quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Pequeno conto de amor e sangue (de Alma Welt)


Pintura de Guilherme de Faria


Ando muito inquieta, ansiosa. Todavia, não pensem vocês que sou mais uma vítima da t.p.m. que assalta tanto as mulheres. Não sou dada a isso. Aliás, devo dizer, que me orgulho do enorme prazer que a menstruação me causa, sabendo que isso já constitui um fato raro. Sinto uma verdadeira volúpia em sangrar, e confesso, sinto-me tão plena nessas ocasiões, que chego a deixar o sangue escorrer pelas minhas pernas muito brancas, apreciando o contraste, e imaginando a surpresa de um possível observador, voyeur, dessa cena insólita e até mesmo chocante.
Estando, portanto, nesse estado, e sensualizada ao extremo, não propriamente fragilizada, mas comovida comigo mesma, coloco a contragosto um absorvente nada íntimo, agora, pelo menos para vocês, meus leitores, e saio para ir ao vernissage do talentoso pintor que descobri, na galeria que também expõe o meu trabalho.
Chego à galeria, lotada, denotando o grande sucesso, ou pelo menos o prestígio do pintor, e vejo, perdoem-me a imodéstia, alas se abrirem para me deixar passar em direção ao expositor, que interrompe o diálogo com uma bela moça, para me estender as duas mãos. Por um momento pensei ser esse gesto sinal de uma possível homossexualidade, visto que os homens só estendem as duas mãos para uma moça, quando são gays, ou então, quando velhos e paternalistas. Não que isso fosse importante, pois gosto dos gays, mas a verdade é que neste momento, estou cheia de segundas intenções, esta é que é a verdade.

Leonardo é um homem maduro, mas extremamente jovem, no aspecto geral, desbarrigado, e com aquelas atraentes têmporas brancas, a barba por fazer, e os cabelos revoltos, caóticos mesmo. Veste um jeans perfeito, que valoriza sua cintura de toureiro, e sua bundinha empinada, mas ao mesmo tempo viril. Sinto-me terrivelmente atraída por este homem, por este artista, e venho, já alguns dias, premeditando entregar-me a ele. Mas, pasmem, tem que ser assim: menstruada, sangrenta... ou nada. Sei que posso parecer louca, mas vocês leitores já me conhecem, e, portanto não tenho mais motivos para pudores.

Fico ali, depois dos cumprimentos, e elogios mútuos, conversando demoradamente com ele, olhos nos olhos, tendo sido aberto um vácuo, ou melhor uma clareira em torno de nós , eu percebi, num certo momento, e que podia estar denunciando uma paixão recíproca, nascente, que as pessoas tendem a respeitar. Com nossos copos de vinho na mão, tornando nossos lábios ligeiramente mais rubros e úmidos, e as palavras mais escolhidas, olhos nos olhos, nossas mãos esquerdas, instintivamente se procuraram e ficamos assim, de mãos dadas, conversando sobre... nada. Não saberei jamais dizer do que falávamos. Sei que arrancaram, a uma certa altura, o pintor de mim, e o resto do vernisage passamos a olharmo-nos de longe, ansiosamente, ou a vagar como sonâmbulos pelos outros convidados, que devem ter considerado, pelo menos a mim, no mínimo bêbada, pois não conseguia mais concatenar uma conversa, responder a uma pergunta, mal reconhecendo as pessoas.

Afinal, como eu esperava, senti a sua enorme mão, forte, no meu braço, conduzindo-me para fora da galeria e a seguir empurrando-me para dentro do seu carro esporte, partindo em disparada. Não me lembro mais do itinerário nem do que ele falava no caminho. Mas recordo algo do elevador, onde ele já me “atacou”, beijando-me com sofreguidão, enquanto agarrava-me os seios, com um vigor excessivo, ligeiramente doloroso, enfiando a outra mão entre minhas pernas, sob a calcinha, e arrancando o meu absorvente que atirou para trás por cima do ombro. Neste momento a porta do elevador se abriu diante de um casal burguês estupefato à nossa saída. Eu mal tivera tempo de recolher do chão o absorvente encharcado de sangue, carregada em seu ombro, como uma sabina de elevador, em pleno flagrante de rapto. Eu apenas não esperneava, como se espera de uma cena como essa.

Percebemos, apesar de tudo, que o casal não entrou imediatamente no elevador, e ficou ali parado, olhando-nos de olhos esbugalhados, enquanto Leonardo, diante de sua porta, procurava a chave nos bolsos sem retirar-me de seu ombro, como um fardo precioso, que não pudesse pousar, enquanto eu, de cabeça para baixo, fazia um singelo e cândido aceno de mão para o casal.

Mas, infelizmente pude ouvir, no último momento, o que tive de lutar para não deixar contaminar, estragar a minha noite maravilhosa e sangrenta:

–PUTA!

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Nota da editora:

Este conto revelou-se um dos preferidos dos leitores no site Leia livro onde Alma o publicou. Há quem o considere uma obra-prima pela maestria e precisão de linguagem com que foi escrito, além da graça do episódio em si, que se percebe ser uma crônica, verdadeira como tudo o que a Alma escrevia, pois ela mesma era o tema e personagem de suas estórias, contos, poemas sonetos e romances, sempre de tom confessional ou autobiográfico. Entretanto, a qualidade maior de seu texto reside no fato de que ele transcende a mera individualidade e alcança o universal pela profundidade da sua visão e abrangência de sua experiência vital. (Lucia Welt)

"Maternidade"- óleo s/tela de Guilherme de Faria, de 50x60cm- coleção particular, São Paulo

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

A Pianista (conto de Alma Welt)


                                                              

          Retomo a minha vida no Brasil., em meu ateliê da rua... Aqui sinto-me realmente em casa. Creio que não poderia viver muito tempo longe das margens da rua Augusta, esse “rio” inglório, que, no entanto me é tão familiar, como se estivessem aqui as minhas raízes.

              Um amigo gaiato, um dia, a propósito disso, disse, parodiando o    postulado eclesiástico : “Ex Iardinis nulla salvis.” Fora dos Jardins não há salvação. Ah! Doce amigo! Ah! amigos e amigas da minha vida. Como os amo, eu, que no entanto sou tão solitária. Essa é a contradição da minha vida: não poder viver nem sem, nem com o ser humano muito perto. Tal como o alcoólatra avançado, em relação ao álcool. Remédio e veneno, ao mesmo tempo. E como amam esse veneno! Como amo o ser humano, do qual sinto que devo me defender, não ferozmente, mas suavemente... para poder continuar falando dele... e para ele, e ouvindo-o com paixão... e desconfiança.

              Não quero mais envolver-me amorosamente, por um bom tempo. Se  possível. Eis que toca o interfone.

             –Sim, pode subir. Obrigada, seu Ermírio.( seu Ermírio é um  novo porteiro, nordestino, muito simpático, que me pediu para escrever versos de cordel, o que farei, certamente. )

               Abro a porta para uma moça encantadora. Judia, de olhos cor de mel, rosto como um camafeu hebraico ( existe isso?), cerca de 28 anos, muito branca, leitosa... e voluptuosa em sua sensualidade oriental. Sim, porque essa moça é sabra, como ela se define, após cinco minutos de conversa. E...  uma pianista!. Ela diz:

               –Hesitei um pouco, Alma,  em procurá-la. Sabia que você é descendente de alemães, Welt, não é mesmo? Eu fui muito influenciada por meus pais, em Israel, para evitá-los, aos alemães. Meus pais herdaram de meus avós esse trauma, que certamente não é meu. Não quero que seja. Já estive na Alemanha, tocando. É a terra ideal da Música. Sobretudo para o piano. Fui bem acolhida. Salvo por um único espectador que retirou-se, ostensivamente de um recital meu, em Hamburgo. Na verdade, aquilo me chocou e estragou aquela cidade para mim. Pareceu-me toda ela nazista, disfarçada, e que aquele homem representava o verdadeiro rosto daquela cidade. Mas, nas outras, não voltei a ter essa sensação... estranhamente, aliás. Não sei, desconfio um pouco da minha própria formação... No entanto, assim que a vi, na galeria, Alma, assim, tão loira, tão alemã no aspecto... e tão bela, não tive medo de você, senão uma enorme atração... e admiração. Eu estava no seu vernissage. Você brilhava, era uma estrela. Não ousei aproximar-me. A noite era sua e eu queria observá-la, incógnita. Foi o que fiz a noite inteira. Voltei no dia seguinte à galeria, para olhar melhor os seus quadros.  Maravilhosos! E eu passei a querer vê-la em seu ateliê e ... fazê-la ouvir-me tocar, para si.

    

 

              Olhei Tova, seus olhos brilhavam, ela estava emocionada. Toquei suavemente o seu rosto. Essa pequena judia me conquistara imediatamente. Será que foi por causa de suas homenagens à minha pessoa? Não, ela me atrairia mesmo sem isso... Esse rosto tão doce. Essa nostalgia no olhar, que parece sonhar com a terra prometida... do amor, ou da musica. Esse rosto espiritualizado, de artista. Sim, eu queria ouvi-la tocar. Imediatamente, se possível. Disse-lhe:

                —Sim , Tova, quero ouvi-la tocar. Sinto-me honrada, por isso. Estou ansiosa. Quando? Quando posso ouvi-la?

                 Ela olhou em volta e disse: — Você não tem um piano aqui, que pena.  Seria sublime, neste momento, após ter-me tocado o rosto...Mas... você não pode vir comigo agora? Venha, venha até o meu piano. Vou tocar para você, só para você.

                —Sim, Tova, deixe-me tirar esta roupa de trabalho. Estou suja de tinta. Espere um pouco.– Entrei no meu quarto e me troquei rapidamente. Percebi-me escolhendo uma bela roupa e passando um leve baton. Porque  estou me enfeitando? Bem, o momento exige. É um momento precioso, de homenagem e encantamento. Merece o meu cuidado. Uma pianista... e concertista internacional! Como a minha vida é maravilhosa, por esses privilégios! Devo ser grata!

                     Saímos juntas e descemos no elevador, olhando-nos nos olhos em silêncio. A esta altura, sinto conhecê-la há séculos, e parece ... que ela a mim.   

