sexta-feira, 7 de setembro de 2007

A prisão (de Alma Welt)

(Capítulo sétimo do romance A Ara dos Pampas, segundo tomo do quarteto A Herança, de Alma Welt)


De volta à estância, com Aline, eu procurei assimilar esta primeira derrota judicial, e preparei-me para encontrar uma estratégia de defesa, para o contra-ataque de Solange, que eu sabia que viria em seguida.
Aline parecia um pouco assustada com a perspectiva de me ver como ré de um processo de seqüestro, e talvez de roubo, pelo menos. Quanto às outras ameaças, eu não acreditava que elas estivessem no código penal, embora incorressem num perturbador escândalo social.
Solange jamais deveria saber do tesouro da caverna, ou ela incluiria isso no processo. E nós não achávamos, sinceramente, que ela tivesse qualquer direito a ele, não depois de nos espoliar do nosso vinho precioso.
Eu procurava não me preocupar demais, mas me reunia metodicamente com o doutor Loredano, para discutir os aspectos do processo, e os perigos que eu corria.
Afinal chegou a citação. Fui intimada a comparecer a uma delegacia de Novo Hamburgo, e indiciada por seqüestro, incesto e lesbianismo. Protestei imediatamente, assistida pelo doutor Loredano, e por Aline, que estava muito assustada. Eu não estava disposta a assumir aquela palavra, pelo tom pejorativo que emprestam a ela, mas o delegado adiantou que isso fazia parte da acusação, nominalmente, embora não coubesse pena eventual para aqueles dois “crimes”. Isso me pareceu arbitrário e exigi que retirassem esses dois últimos itens do laudo de indiciação, pois não eram crimes previstos na lei. Mas o delegado recusou, revelando-se nada condoído da minha situação. E logo percebi que era, de alguma forma, interesse dele reter-me em sua delegacia, pois resolveu (pasmem!) encarcerar-me imediatamente até o dia seguinte, enquanto o doutor Loredano, abalado, saiu afobadamente para providenciar o habeas-corpus, para que eu pudesse enfrentar o processo em liberdade. Pelo visto, Solange conseguira testemunhos do meu crime, e eu não acreditava que isso partisse da pobre Alícia... ou, talvez, esta tivesse sido pressionada demais, ou mesmo chantageada, já que tinha um filho pequeno.
Eu fiquei aterrorizada, ao ser levada (enquanto Aline gritava, separada à força de mim), para uma cela coletiva, cheia de mulheres, já que eu não tinha o superior completo.
O delegado e o carcereiro botaram-me numa cela onde havia umas doze mulheres, de aspectos diversos, a maioria prostitutas e ladras, que se alvoroçaram com a minha entrada, e me devoraram com os olhos. Uma delas, masculinizada, muito forte, exclamou: “Carne nova no pedaço!” Temi pela minha integridade física. Virei-me imediatamente e agarrei as grades, o rosto colado a elas, para olhar para fora, tremendo, e balbuciei baixinho uma súplica, que os carcereiros não levaram em conta, sadicamente.
Então, uma força divina, subitamente desceu sobre mim. Virei-me e olhei compassivamente as mulheres todas, uma a uma, que se aproximavam. Elas estacaram e recuaram, enquanto eu me dirigi para o centro da roda que formaram, e sentei-me no chão, em posição de lótus. Elas, então, uma a uma se acocoraram ou sentaram, em torno, no início de um cerimonial que se impôs pelo olhar, ou pela aura que apareceu em mim, depois eu soube. Nós iríamos celebrar, juntas afinal, alguma coisa importante para todas nós mulheres, algo de que estávamos terrivelmente necessitadas, e que nos congraçava.
De manhã, lá pelas oito horas, o doutor Loredano, com Aline, chegou com o habeas-corpus que apresentou ao delegado e a seguir entraram na carceragem. A cena que encontraram iría espantá-los e comovê-los:
Eu, Alma Welt, estava ali, no meio das ovelhas desgarradas, cujos olhos apresentavam uma nova pureza e deslumbramento, atentas à estória que eu contava naquele momento, depois de tantas pela madrugada, e umas poucas horas de sono sem desfazer aquela roda. Se tivéssemos mil e uma noites, nós as usaríamos para aquele desfiar de estórias, que nos fascinavam, que nos redimiam, que nos uniam num mesmo encantamento, a narradora e as ouvintes atentas e maravilhadas. Eu não me lembraria de um momento, assim, mais apoteótico, em minha vida de narradora. Minha vida estava justificada... e mais: estava celebrada!

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