deixar que ele veja com os seus, o mel dos olhos de sua mulher sobre esta pintora aqui. Ah! Como tudo isso me diverte. Não! Como tudo isso me entusiasma! Nunca antes senti a dubiedade de um amor assim...

                Olhei novamente Tova nos olhos e certifiquei-me de que eu não me iludia. O mel de seus olhos realmente escorria. Essa moça me amava. Ela estava apaixonada como eu. Derrubaríamos o Banco.

 

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              Tova não voltou para casa. Permaneceu vivendo comigo por dois anos Circulávamos nos “meios”, incomodando os escribas e os fariseus. Inseparáveis, nos vernissages, nos concertos e nas festas. Acompanhava-a também, nos seus concertos, em geral beneficentes. Por alguma razão as portas dos grandes teatros e salas de concerto estavam agora fechadas para ela. Claro que nós sabíamos por quê. Além disso não havia mais Steinway negro, senão seu velho piano de estante, que era o que cabia em meu ateliê. Ainda assim eu continuava consciente do grande privilégio de ter essa maravilhosa pianista tocando enquanto eu pintava. Eu a amava e era feliz. No entanto, o primeiro ano foi de guerra psicológica por parte de Davi. Chegou a ameaçar-me, mas envergonhou-se logo. Suas armas eram eficazes em relação aos homens, nunca contra uma mulher como eu. Seria como ameaçar uma donzela com uma luta de boxe. Era ridículo. Sentiu-se impotente depois de várias tentativas, súplicas, ameaças, vociferações, vergonhas, tentativas de suborno. Sobretudo isso. Até chegar na indefectível “proposta indecente”:

              –Alma, quero fazer-lhe uma oferta. Dou-lhe 1 milhão de reais se você me devolver Tova, e mais 1 milhão, se vocês vierem juntas para mim. Que tal? É irrecusável!

             Apreciei o seu cinismo. Respondi-lhe:

             –Davi, posso responder por mim, não por Tova. Comigo ela é livre, pode escolher. Por mim a resposta é não. Você já leu a fábula, já sabe. Mas, realmente não posso responder por Tova. Se ela quiser voltar para você, nada poderei fazer. Não faço uso do poder. Tova começa a se sentir triste longe do seu piano. Na verdade não poderei retê-la por mais muito tempo. Eu a vejo chorar, às escondidas, à noite. E se ouvimos música em rádio ou em CD, ela soluça de cortar o coração. Ela precisa tocar o seu piano, ou vai fenecer. Precisa também daquelas grandes platéias. Já não posso satisfazê-la, apesar 

de nos amarmos tanto. Se você disser a palavra certa, se tocar o seu coração, ela irá com você. Mas lembre-se: Tova é uma jóia rara. O “último lírio do Hebron” como eu a chamo. Você tem de respeitá-la, acima de tudo. E servi-la, sim . Servi-la. Pois ela é uma princesa da música, essa é a pura verdade.

               Davi olhou-me longamente, e percebi-o, pela primeira vez, comovido. Senti que esse homem duro, esse homem de negócios , fora atingido. Estava derrotado. Paradoxalmente, poderia agora conquistar sua vitória.

               Com certa humildade, afinal, agradeceu-me, beijando-me o rosto. Toquei minha face com a mão, onde ele a beijara, e senti que eu, afinal, perdera Tova. 

               Naquela noite, Tova fez a sua mala. Abraçamo-nos em lágrimas e levei-a até  o Davi que a esperava na portaria. Eles partiram sem nenhuma palavra mais entre nós três. Tudo já fora dito.

               Tudo já fora sentido.  Por um momento, Tova me pareceu uma menininha buscada pelo seu pai, um pouco envergonhada. Mas eu sabia que seu piano a esperava e também as salas de concerto do mundo.

 

                                                 FIM

                                                                                                    25/10/2002

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