                     Entramos em seu carro e tocamos para o Jardim Europa. Paramos em frente a uma belíssima casa em estilo normando, com o telhado azul, de ardósia. Ao abrir a porta já avisto o enorme piano de cauda. Tova encaminha-se rapidamente para ele, abre a tampa do teclado, senta-se na banqueta, mas logo levanta-se, encabulada e pergunta: —Você quer alguma coisa, Alma? Uma água, um suco, ou um café? E o que você gostaria de ouvir?

                  –Não, Tova, quero somente ouvi-la. Toque...  o que você escolher para mim.

                    Tova abaixou os olhos, pousou os dedos sobre as teclas e tocou. Tocou divinamente um prelúdio de Chopin, que eu ouvia desde a infância. Aquilo me fez dar um gemido e um soluço. As lágrimas saltaram. Tova tocou e tocou. Deu todo um concerto para mim. Satie, Ravel, Fauré, mais Chopin, Debussy, depois Poulenc. Eu estava no céu. Quando ela parou, eu chorava tanto, que ela ficou preocupada, e levantou-se da banqueta e correu a abraçar-me.

                  Ficamos abraçadas muito tempo, em lágrimas, as duas. Sempre fui muito chorona. Mas de emoção, de ternura, de alegria! A arte é tudo, o amor é tudo, o resto é nada...

                  Afinal, com os ombros úmidos, nos desenlaçamos e olhamo-nos sorrindo, muito tempo. Tínhamos nos encontrado.

                 Perguntei: –Tova, com quem você mora aqui? Essa é a casa dos seus pais?

                —Não, Alma, moro aqui com o meu marido. Não uso aliança, pois modifica o peso da minha mão, ao tocar. Há quem diga que isso é um absurdo... ou o cúmulo da sutileza técnica... mas é assim, comigo. Quanto a ele, não está no momento. Ele é banqueiro, Alma, passa o dia no Banco, ou na Bolsa de Valores. Só volta à noite. Temos o resto da tarde para nos conhecermos. Depois se você quiser ficar para jantar... meu marido, Davi, é muito cortês. Certamente gostará de conhecê-la. Eu já falei de você para ele, mas ele não viu a sua exposição. Ele não tem tempo para muita coisa.. Na verdade, só para o dinheiro. Eu não me importo. Ele me deu esse maravilhoso piano e posso tocar à vontade. Ele não interfere. Desde que eu vá a todos os Bar Mitzva de seus sobrinhos e casamentos de sua família. E dance a Hava Nagila, toda vez. No mais...Paga-me as passagens de avião, hotéis e tudo o mais para os meus concertos. Na verdade não posso me queixar de nada. A não ser de uma certa solidão espiritual e artística, nesta casa. Você sabe, dinheiro e arte fazem uma união espúria, mas antiga e necessária. Cresci tocando um piano de armário, em Israel. Mas desde que sentei frente a um Steinway negro... não posso deixar por menos. Você sabe... mas, Alma, deixe-me contar algo importante: pedi a Davi que me dê um quadro seu de presente.

Um grande quadro, que já escolhi. Ele é um pouco avarento, mas disse-me que negociará com você. Não quero que ele regateie, eu morreria de vergonha. Quero que ele pague o que você pedir. Nem um tostão a menos.

                —Tova- disse eu- pressinto que será penosa essa transação. Não sou boa comerciante. Não aceito que pechinchem, nem sei cobrar bem o meu trabalho. Por isso, os marchands fazem isso por mim. Vou lhe dizer o que fazer: trocar o meu trabalho pelo seu. A minha arte pela sua. Dê-me mais um concerto como esse, e escolha o quadro que você quiser. É o mais justo... e satisfatório. E assim não meteremos dinheiro no meio desse nosso encontro tão bonito. 

                    Tova sorriu e segurou a minha mão. Eu senti que naquele momento eu subira ainda mais no seu conceito. Seus olhos brilhavam.

 

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                   Ficamos esperando o rei Davi, bebericando. Pontual, ele chegou num carro com motorista, e com a indefectível pasta de homem de negócios. Esperávamos na sala, um pouco solenemente... e coradas. Davi olhou-nos, pousou a pasta na mesinha de centro, e trauteando uma cançoneta, estendeu-me a mão, ao mesmo tempo que me olhava e beijava sua esposa no rosto. Reparei nos traços de ave rapinante, no nariz, tipicamente judaico e nos seus olhos azuis acinzentados. Não deixava de ser um belo tipo de judeu. Não como Paul Newman, mas...

                   Tova então disse:

               –Davi, esta é Alma, a artista de que lhe falei. Fui buscá-la no seu ateliê. Davi, Davi, você precisa ver o seu ateliê, que lindo, que quadros! Por falar nisso, já escolhi o quadro que quero. E você não precisa se preocupar. Já me entendi com Alma quanto ao pagamento.

                Davi ficou de olho parado. Olhou-a e a mim, por um momento, depois disse:

               –Bem, Tova, posso saber os termos dessa transação? Sim porque ainda não fui informado do preço da obra, formas de pagamento, descontos, e tudo o mais, não é mesmo? Mas não falemos disso agora. Vamos jantar primeiro. Alma, você vai experimentar a nossa comida Kosher. Você vai gostar. Acomode-se. Tova mande servir o jantar – disse ele tirando o quipá do bolso do paletó e pondo-o na parte de trás da cabeça, em equilíbrio meio instável. 

                O repasto transcorreu agradavelmente, em termos, pois o Davi era  reticente e irônico. Tinha um olhar de raposa e estava louco para me espicaçar. Como sempre faço nessas situações, desarmo meu oponente reunindo toda candura de que posso dispor, e adiciono uma pitada de ambigüidade. Os predadores se desnorteiam. Já não sabem se sou uma ingênua total ou uma irônica mais sutil que eles. Sempre dá resultado.

                 Mas, Davi, sentindo em mim uma presa difícil, ficou mais instigado ainda. Como bom banqueiro fora do expediente, resolveu tentar me comprar, só por dever de ofício... e para comprovar sua visão do mundo que se resumia numa única premissa: Todo mundo tem seu preço... e só os loucos não podem ser comprados. Tive pena da pobre Tova, que eu agora percebia prisioneira de uma armadilha configurada por um grande Steinway negro, e um estoque inesgotável de partituras, além, é claro, de contratos com teatros e salas de concerto famosos, no mundo todo. Olhei Tova, e ela sorria tristemente... a bela refém da arte, suave lírio do Hebron.        

                  Alma—disse Davi—O que você faz para viver? Me desculpe perguntar.  Sim porque é impossível viver de arte, mormente neste país. Veja Tova, tem meu patrocínio, naturalmente. Claro que ela merece tudo isso. É uma grande pianista, como você, provavelmente, já pôde perceber. Mas e você, Alma, já tem algum patrocinador? Pode-se ir muito longe com isso. Você sabe, os artistas precisam de partituras e pianos, de tintas e de telas, não é mesmo? Tenho muito afeto por vocês artistas e até os invejo, um pouco. Vocês criam, não é mesmo? Vocês têm esse dom. Nós, homens de negócios, só transformamos, ou transferimos. Nada criamos, na verdade. Vocês têm o sopro divino. Ninguém pode tirar isso de vocês. Mas, sem um bom empurrão, o boneco de Deus pode permanecer imóvel, paralisado. É preciso pegar no tranco, como diz o povo, não é mesmo? O que quer você , Alma, da vida?  Fale-me de você.     

                 
               –Davi – disse eu- da vida eu quero a Vida, a Arte e  a Natureza. “O  amor que move o sol e as estrelas.” E como já tenho tudo isso, nada mais quero, que ambição, deslocada, se não é pecado, é  defeito de caráter, não é mesmo?

               —Não, não é mesmo, Alma. Nunca ouvi falar que ambição fosse defeito de caráter. Meus pais eram bons moralistas, e cresci ouvindo deles: “Davi, você não tem ambição o bastante, Davi. Você precisa tê-la em dobro, menino. Não se pode crescer, não se vai longe sem ambição, Davi. Essa lição, afinal me serviu e... veja onde estou. Tenho o meu próprio império e até mesmo minha própria pianista, não é mesmo, Tova? No bom sentido, naturalmente. Note que pus no mesmo pé, o império e a pianista, e sua música. É motivo de orgulho, claro, ter-me casado com Tova e... ela não pode se queixar de falta de incentivo, não é mesmo, Tova?

                Tova permanecia calada, com um sorriso triste, meio constrangido até, percebendo, provavelmente, o equívoco de um combate assim entre dois contendores com armas tão diferentes.  Eu descortinava naquele momento, toda a história patética e melancólica, da pequena prisioneira na torre do grão-duque, que passava o dia a cantar, ou melhor, a tocar seu instrumento, na esperança do cavaleiro andante passar embaixo, no sopé da torre, para começar a verdadeira vida, do amor, senão da arte. Meu coração encheu-se de compaixão pela bela princesinha judia e eu quis por um momento, não ser mulher e artista, mas um cavaleiro armado da cabeça aos pés. Por empatia, imediatamente me senti muito próxima de Tova e resolvida a salvá-la por amor. Sempre fui doida. Respondi a Davi, em lugar de Tova:

                –Senhor banqueiro, Tova deve estar muito contente com o seu patrocínio e até mesmo grata, não é mesmo, Tova? A gratidão é a virtude dos nobres. Quem disse isso? Bem, não importa. Mas você conhece a fábula do lobo e do cachorro. Aquela, da marca da coleira. Pois é, também não vem ao caso — (eu, de repente, me arrependi do que estava falando. Eu certamente estaria magoando a pobre Tova. Eu não deveria subestimá-la para defender-me de Davi. Isso não seria bonito ou válido. No entanto continuei):– Bem, devo ser uma loba sarnenta, não é mesmo? É tarde demais para ser um pastor alemão. Mas, falemos de Arte: Tova tocou divinamente, hoje. Senti-me muito honrada, com um concerto completo só para mim. Jamais podia esperar uma coisa dessa em minha vida. Por isso quero trocar a minha maior e melhor tela por um novo concerto, já que o de hoje me foi ofertado de graça. Não sou tão generosa quanto ela, pois se o fosse já lhe teria ofertado também uma tela.

                 Tova ficou um tanto espantada e confusa, mas abriu afinal a boca, já que esteve calada o tempo todo até agora.

                 —Alma, Davi, parem com isso! Vocês estão duelando há quase uma hora. Nunca vi coisa igual. E o pior é que me  elegeram para pivô dessa discussão velada. Não concordo nem com um nem com outro. Não vejo as coisas assim... Mas confesso que estou perturbada com esse diálogo de vocês. Não quero que nada perturbe a torre de marfim que construí para poder exercer a minha arte. A música para mim é tudo. Eis a questão. Os mestres precisam ser celebrados. Nós, músicos, somos seus sacerdotes, apenas isso. Devemos cultuá-los, para que não morram nunca. Para que sua música não morra. Veja o que aconteceu aos antigos deuses. Os homens deixaram de cultuá-los, eles não morreram mas adoeceram e se transformaram em neuroses. As doenças do espírito. Não é isso que Jung dizia? Mais ou menos isso, me parece. Sou uma sacerdotisa  da Música, se não uma Vestal dos grandes Mestres porque durmo com o Davi. O resto não me interessa. Mas agradeço o seu carinho, Alma, e o seu “patrocínio”, senhor meu marido. Agora vamos à sobremesa, que está divina. Comamos e bebamos, que amanhã, talvez morramos. Lembram-se da cantata Carmina Burana?

                     

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               Depois de ter sido levada até o meu prédio por  Davi e Tova, e me despedido deles como novos amigos, fui deitar-me. Mas somente depois de  digerir com a mente os acontecimentos e diálogos, pude afinal conciliar o sono, murmurando Tova... Tova...

               Acordei com uma sensação de fome, e instintivamente levei a mão ao pescoço. Sorri aliviada e fui fazer o café, para em seguida poder começar a pintar.

               Depois de uma hora de trabalho, o telefone toca. É Tova, com sua voz macia, sussurrante, que pergunta-me se passei bem a noite. Diz que quer ver-me hoje, se possível. Digo a ela que hoje não posso, pois tenho que terminar umas telas encomendadas, mas que a sua encaminharei para sua casa brevemente. Vou cuidar da embalagem e do despacho, o frete será pago  pelo banqueiro, certamente. Tova pareceu ficar um pouco frustrada. Pelo jeito quer mesmo ver-me ainda hoje. Digo então, que venha ao meu ateliê no fim da tarde, assim não perderia o dia de trabalho.

              Passo um dia maravilhoso, pintando ao som das minhas árias favoritas das óperas que amo. Parei de pintar com o Lamento de Federico, da L’arlesiana de Francesco Cilea (è la solita storia del pastore ...) que me confrange o coração com uma estranha nostalgia. Começo a chorar copiosamente. Isso me acontece freqüentemente. Choro demais, de comoção, com a beleza, com a poesia, com o sentimento do mundo, do amor. E sinto uma dor profunda pelo sentimento do belo. Por que sou assim, por que  a vida me dói, suavemente, sobretudo pela sua beleza? Uma saudade, uma nostalgia de não sei quê, rege minha vida. Será de vidas e amores passados? Certamente que sim. Ai, quanta dor, quantas perdas, quanta beleza fruída... e perdida. Nesses momentos queria também morrer, não de qualquer desespero, mas de suave tristeza, “malinconia”.

                Afinal, no fim da tarde, tendo o dia rendido boas pinceladas e um satisfatório avanço nas telas começadas, toca o interfone, e, atendendo, mando subir  minha nova amiga. Percebo, com certa surpresa, meu coração bater mais forte , quando abro a porta para recebê-la.

               Tova entra, suave, deslizando... Abraçamo-nos e reparo na sua boquinha de lábios túmidos, sensuais. Não resisto, beijo-a nos  lábios. Ela sorri e retribui. Em seguida atraio-a com meus lábios, rodando as duas pelo ateliê numa estranha valsa, até a porta do quarto. Ó lírio de Israel, ó Terra Prometida, agora entendo seu chamado ancestral...   

 

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               De repente tive vontade  de rir, pensando em Davi. Ele não poderia comprar-nos. O que tínhamos uma com a outra, ele jamais poderia ter. Era também inexprimível. Nada comparável a uma relação homem-mulher, mas muito mais sutil e profunda.

               Eu sentia agora que deveria reinvindicar essa jovem judia como minha. Seria mais belo, e também mais divertido. Eu iria disputá-la com Davi. Diria a ele:

              “–Davi, seu banqueiro, sua mulher agora me pertence. Ela não quer mais a sua coleira, eu a retirei, e agora ela passeia livre pelo meu atelier. Ali não há um Steinway negro, mas ela dedilha meu corpo com uma virtuose, e a musica escorre”.  Ai, que fantasia imaginar-me dizendo isso ao banqueiro!...

                Não, não direi nada. A hora é de ação. Firmar o meu domínio pela minha sensualidade. Deixar que ele veja com os seus, o mel dos olhos de sua mulher sobre esta pintora aqui. Ah! Como tudo isso me diverte. Não! Como tudo isso me entusiasma! Nunca antes senti a dubiedade de um amor assim...

                Olhei novamente Tova nos olhos e certifiquei-me de que eu não me iludia. O mel de seus olhos realmente escorria. Essa moça me amava. Ela estava apaixonada como eu. Derrubaríamos o Banco.

 

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              Tova não voltou para casa. Permaneceu vivendo comigo por dois anos Circulávamos nos “meios”, incomodando os escribas e os fariseus. Inseparáveis, nos vernissages, nos concertos e nas festas. Acompanhava-a também, nos seus concertos, em geral beneficentes. Por alguma razão as portas dos grandes teatros e salas de concerto estavam agora fechadas para ela. Claro que nós sabíamos por quê. Além disso não havia mais Steinway negro, senão seu velho piano de estante, que era o que cabia em meu ateliê. Ainda assim eu continuava consciente do grande privilégio de ter essa maravilhosa pianista tocando enquanto eu pintava. Eu a amava e era feliz. No entanto, o primeiro ano foi de guerra psicológica por parte de Davi. Chegou a ameaçar-me, mas envergonhou-se logo. Suas armas eram eficazes em relação aos homens, nunca contra uma mulher como eu. Seria como ameaçar uma donzela com uma luta de boxe. Era ridículo. Sentiu-se impotente depois de várias tentativas, súplicas, ameaças, vociferações, vergonhas, tentativas de suborno. Sobretudo isso. Até chegar na indefectível “proposta indecente”:

              –Alma, quero fazer-lhe uma oferta. Dou-lhe 1 milhão de reais se você me devolver Tova, e mais 1 milhão, se vocês vierem juntas para mim. Que tal? É irrecusável!

             Apreciei o seu cinismo. Respondi-lhe:

             –Davi, posso responder por mim, não por Tova. Comigo ela é livre, pode escolher. Por mim a resposta é não. Você já leu a fábula, já sabe. Mas, realmente não posso responder por Tova. Se ela quiser voltar para você, nada poderei fazer. Não faço uso do poder. Tova começa a se sentir triste longe do seu piano. Na verdade não poderei retê-la por mais muito tempo. Eu a vejo chorar, às escondidas, à noite. E se ouvimos música em rádio ou em CD, ela soluça de cortar o coração. Ela precisa tocar o seu piano, ou vai fenecer. Precisa também daquelas grandes platéias. Já não posso satisfazê-la, apesar 

de nos amarmos tanto. Se você disser a palavra certa, se tocar o seu coração, ela irá com você. Mas lembre-se: Tova é uma jóia rara. O “último lírio do Hebron” como eu a chamo. Você tem de respeitá-la, acima de tudo. E servi-la, sim . Servi-la. Pois ela é uma princesa da música, essa é a pura verdade.

               Davi olhou-me longamente, e percebi-o, pela primeira vez, comovido. Senti que esse homem duro, esse homem de negócios , fora atingido. Estava derrotado. Paradoxalmente, poderia agora conquistar sua vitória.

               Com certa humildade, afinal, agradeceu-me, beijando-me o rosto. Toquei minha face com a mão, onde ele a beijara, e senti que eu, afinal, perdera Tova. 

               Naquela noite, Tova fez a sua mala. Abraçamo-nos em lágrimas e levei-a até  o Davi que a esperava na portaria. Eles partiram sem nenhuma palavra mais entre nós três. Tudo já fora dito.

               Tudo já fora sentido.  Por um momento, Tova me pareceu uma menininha buscada pelo seu pai, um pouco envergonhada. Mas eu sabia que seu piano a esperava e também as salas de concerto do mundo.

 

                                                 FIM

                                                                                                    25/10/2002

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Nosso muro proibido (de Alma Welt)

Quando guria, ainda em Novo Hamburgo, antes de mudarmo-nos definitivamente para a estância, eu, e Rôdo aproveitávamos ao máximo o casarão em que vivíamos, quase sem sair à rua, além do período escolar, graças a um imenso quintal com jardim, horta, pomar, e muitas flores, que chegavam até um imenso muro de pedras que era o limite intransponível, dos nossos “domínios”, como gostávamos de falar, entre nós, pomposamente, quando fantasiávamos de nobres, nas nossas brincadeiras. Eu era, naturalmente, sempre uma princesa, e Rôdo o meu fiel cavaleiro, já que nunca era o irmão somente, mas o amado.

Sim, era intransponível o grande muro, pois nos era proibido galgá-lo, transpô-lo, como uma das poucas regras peremptórias do nosso pai. Ou era de nossa mãe, esse mandato? Não sei bem. O fato é que esse muro representava, ou ocultava um mistério, que instigava nossa curiosidade. Do jeito que o Vati nos criava, essa restrição nos parecia instigante, e não demoraríamos a transgredi-la.

Uma noite, fui ao quarto de Rôdo, que ficava, por sua escolha, na pequena mansarda do casarão, pois era o único menino, enquanto eu tinha que dividir o quarto com minhas duas irmãs. A Mutti não queria que eu subisse à mansarda em momento nenhum, sendo essa, outra restrição que eu não respeitava. Ela, na certa, temia algo que naturalmente se passava entre nós, a nossa profunda cumplicidade, eu supunha. Ali, naquela noite sentada na cama de meu irmão combinei com ele transpormos o muro, na noite seguinte, quando todos tivessem se recolhido aos seus quartos.

Assim combinados, na noite seguinte, eu esperaria Solange e Lúcia adormecerem, e sairia do meu leito, pé-ante-pé, para encontrar-me com ele no fundo do quintal. Ele daria um rápido assovio, cuja modulação combinada era a nossa senha, pois necessitávamos uma certa ritualização para a nossa aventura, que estava, é claro, dentro do contexto de nossas fantasias cavalheirescas. Era uma noite quente, de verão, eu trajava um vestido leve, e meus indefectíveis sapatinhos de verniz, que ficariam esfolados ao escalar o muro.

Rôdo fez-me subir nos seus ombros depois de fazer um estribo com as mãos para eu apoiar meus pés. Devo dizer que Rôdo aproveitou para empurrar-me pela bundinha, por baixo da saia, com evidente intenção, que me produziu uma espécie de cócegas, agradável, eu achei. Mas eu estava tomada pela curiosidade e emoção da aventura, pela perspectiva de conhecer o lado obscuro do quintal, da quadra, do mundo... ou simplesmente do vizinho desconhecido. Logo estávamos no quintal de uma casa estranhamente iluminada com luzes vermelhas, um tanto escura, mas que, misteriosamente, não parecia soturna, e sim alegre, pois vindos de dentro ouviam-se risos, gargalhadas e suspiros nada tristes.

Eu estava excitada, e meu coração batia acelerado. Dei a mão a Rôdo, e caminhamos em direção à porta dos fundos. Assim que adentramos, ali, numa fascinante cozinha, fomos interceptados por uma moça espantosa, muito pintada, com os seios praticamente de fora, e roupas transparentes, que fumava um cigarro com piteira, coisa que eu jamais vira antes. Com um ligeiro ar de surpresa, a moça abriu um indescritível sorriso manchado e disse:

—Ora, ora, o que temos aqui! Dois lindinhos! De onde vocês saíram? Fugiram de casa? Ou vieram buscar seu papai?

Entreolhamo-nos, confusos, intimidados, Rôdo e eu, e de mãos dadas batemos em retirada, saímos correndo pelo mesmo percurso, sentindo-nos perseguidos pela gargalhada da moça, uma gargalhada estranha, que anos depois eu iria identificar como “vulgar”, mas que naquele momento me soou assustadora. Galgamos aquele muro de volta, pelo mesmo método, mas com maior rapidez, e atravessamos nosso quintal, para logo estarmos de volta ao quartinho de Rôdo, no sótão, para podermos conferir nossas impressões e emoções. E sussurrando, para não despertarmos ninguém, eu tinha muitas perguntas:

—Rôdo, quem era aquela moça? Como ela conhece o Vati? Porque ela perguntou se viemos buscá-lo? Papai estava lá? Ele não está dormindo no quarto, com a Mutti?

Rôdo, olhou-me de maneira enigmática, sem sorrir, e respondeu-me:

—Alma, acho que o papai conhece aquela casa, sim. Ele sai, às vezes, de noite. Aquela moça sabia quem somos. Sou capaz de apostar que ele não está em sua cama. Eu pediria para ires verificar, dizendo que tiveste um pesadelo. O Vati te poria na cama com eles, até a Mutti te expulsar, como sempre. Mas não vou faze-lo. Tenho certeza que ele não está lá. E prefiro que fiques comigo, que passes a noite aqui, que durmas junto de mim. Algo me diz que é o que devemos fazer. Vem Alma deita aqui, e vamos dormir abraçados, como os adultos fazem.

Aninhei-me nos braços do meu irmãozinho, guri magnífico, que sabia sempre como agir, me parecia. Sabia sempre o que fazer, e quanto a mim... sentia-me segura em seus braços, fizesse ele o que fizesse, eu sabia que meu coração acompanharia suas ações, pela vida afora.

22/05/2006

quinta-feira, 13 de setembro de 2007


"Alma Welt no ateliê"- desenho de Guilherme de Faria

A prima alemã (de Alma Welt)

( Dos “Contos Secretos”, de Alma Welt )


Entre as inúmeras memórias dos amores que fruí, na minha rica vida no meu Pampa, desde a infância, sob a égide da minha macieira e de Rôdo, meu irmão, ocorreu-me agora pinçar desse arquivo impalpável, algo também inesquecível pela breve intensidade, episódio esse que chamarei: “a prima alemã”, mas da qual não citarei o verdadeiro nome, pois vive ainda, na sua Alemanha natal.

Eu era adolescente de dezesseis anos, no auge talvez de minha beleza, que as pessoas reputavam quase irreal, dada a minha alvura e o contraste de cores dos meus olhos verdes e meus cabelos louros arruivados, como ouro velho, a que já me referi alhures. Minha sensualidade espontânea e um tanto acima da média daquela época, fazia-me o alvo das críticas e implicâncias de minha irmã Solange, e da vigilância de minha mãe açoriana, que na verdade eu conseguia habilmente driblar.

Rôdo fora excursionar uma temporada com seus colegas da escola, deixando-me um tanto só e carente, num período de introspecção melancólica, quando recebi a notícia da chegada de uma prima alemã que vinha da Bavária, conhecer os parentes brasileiros, do extremo sul do Brasil, em especial a prima Alma, de sua mesma idade, e de que lhe falaram tanto em cartas: a prima bela que escrevia poemas, dançava balé e pintava, que era eu.

Assim, eis que afinal chegou a prima (vou chamá-la Helga), e me surpreendeu. Uma linda alemã, loura, de olhos azuis, tipicamente germânica, cujo elemento de surpresa portanto era outro, que não as suas características físicas, mas o timbre ativo, quase viril de sua sensualidade inesperada. Helga chegou, botou seus olhos sobre mim. e se apaixonou, imediatamente. Eu estava um tanto surpresa, embora estivesse acostumada à recorrência desse fato, já então, em minha vida desde a infância ( já lhes contei, leitores, o episódio da “preceptora”, de quando minha mãe tirou-me da escola pelo constante perigo das paixões que eu despertava).

Mas Helga, sendo bela e prima da mesma idade, não levantaria jamais suspeita em minha mãe, embora o fizesse, sim, em Solange, minha irmã, e espiã incansável. Consegui, no entanto ficar a sós com minha prima e confidenciei-lhe precipitadamente, como um acordo tácito ao primeiro olhar, a situação de vigiada em que vivia, sem necessitar explicar a causa, naturalmente. Pronto, estávamos entendidas, e estabelecida a cumplicidade. Dali por diante, pegávamos a mão uma da outra e fugíamos para cá e para lá, em busca dos recantos relativamente seguros que descobríamos, para despistar Solange. E isso, por si só fazia nosso coração bater mais forte e nos aproximava mais e mais. Logo passamos a nos beijar nos lábios, para comemorar, assim que descobríamos novo esconderijo. O perigo daquele jogo de esconde-esconde, com a megerinha da minha irmã, e a ameaça repressora de Ana Morgado, minha mãe, tornava aquela temporada aventurosa para duas meninas, e começamos, conseqüentemente, a nos sentir apaixonadas. Como dormíamos no mesmo quarto, com a Lúcia, minha outra irmã meio sonsa, mas que permanecia neutra conquanto eu suspeitasse ser uma disfarçada agente de Solange, nossa noite só começava quando ela estava seguramente adormecida, e levantávamos de nossas camas, pé-ante-pé, fugíamos do quarto e atravessando a sala do casarão adormecido, alcançávamos a varanda e atingíamos o jardim florido, fantasmagórico, prateado sob a imensa lua de verão, e chegávamos de mãos dadas e já aos beijos à minha antiga casa de bonecas, que embora pequena nos oferecia uma relativa segurança, pois eu levava meu cadernos de poesias, como um álibi, para pretextar confidências poéticas de moças, ou uma ajuda na versão dos meus versos para o alemão, caso fôssemos surpreendidas. Para todos os efeitos eu estaria lendo meus novos poemas para Helga, já que tivéramos insônia.

Ali, caíamos nos braços uma da outra, em beijos apaixonados, ofegantes, com o coração aos pulos, como eu ficava também com o Rôdo, em análogas situações. Helga era ardente, como eu, e nossas afinidades me deixavam em êxtase, eu não me sentia mais só, jurando amor eterno uma à outra. Logo estávamos deitadas num colchonete que eu camuflava na casinha de bonecas e que estendíamos no chão para passarmos a noite abraçadas e aos beijos, até o alvorecer, quando os cantos dos pássaros, junto com os primeiros albores, nos recordavam a cotovia e o rouxinol de uma Julieta duplicada, que éramos nós, que contínhamos um Romeu, também, em nossas almas apaixonadas.

Nossas noites foram ficando mais e mais ardentes e excitantes, e logo estávamos instintivamente nos descobrindo em nossas reentrâncias mais recônditas, apalpando-nos, ofegantes, com o coração acelerado de medo e paixão. Ficávamos com nossas lindas e rosadas vulvas encharcadas por dentro como já constatávamos e provávamos. Já procurávamos instintivamente a maravilhosa e feliz posição de sessenta e nove, nuínhas, suadas e febris, nas noites do verão de nossa ardente juventude, encontrada em amor e desejo na minha casa de bonecas, no meu jardim, com aquela linda alemãzinha, hóspede do meu coração, para sempre, eu pensava, e do meu Pampa, que eu queria estar apresentando a ela em sua essência e plenitude, mas que só podia oferece-lo em meu corpo de donzela germânica, como o dela mesma.

Então, como sempre acontece nas verdadeiras estórias de amor, o destino interferiu, para apartar os amantes. Fomos flagradas: Solange que seguiu-nos uma noite, ela também de camisola e saída do seu leito como um cão farejador do nosso rastro de amor, abriu violentamente a porta de minha casa de bonecas, e pegou-nos nuas, e com as mãos em nossos sexos molhados, cujo perfume dominava o pequeno ambiente do nosso “ninho de amor”. Com olhar furibundo, a pequena megera, gordinha, e invejosa, gritou: “Vocês, hem, sem vergonhas? Vocês vão ver, quando mamãe souber. Vai expulsar a Helga e botar a ti no internato, tu vais ver, depois de uma surra de vara de marmelo! ”

Meu coração parou, mais do que de medo, de vergonha e humilhação diante da minha pequena amante, que não entendeu as palavras ditas em português mas captou-lhes o perigo, na entonação detestável e tirânica de Solange. E então, comecei a implorar, por Helga, por nós, de joelhos diante da opressora.. Segurando sua mão gordinha, eu ali , nua a seus pés me humilhava na tentativa de poupar maior vexame ao meu amor, e sua perda irreparável, eu pequena melodramática, como uma princesa de insólita opereta, estava prestes a abraçar as gordas pernas da megerinha.

Então o improvável aconteceu. Helga, a linda alemãzinha, ergueu-se nua, como uma ninfa ou náiade do luar, branca e loura como uma aparição de beleza, e estendeu o lindo braço, suavemente, para Solange e tomou-lhe a mão nas suas, olhando-a mesmericamente nos olhos, e sussurrando em alemão :”Komme, komme, meine Geliebte, vereinigen...” Venha, venha meu amor , junte-se a nós .

Eu, atônita, pega de surpresa por aquele gesto inesperado, que no entanto, pela sua suavidade, não soava como um saída desesperada, de minha amiga, paralisada vi minha namorada, meu amor, abraçar Solange desarmada, que começou a tremer enquanto a ninfa loura a despia de sua camisola deixando-a cair a seus pés, enquanto olhava com ternura verdadeira, percebi, as formas redondas de minha irmãzinha mais velha, não destituídas de encanto, na verdade, como as de uma camponesa germânica de outrora, com o seu tufo ralo de pelos ruivos encimando-lhe o alcochoado e alvo monte de Vênus. E então, pasmem, vi Solange, a feitorinha implacável, tremendo emocionada dos pés às faces de gordas bochechas coradas como maçã, enrubecida de emoção, ajoelhar-se junto com Helga, sobre o colchonete, no abraço envolvente, apaziguador, daquela surpreendente alemãzinha, e juntas deitarem-se, olhos nos olhos, os de Solange cheios de lágrimas de insuspeitada gratidão.

Também a minha irmã queria o amor. Também a menina gorda, de beleza recôndita, num minuto revelada, nescessitava, como eu... amar e ser amada!

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Fevereiro de 2005

sábado, 8 de setembro de 2007


O Condestável Gottfried - desenho de Guilherme de Faria

O Condestável Gottfried (de Alma Welt)

Três fragmentos do romance O sangue da Terra, de Alma Welt

O condestável Gottfried suspendeu a caçada, entregando sua balestra ao seu escudeiro e estendendo a mão enluvada, apanhou o bilhete que lhe trazia um pajem que chegara a galope. Leu, e em seguida amassou o bilhete, e com ele cerrado no punho deu rédeas ao cavalo, que por sua vez galopou de volta ao castelo.
O fidalgo, visivelmente irado, cruzou a ponte levadiça a galope, e apeando do cavalo ainda em movimento, atravessou parte do pátio, espantando as galinhas, e saltando alguns degraus adentrou o amplo portal, e a passos largos, como um furacão, foi direto à cozinha, onde encontrou Lady Margareth, a inglesa que desposara, depois de um tempestuoso caso diplomático que incluíra paixão e intrigas palacianas, e ali em frente aos cozinheiros, copeiras e outros serviçais, homens e mulheres, agarrou brutalmente sua esposa que quis esboçar um sorriso, mas logo assustada e horrorizada, foi virada de costas e inclinada sobre a grande mesa da cozinha, teve sua ampla saia e as suas sete anáguas levantadas e suas brancas nádegas expostas. Retirando seu imenso membro rubro e vibrante, da braguilha estourada, o duque enterrou-o de imediato e brutalmente no ânus rosado de sua mulher, que soltou um imenso grito, sodomizando-a, ali, na frente da criadagem. Depois do violento orgasmo, agarrou-a pelos longos cabelos ruivos e arrastou-a pelo salão e corredores, até o quarto, onde empurrou-a sobre a cama de dossel, desfigurada e em lágrimas, atirando-lhe por cima o bilhete amarfanhado, em seguida retirando-se imediatamente, sem nenhuma palavra, cerrou a porta, trancando-a por fora, à chave.
Lady Margareth engravidou depois daquela noite, e durante toda a sua gestação, corria no palácio, principalmente entre a criadagem, que fora fecundada pelo ânus, coisa que muitos testemunharam, e que a criança seria, portanto, “filha de Sodoma” e nasceria, literalmente “por ali.” Ao nascer, a criança foi arrancada aos braços da mãe e entregue a um casal de camponeses para que a criassem longe dali, mas ainda em terras do duque.
Minha avó Frida, que eu considerava uma espécie de bruxa, contou-me esta estória quando eu tinha doze anos, sem maiores considerações pela minha inocência, para explicar as origens camponesas de nossa família, que seria descendente, assim, de um duque e “condestável”, como ela o designava, justificando nosso retorno à posse de terras, embora tão distantes daquela Alemanha medieval onde estava a origem de tudo. Nunca saberei se ela inventava aquilo, mas o detalhe da sodomia me impressionava sobremaneira e presumo que o grotesco daquela cena se devia a uma necessidade de minha avó de rebaixar tão alta linhagem, para tornar mais verossímil a sua estória. Ela queria dizer que, de qualquer maneira, éramos de linhagem espúria, pois nosso antepassado tinha sido gerado e parido “por trás”, como os criados e camponeses acreditavam.
De qualquer maneira, qualquer que tenha sido a verdadeira história das origens da nossa família, eu não podia deixar de admirar instintivamente o cunho folclórico de tudo aquilo, e sobretudo, a veia satírica de minha avó, seu amor do grotesco, que ela evidenciava entremeando sua narrativa com gargalhadas finas, cacarejantes, que mostravam seus poucos dentes na boca horrenda e murcha. Eu tinha certeza que estava diante de uma bruxa, mas permanecia fascinada.
Muitos anos mais tarde, vim a saber que aquilo era possível, senão provável, pois o esperma de um homem corria longe, na sua procura do óvulo, e escorrendo sobre a vulva, a partir do orifício anal, poderia fecundar a mulher, e que isso ocorria mais freqüentemente, até hoje, do que as pessoas supunham. Na adolescência tive um período de medo de sentar-me na banca da privada, pois amiguinhas da escola me diziam que se podia engravidar, se um homem tivesse se sentado ali primeiro, sobretudo se o assento ainda estivesse quente. Tais superstições, todas com uma pequena base real, poderiam ter assombrado a minha infância e pré-adolescência, não fora a sabedoria de meu pai, que desvelava e explicava todos os fenômenos da natureza, sem roubar-lhes a poesia e mesmo a quota de mistério, subjacente a toda vida do homem sobre a terra.
Entretanto, apesar do caráter picaresco daquela estória, minha avó também queria embasar um pequeno mito corrente na família, e estendendo aquela sua mão ossuda, que parecia uma garra de pássaro, e tocando meus cabelos dourados, e minha face muito branca, disse, fechando a narrativa:
—Alma, tu és a prova da parte nobre da nossa linhagem, com tua aparência de princesa, assim como o Werner é a própria imagem do Condestável. Quanto a Solange e Lúcia, são a parte camponesa. O Rudolf, teu Rôdo? Bem, este é um caso à parte, que te contarei outro dia. Agora vai, vai princesinha, brincar no pequeno reino do teu jardim, que te coube, afinal.

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A avó Frida continuou a contar, durante um período, a pedido meu, as histórias do Condestável Gottfried e da sua pobre esposa inglesa Lady Margareth, que para o resto de seus dias foi possuída somente pelo fiofó, e a seco. É claro que com o tempo, ela também, somaticamente começou a secretar um fluido lubrificante, por ali, o que amenizou as coisas para a coitada. Minha avó ria tanto quanto eu com aquela estória, que desconfio que ela tinha inventado inteiramente, e começo a suspeitar que foi dela que herdei minha imaginação literária, e meu humor satírico, que não exploro muito, mas já denunciado por alguns.
Verdadeiro ou não, não importa, o mais incrível quanto àquela lady, foi ela ter tido muitos filhos, depois daquele primeiro entregue aos camponeses; e pelo fato de que as coisas não se repetem sempre da mesma maneira, a tal teoria do escorrimento de sêmen, não colava mais, o que nos faz deduzir que o responsável por aquelas inseminações continuava sendo o desconhecido amante de Milady, que não parecia nominalmente na estória e cuja identidade permanece um mistério. O fato é que o duque passou a ter uma fama de sodomizador emérito, a quem as mulheres, que tinham dificuldade de conceber, recorriam em peregrinação, vindas de longe, de outros castelos. Na tardou a começar a receber também camponesas, e por isso foi considerado muito caridoso e magnânimo, sendo que essas criaturas mais rudes freqüentemente eram trazidas pelos seus próprios maridos estéreis, e nessas ocasiões eram recebidas no celeiro do duque, sobre a palha, para que o cenário e o leito adequado as ajudasse a conceber.
Diante da minha divertida estupefação, afinal, de guria de doze anos, minha avó revelou o segredo daquilo. Tudo não passava de um truque do duque que amava aquela modalidade, a de Sodoma, e fazia parceria com o amante de sua mulher, já que ele mesmo era estéril. Com isso, as mulheres saíam coniventes com o truque, para poderem se vangloriar, depois, da estirpe nobre de seus rebentos, pois o cavaleiro anônimo era de fato plebeu, camponês mesmo, mas bonitão e de impressionante virilidade e fertilidade, possuindo uma ferramenta estupefaciente e abismal.
Louvado seja Deus que inspira no homem soluções para todos os problemas!

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Lady Margareth estava já no seu quarto rebento, e continuava andando como pata choca, após os longos períodos de gravidez. O povo dizia que era pela continuada técnica de Sodoma, e que seus filhos todos seguiriam o manual. Mas a verdade é que, talvez por aquela razão, aquele era um ducado feliz, pois tal prática, de um jeito ou de outro aproximava o grão-senhor do seus súditos, embora por trás, coisa que não acontecia em nenhum outro feudo.
Então, após longo período de paz, em que a população do feudo cresceu graças ao Grande Sodomita, estourou afinal a guerra necessária, que deveria evitar a fome, com a supressão de expressiva parte da população jovem, e a reacomodação dos mais espertos, senão dos mais aptos. A batalha de Wolfsburg, também chamada a batalha dos lobos, pois esses foram os que mais lucraram, com o campo de vinte mil mortos e feridos, o Sodomizador-mór, como também era chamado, venceu seus inimigos e submeteu-os a todos à especialidade que o consagrara, o que motivou uma revolta para além dos seus domínios, que acabou por derrubá-lo politicamente, já que pelas armas o vencedor era ele. O rei da Prússia exigiu sua demissão como condestável, e que confinasse sua prática a intra-muros do seu castelo. E que fosse mais discreto, desistindo de instituí-la como tradição de seu feudo.
O duque e seu ducado iniciavam sua decadência. Gottfried começou a definhar, com o término da Era Feliz, que ele, paradoxalmente, iniciara com a suposta humilhação pública, ou de copa e cozinha, de sua mulher estrangeira, de ruiva cabeleira e penugem. E alvas nádegas.
Não sei, realmente, se esse episódio me foi também contado por minha avó Frida, ou se eu o inventei. De qualquer modo, tem tudo para ser verdadeiro.
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As estórias do Condestável Gottfried cessaram. Mas elas tinham servido para me aproximar de minha avó, que eu agora não via mais como uma bruxa, mas como uma druidisa ou bardo de saias, que narrava as sagas picarescas do nosso passado germânico e celta, já que havia sangue inglês e irlandês, envolvidos nas nossas origens familiares. Não muito tempo depois disso, eu iria velar seu corpo no salão da estância, toda de preto no caixão, com seu grande nariz adunco, quase encontrando a ponta aguda do seu queixo proeminente, e sua boca sumida, sem lábios, enrugada, que completava o retrato de feiticeira que me impressionava tanto, e que eu, de certa forma, admirava. Seu longo cabelo branco (ela nunca fizera o coque usual das velhinhas), estava esparzido sobre os seus ombros esqueléticos e misturava-se às flores. Eu olhava fascinada, embora não vertesse uma lágrima, pois minha avó não me comovia, estranhamente, pois eu a associava ao sentido humorístico da vida, achando, mesmo, acreditem, que naquele momento, a melhor forma de homenageá-la seria contar uma anedota histórica ou folclórica, coroando o seu fecho com uma grande gargalhada coletiva. Esse pensamento, me fez sorrir ligeiramente, o que foi notado por minha mãe que me deu um ligeiro tapa no rosto. Eu nunca seria compreendida por minha mãe. Como poderia, afinal, eu, a esquisitinha alegre, a extravagante, ao seu ver, uma excêntrica precoce apesar de minha ingenuidade encantadora, deixar de ser incompreendida por aquela criatura convencional que... no entanto, me amava, isso sim, incompreensível? Diante daquele tapa, me comovi finalmente, mas comigo mesma, com minha solidão em relação à minha mãe, da qual arranquei um movimento de cabeça aprovativo às minhas primeiras lágrimas, adequadas, naquele velório da nossa bizarra matriarca, estranha ... e querida, afinal.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007


O repouso de Alma Welt- desenho de Guilherme de Faria, no acervo do Banco Central

A prisão (de Alma Welt)

(Capítulo sétimo do romance A Ara dos Pampas, segundo tomo do quarteto A Herança, de Alma Welt)


De volta à estância, com Aline, eu procurei assimilar esta primeira derrota judicial, e preparei-me para encontrar uma estratégia de defesa, para o contra-ataque de Solange, que eu sabia que viria em seguida.
Aline parecia um pouco assustada com a perspectiva de me ver como ré de um processo de seqüestro, e talvez de roubo, pelo menos. Quanto às outras ameaças, eu não acreditava que elas estivessem no código penal, embora incorressem num perturbador escândalo social.
Solange jamais deveria saber do tesouro da caverna, ou ela incluiria isso no processo. E nós não achávamos, sinceramente, que ela tivesse qualquer direito a ele, não depois de nos espoliar do nosso vinho precioso.
Eu procurava não me preocupar demais, mas me reunia metodicamente com o doutor Loredano, para discutir os aspectos do processo, e os perigos que eu corria.
Afinal chegou a citação. Fui intimada a comparecer a uma delegacia de Novo Hamburgo, e indiciada por seqüestro, incesto e lesbianismo. Protestei imediatamente, assistida pelo doutor Loredano, e por Aline, que estava muito assustada. Eu não estava disposta a assumir aquela palavra, pelo tom pejorativo que emprestam a ela, mas o delegado adiantou que isso fazia parte da acusação, nominalmente, embora não coubesse pena eventual para aqueles dois “crimes”. Isso me pareceu arbitrário e exigi que retirassem esses dois últimos itens do laudo de indiciação, pois não eram crimes previstos na lei. Mas o delegado recusou, revelando-se nada condoído da minha situação. E logo percebi que era, de alguma forma, interesse dele reter-me em sua delegacia, pois resolveu (pasmem!) encarcerar-me imediatamente até o dia seguinte, enquanto o doutor Loredano, abalado, saiu afobadamente para providenciar o habeas-corpus, para que eu pudesse enfrentar o processo em liberdade. Pelo visto, Solange conseguira testemunhos do meu crime, e eu não acreditava que isso partisse da pobre Alícia... ou, talvez, esta tivesse sido pressionada demais, ou mesmo chantageada, já que tinha um filho pequeno.
Eu fiquei aterrorizada, ao ser levada (enquanto Aline gritava, separada à força de mim), para uma cela coletiva, cheia de mulheres, já que eu não tinha o superior completo.
O delegado e o carcereiro botaram-me numa cela onde havia umas doze mulheres, de aspectos diversos, a maioria prostitutas e ladras, que se alvoroçaram com a minha entrada, e me devoraram com os olhos. Uma delas, masculinizada, muito forte, exclamou: “Carne nova no pedaço!” Temi pela minha integridade física. Virei-me imediatamente e agarrei as grades, o rosto colado a elas, para olhar para fora, tremendo, e balbuciei baixinho uma súplica, que os carcereiros não levaram em conta, sadicamente.
Então, uma força divina, subitamente desceu sobre mim. Virei-me e olhei compassivamente as mulheres todas, uma a uma, que se aproximavam. Elas estacaram e recuaram, enquanto eu me dirigi para o centro da roda que formaram, e sentei-me no chão, em posição de lótus. Elas, então, uma a uma se acocoraram ou sentaram, em torno, no início de um cerimonial que se impôs pelo olhar, ou pela aura que apareceu em mim, depois eu soube. Nós iríamos celebrar, juntas afinal, alguma coisa importante para todas nós mulheres, algo de que estávamos terrivelmente necessitadas, e que nos congraçava.
De manhã, lá pelas oito horas, o doutor Loredano, com Aline, chegou com o habeas-corpus que apresentou ao delegado e a seguir entraram na carceragem. A cena que encontraram iría espantá-los e comovê-los:
Eu, Alma Welt, estava ali, no meio das ovelhas desgarradas, cujos olhos apresentavam uma nova pureza e deslumbramento, atentas à estória que eu contava naquele momento, depois de tantas pela madrugada, e umas poucas horas de sono sem desfazer aquela roda. Se tivéssemos mil e uma noites, nós as usaríamos para aquele desfiar de estórias, que nos fascinavam, que nos redimiam, que nos uniam num mesmo encantamento, a narradora e as ouvintes atentas e maravilhadas. Eu não me lembraria de um momento, assim, mais apoteótico, em minha vida de narradora. Minha vida estava justificada... e mais: estava celebrada!

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Meu diário violado (de Alma Welt)

Crônica de Alma Welt (1972-2007)

Eu possuí um diário quando guria, que me fora dado pela Mutti, e que tinha um cadeado de segredo, que eu considerava seguro. Era um belo livrinho de capa dura de couro, e eu gravei meu monograma nele, com pirógrafo. Em suas páginas eu comecei a exercitar o meu dom de registrar as impressões do meu dia, meus sentimentos e fantasias, que faziam parte da minha realidade, a que eu já dava tanto valor. Eu adorava a idéia de que meus registros eram secretos, e por isso eu poderia ousar tudo e passar despercebida em minha ousadia, mental e espiritual, à vigilância da minha própria mãe e de.... Solange, a inimiga.

Minha irmã mais velha, naturalmente odiou aquele objeto à primeira vista. O diário da Alma! Que coisas haveriam ali? Que ousadias, que transgressões, que pecados? Fiquei talvez mais vulnerável a ela, com a existência do meu diário. Minha mente afinal poderia ser invadida, violada. Meus segredos, meus tesouros... saqueados!

E foi o que realmente aconteceu. Solange descobriu o esconderijo do álbum, e conseguiu arrombar o cadeado. Peguei-a em flagrante lendo-o e rindo. Fiquei furiosa. Avancei para ela que correu com o livro na mão até a piscina, ameaçando jogá-lo na água. Estaria tudo perdido, o livro ficaria borrado e imprestável, e eu estaquei, estarrecida. Implorei a ela que me devolvesse meu diário. Ela então atirou-o para mim, dizendo:

–Toma aí, já conheço os teus pensamentos, e eles valem alguma coisa, principalmente para a Mutti, percebes? Agora estás nas minhas mãos. Venha beijar o meu pé, ou irei contar a ela principalmente a terceira página. Vem, ajoelha-te e beije o meu pé, escrava!

E eu, tremendo de raiva e humilhação pelo medo que realmente senti, ajoelhei-me e beijei seu pesinho gordo, que desgraçadamente lavei com minhas lágrimas.

Eu demoraria ainda muito tempo para me sentir preparada para contar tudo... ao mundo.

17/10/2006

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Depois do epílogo (de Alma Welt)

Depois do Epílogo

(Dos Contos secretos de Alma Welt)

Hoje, após um pequeno incidente, que narrarei, ocorreu-me o pensamento de que as verdadeiras estórias começam depois que terminam. Isto pode parecer um paradoxo, à primeira vista, mas deixem-me explicá-lo.
Acordei esta manhã com o interfone soando, um tanto cedo, me pareceu, e estremunhada, levantei quase revoltada, ao mesmo tempo que curiosa. Seu Ermírio, o porteiro, pergunta-me se Aline está aqui, pois sua mãe quer falar com ela, quer subir imediatamente, ele diz, um tanto receoso. Peço-lhe que segure a megera lá em baixo, o mais tempo possível, para que eu possa me arrumar para recebe-la. Detesto que me peguem desprevenida. Sinto-me feia ao olhar do outro ser humano, e passo a nos odiar, a ambos
Depois de um banho rápido, escovando ao mesmo tempo os dentes, enxugo-me passando uma escova nos cabelos. Pronto, posso receber a importuna, e anuncio isso ao interfone. Passado um minuto, dona Aurélia estoura na minha sala-ateliê.
–Alma, bom dia, menina, me desculpe, mas vim pedir-lhe que você receba Aline de volta, a seu serviço. Não agüento mais ver minha filha tão infeliz. Nunca a vi assim ao terminar um contrato, ela chora dia e noite. Eu não consigo ter um diálogo com minha filha há muito tempo, você sabe. Na verdade desde que o pai dela nos deixou. Ela só conversa com sua avó, minha sogra, dona Giulia. Mas não me contam nada. Elas me descartam, me rejeitam, essa é que é a verdade. Mas sou mãe, e não posso ver minha filha infeliz. Porque a senhora não quer continuar com ela como modelo? Ela só falava na senhora... como é bonita (estou vendo), e como pinta bem. Há algo estranho... mas não posso ver minha filha sofrer. Você não pode chamá-la, para mais uma série de quadros? Ela é tão bonita, e posa tão bem!
—Dona Aurélia- eu disse- estou tão infeliz quanto ela. Minha vida, como que parou... (eu hesitei, percebendo o perigo crescente das minhas palavras). Mas, não dependeu de mim, dona Aurélia, esse desenlace da nossa relação... profissional. Foi os ciúmes do Pedro, ao ver meus quadros, ao ver a beleza de Aline melhor celebrada, que nas fotografias dele. Foi isso, dona Aurélia. Uma lástima... mas, talvez reversível, pois estou empenhada em conseguir que o Pedro permita a ela voltar a trabalhar para mim. Quem sabe isso volte a acontecer ( suspirei profundamente).
Servi um café a dona Aurélia que saiu um pouco mais animada. Eu mentira um pouco. A verdade é sempre uma lâmina de dois gumes. Nunca pode ser dita sem chocar ou magoar alguém nesta vida. Ou “uma faca só lâmina”, como disse o verso do grande João Cabral. A mentira é bem mais benigna que a verdade. É, pelo menos, a tentativa de pôr um grande pano quente sobre as dores, ou sobre a crueldade dos fatos.
A verdade é que a visita surpreendente de dona Aurélia renovou minha esperança de reatar com Aline, de voltar a ter a minha amada junto a mim novamente, mesmo que ainda tivesse de continuar a compartilhá-la com aquele Pedro. Como a vida é patética! Ou será minha vida, que é assim, devido à minha carência, a minha vulnerabilidade? Eu estava disposta a mais humilhação, como o preço a pagar pela presença preciosa de Aline, junto a mim, nas minhas mãos, novamente. Ah! A cobiça do amor, a fome, a sede, do desejo! Como somos movidos pelas nossas paixões! Sim, mas como me sinto viva, no torvelinho!
Eu mentira à dona Aurélia sobre a natureza real da minha relação com Aline. Ela, evidentemente, ainda não desconfiava de que sua filha, modelo, pudesse ser... amante da pintora, vamos falar claro! É muito difícil encontrar uma mãe que aceite isso, estou bem consciente. Mas, a mim cabia lutar pelo meu amor, pela realização do meu desejo, mesmo incorrendo numa certa omissão da verdade, quer dizer, mentiras mesmo. Eu sabia agora que Aline sofria. Eu iria, portanto, tê-la de volta.
Fui procurar Vânia, em sua casa, minha amiga querida que há tempos eu na via, que já fora minha namorada, e que Aline não conhecia, por isso mesmo. Sabendo que ela não me negaria nada, pedi-lhe um grande favor: que ela telefonasse para a agência de modelos que me fornecera Aline, se cadastrasse como pintora, pedisse o catálogo de modelos, escolhesse Aline, e a contratasse. Depois deixasse o resto comigo. Vânia concordou, dizendo:
—Alma, querida, o que eu não faria por ti, meu amor! Quero que você seja feliz, e a ajudarei no que for preciso. Mas quero, em troca, que esta noite você passe aqui comigo. Só mais esta noite!
Concordei sem hesitar. Ela bateu palmas e deu pulinhos de alegria. Eu me enterneci e a beijei nos lábios. Tive que detê-la, a seguir, para podermos trabalhar o meu plano.
Vânia, comigo ao lado, orientando-a, ao telefone e depois ao computador, realizou todos os trâmites da transação e conseguiu o contrato de Aline. Com a ajuda entusiasmada de minha amiga, que estava se divertindo, preparei sua sala um tanto burguesa, como um ateliê, para isso levando para lá numa perua de frete, cavalete, telas, e farto material de pintura. Uma vez preparado o cenário, combinei com ela, que recebesse Aline no dia e hora combinados, vestindo um guarda-pó de pintora, novo, que eu comprara e manchara bastante de tinta, e com uma paleta saturada na mão, e um pincel. Não é preciso dizer que levei dúzias de pincéis de todos os calibres, e espalhei-os pela sala em potes sujos. Pintei com esboços figurativos inúmeras telas procurando disfarçar o meu estilo, como se fosse uma pintora bem diferente de mim. Creio que fui bem sucedida, e pendurei algumas dessas novas obras, substituindo os quadros fracos que havia por ali, e pelo chão, encostadas nas paredes.
Depois de tudo preparado, pus–me no meio da sala transformada em ateliê, deixei cair minha roupa, e fiz então uma pose charmosa de modelo nu, com os braços estendidos em direção à minha querida amiga. Eu me sabia o seu prêmio, enquanto ela corria para mim e me tomava em seus braços, cobrindo-me de beijos!

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No grande dia, acordei nos braços de Vânia e despertei-a também para prepararmo-nos para receber Aline. Após um demorado banho, juntas, em que brincamos muito, em meio a gritinhos, vestimo-nos e penteamo-nos condignamente. Coloquei o guarda-pó manchado de todas as cores, sobre a roupa de Vânia, desmanchei-lhe um pouco o cabelo, e dei uma pincelada em sua bochecha, enfim, fantasiei-a de pintora. Ríamos muito enquanto fazíamos esses preparativos.
Finalmente, à hora combinada, soou o interfone e Vânia pediu para a Aline subir. Eu, com o coração acelerado e profundamente emocionada, permanecia no quarto, mordendo o travesseiro para não gritar.
Vânia recebeu Aline, que estendeu-lhe a mão, apresentando-se, lançou os olhos em torno e perguntou se podiam começar. Imediatamente começou a desnudar-se colocando seu indefectível jeans, camiseta e calcinha sobre uma cadeira, enquanto era observada com certa surpresa e deslumbramento por Vânia, depois ela me revelou. Então permaneceu inerte como uma boneca, com os braços caídos, pronta para ser manipulada para encontrar e armar a pose. Aí estava um momento importante do meu plano.
Vânia delicadamente virou-a para a parede oposta, de costas para a o corredor que levava ao quarto, e começou a cantarolar com sua linda voz, que era a senha combinada por nós, enquanto a manipulava por trás, colocando-o numa pose em que ela não podia ver o que se passava atrás de si. Ao ouvir o canto de Vânia entrei descalça na sala silenciosamente, pé ante-pé, substituindo Vânia que recuou, também silenciosamente e sumiu no corredor. Ela, na verdade ficaria observando, meio escondida. Eu comecei a manipular, emocionadamente a minha Aline, tocando suas espáduas e pernas, mas por trás, para que minhas mãos não fossem vistas por ela, cujo rosto permanecia imóvel, devido ao seu grande profissionalismo. Então, com meus toques muito suaves, sensuais, pareceu-me que ela começou a reconhecer o meu estilo, a maciez das minhas palmas, a sabedoria dos meus dedos. Sua respiração se alterou, seu peito começou a arfar, sua respiração se acelerando, denunciando sua emoção crescente. Minha respiração acompanhava essa aceleração, eu quase não consegui continuar com aquilo, cuja meta era fazê-la descobrir, e... render-se.
Mas foi o meu cheiro (um dia ela me diria), subitamente reconhecido por ela, que a fez voltar-se com um grito de alegria e cair nos meus braços colando sua boca à minha.
Ali, sobre um tapetinho fôfo, no meio daquele cenário de falso ateliê, observadas, em lágrimas de enternecimento e também de uma ligeira inveja pela minha linda e querida cúmplice, eu possuí Aline, minha amada, que assim voltara para mim, com todas as forças e recursos de minha imaginação apaixonada!

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sábado, 1 de setembro de 2007

A Filósofa

24/05/2006

Dos Contos Secretos de Alma Welt


Contatei uma professora de filosofia, pois sinto necessidade de aprofundar-me nalgumas questões concernentes ao Orfismo, que surgiram de maneira surpreendente nos meus textos. Mas, é claro, eu a escolhi por tê-la visto na graça de sua beleza encantadora e jovem, na televisão, numa palestra sobre o amor erótico, que se tornou mais sugestiva e instigante graças à figura privilegiada da mestra, e o seu charme feminino, coisa rara nesse mistér, altamente intelectual, perdoem-me as feministas mais extremadas.
Tássia, a filósofa, tem uma delicada figura, muito branca, de olhos castanhos, e cabelos negros anelados, de ondas miúdas, de egípcia antiga, ou de grega, que me faz pensar numa figura imaginária de Cleópatra, já que os bustos em mármore, atribuídos como retratos da rainha egípcia, não correspondem à imaginação geral, contemporânea. A professora em questão veste-se de preto, pois como diz ela com uma auto-ironia charmosa e irresistível, “o preto deixa as mulheres com um ar inteligente”. Apaixonei-me por ela depois dessa “coquetterie ” intelectual, ao mesmo tempo tão feminina. A mulher bonita, que tem tal coragem de, aparentemente, não levar-se muito a sério, é irresistível, e conquistou-me imediatamente. Tratava-se, agora de conseguir aproximar-me dela, de cativá-la com meus próprios charme e beleza, pois a moça sendo uma estrela nascente, anda muito requisitada, além de dar aulas de filosofia numa grande universidade. Comecei por telefonar para a emissora de televisão para tentar conseguir o número de seu telefone, o que não foi fácil, pois não estavam autorizados a fornecê-lo. Afinal, consegui o seu site e com ele o seu e.mail. Comecei por mandar-lhe mensagens misteriosas e instigantes, demonstrando um conhecimento profundo de certas áreas da filosofia, para despertar nela a curiosidade sobre a minha pessoa. Ela percebeu, senti, pela sua primeira resposta, estar tratando com uma poeta, o que pra mim foi gratificante, já que isso é mesmo o que sou. A filosofia e a poesia são atividades da mente, muito afins, e freqüentemente se confundem, em certa medida, embora não devamos esquecer as impressionantes palavras do grande crítico inglês Herbert Reed, a propósito de Shakeaspeare: “o Poeta, não é um filósofo, nem um moralista, vivendo ao seu bel-prazer, somente em sintonia com o cristal terrível de uma mente intuitiva”.

Depois de algumas semanas de troca de correspondência poético- filosófica, em que não deixei de insinuar minha atitude de admiradora um tanto sensual de sua pessoa, coisa que procurei fazer de maneira muito camuflada e sutil, para não levantar a lebre, isto é, para não assustar a moça filósofa, um tanto arisca, na verdade. Tássia, no entanto, se mostrava encantadora na nossa correspondência, como se no fundo desse corda à sua admiradora um pouco além de intelectual, pois a vaidade feminina estava presente nela como em todas as mulheres bonitas, e ela traía a sua sensualidade, nos seus e.mails, embora buscasse um certa seriedade, como o psicanalista atraído pela sua cliente, que ele não curará nunca, para mantê-la na sua teia, no labirinto de sua paixão camuflada. Assim, chegamos, Tássia e eu, às confissões, às confidências gradativamente mais eróticas, de nossas vidas, já que o erotismo era uma de suas especialidades, em filosofia, pelo menos. Mas eu já imaginava esta linda mulher na cama, sim, no meu leito, onde faria sua mente portentosa parar por um segundo infinito de orgasmo, nas minhas mãos hábeis, experientes, afinal.

Chegou, enfim, o dia de nos conhecermos pessoalmente. Já nos correspondíamos havia meses, e estávamos, por assim dizer, “no ponto”, eu queria crer. Combinado o local e a hora, uma discreta casa de chá no centro da cidade, a meio caminho de nossas residências, mas não como um terreno neutro, mas bem ao contrário: muito íntimo e reservado, sugerido por ela, o que considerei ótimo sinal. Sentada numa mesa a um canto mais reservado, que escolhi, esperei minha nova musa, com certa impaciência e expectativa. E afinal, de repente ela entrou, linda, um tanto produzida, o que considerei um ótimo sinal de deferência, embora seja mesmo para as outras mulheres que nos vestimos. Mas naquele momento, meu coração deu um salto, e meus olhos se encheram de lágrimas de emoção. Levantei-me estendi as minhas mãos para ela, que igualmente emocionada, segurou e aproximando-as de seu seio como para mostrar-me suas batidas aceleradas. Ela tinha um ar de encanto e surpresa por defrontar-se com a beleza inesperada de sua admiradora, de sua discípula como ela já me considerava, com ligeiro auto-engano. Abraçamo-nos apertado, sentindo os nossos respectivos perfumes naturais, sob nossas colônias discretas, se é que isso é possível. Sim nós nos farejamos como duas fêmeas, essa é que é a verdade, e nossos cheiros combinaram, não se repeliram: nós seríamos uma da outra! Era só questão de mais um dedo final de conversa, que, no entanto, não foi possível, ou sequer necessária. Sorvendo o chá em silêncio, nossos olhares não se desviavam, mergulhados um no outro. Não cogitamos de filosofar, nada precisava ser dito, depois de meses de correspondência, a partir daquele encontro que se revelou puramente sensitivo, sensível, emocional, e... apaixonado. Sim, ela também estava apaixonada, era evidente, malgrado uma aliança de casada em seu dedo, que me surpreendeu. Ela segurou minhas mãos sobre a mesa e disse:

—Alma, querida, como me surpreendeste-( ela também era gaúcha!)- com a tua beleza! Eu esperava uma moça bonita, mas não isso... Tu és linda, inimaginavelmente linda-(fiquei mais comovida ainda)- e não me furtarei a qualquer coisa contigo. Vamos sair daqui, vamos para a tua casa. É possível, você é solteira, mora sozinha?
Eu estava em lágrimas de emoção e felicidade. Minha linda filósofa me amava, e esse era o coroamento de minha vida, dedicada à poesia e ao amor. Eu estava consagrada e ainda me esperavam dias ou noites de prazer inaudito, no leito, com minha musa, onde eu provaria na prática o verdadeiro conhecimento de seu tema predileto: o amor erótico.
Saímos dali abraçadas, minha mão em sua cintura fina, delicada, e à saída paramos de repente para um beijo em nossos lábios, para espanto arregalado de um garçon. Caminhamos de mãos dadas até o seu carrinho, numa transversal próxima e rumamos para os Jardins. Ela ansiava conhecer o meu ateliê de que já lhe falara nos meus e.mails. Eu sabia que ela, também artista plástica, a julgar pela capa de um livro seu, que me deu com dedicatória, ficaria deslumbrada com a beleza do meu ateliê, tão elogiado pelos eventuais compradores e marchands.
Sei que estou sendo muito superlativa nesta narrativa, onde tudo é belo, grande e positivo. Mas que posso fazer se a minha vida é assim? Na nossa época em que o grotesco, o doentio, a miséria e o crime predominam na nossa literatura, e na realidade quotidiana de tantas pessoas, eu sei como soam estranhos tanta beleza e encanto com o ser humano. Mas nisso é que consiste a mensagem de minha vida, desta Alma privilegiada, que soube ser digna de tantos privilégios de nascença. Jamais me verão blasfemar contra a beleza da vida, do amor e da arte. Se vivo como uma idealista romântica, tenho direito a isso, pois a minha copiosa e sincera obra, pela força de sua beleza assim me legitima. Dito isso continuo a narrar a minha aventura romântica com a filósofa.
Chegadas ao meu prédio, entramos pela garagem, subindo então pelo elevador de serviço aos beijos, apesar da câmera perigosa no alto, que ignoramos. Ao entrarmos no apartamento, Tássia realmente deslumbrou-se, com tudo, com minhas telas e as ilustrações, minhas e as do Guilherme de Faria para os meus poemas editados em folhetos. Mas não podíamos nos conter mais, e ela, mulher casada, surpreendeu-me tomando a iniciativa e puxando-me pela mão para o meu próprio quarto. Ali nos desnudamos, embevecidas pela beleza dos nossos corpos. Afinal, vocês notem, eu escolhera uma filósofa pela sua beleza, não sou hipócrita: “A Beleza é a verdade, a Verdade é a beleza”, diz o verso do grande John Keats, eu mencionei isso a ela, que me calou os lábios, com seus dedos, sabiamente, e me puxou ao leito sobre si, como um suave lençol branco de verão.
Passamos a nossa noite de delícias, mergulhando na nossa carne deslumbrada, e sugando os sumos copiosos da nossa paixão, que eu não imaginaria efêmera, jamais.
Adormecemos abraçadas, coladas, os lábios muito juntos, sentindo nossos respectivos alentos pela madrugada adentro, e eu derramava lágrimas de felicidade. Eu não estava só. Eu nunca mais estaria só, que esse tinha sido sempre o meu supremo temor. Ao amanhecer levantei-me nua, para ir preparar o nosso café da manhã, que seria digna da minha princesa filósofa. Entrei com a farta bandeja para servi-la na cama e a encontrei linda, nua, sentada no leito, me esperando com um sorriso triste, enigmático, que estranhei. Após a lenta refeição que funcionou como um suspense um tanto alarmante, ela parou de sorver o café, fez um longo silêncio, os olhos nos meus, sem abaixá-los, e disse:
—"Alma, minha querida, devo deixar-te. Tivemos a nossa noite de amor, e jamais me arrependerei disso. Vou carregar essa noite comigo para sempre e jamais a renegarei. Mas não posso continuar com isso. Amo meu marido e sou-lhe mais fiel do que imaginava. Ele não merece que o deixe, que o traia. Passamos muitas coisas juntos, grandes sacrifícios: ele ajudou-me a fazer o meu doutorado, sustentando-me durante os anos difíceis de estudo. Devo partir, Alma, antes que não consiga mais, pois a tentação é enorme, eu poderia ser feliz contigo, para sempre. Mas sou uma estóica, agora vejo, e não uma hedonista, ou uma epicurista, como eu pensava. Se ficar contigo, o remorso dentro de mim vai minar nossa felicidade, eu o vejo claramente. Em pouco tempo tudo estaria perdido. Eu sei, é duro deixar-te agora, que estamos tão apaixonadas". – Ela tocou com os dedos as minhas lágrimas, que corriam, e provou-lhes o sal, com sua língua – Mas, ah! –(ela suspirou)- deve ser assim, tu sabes.
Eu soluçava, enquanto ela assim falava. De cabeça baixa, eu entreguei-me a uma dor profunda, em meu peito, onde corria como um filme, em flash-backs, os momentos cruciais da minha vida, a partir de minha expulsão do paraíso infantil, de minha macieira, com meu Rôdo, e todas as infinitas perdas de uma vida amorosa renitente, em minha busca teimosa da felicidade. Que não terminaria nunca...